O dia seguinte amanheceu com uma quietude estranha sobre Darrow’s Hollow.
O céu, coberto por nuvens densas, parecia o peso de um pensamento prestes a se romper.
O vento não soprava, e até o lago — que costumava espelhar o movimento do céu — estava imóvel, sem brilho, contido.
Havia algo naquele silêncio que não era natural.
Um tipo de pausa entre dois batimentos.
O ar parecia esperar.
Ethan andava pelas ruas estreitas da cidade, passos lentos, mãos no bolso, o olhar perdido.
A lembrança da floresta da noite anterior ainda pulsava em sua cabeça, viva como um sonho que não terminara.
Podia sentir o cheiro de terra molhada, o frio da névoa, o sussurro do nome dele atravessando as árvores.
Cada poste, cada sombra, parecia observá-lo — como se Darrow’s Hollow inteira tivesse olhos.
Não era apenas paranoia.
Havia algo diferente no modo como as pessoas se moviam.
Os moradores caminhavam devagar, falavam em tons baixos, evitando se encarar por muito tempo.
Os olhares se cruzavam e se desviavam rápido, como se todos partilhassem um segredo que ninguém ousava dizer.
Sarah surgiu ao lado dele, silenciosa, envolta num casaco escuro.
“Você também sente isso, não é?”
Ethan assentiu sem hesitar.
“Sim. A floresta... o lago... algo se move lá fora. Eu sei que sente.”
Ela olhou para o chão, os olhos verdes perdidos em um ponto imaginário.
“É só impressão minha, ou a cidade inteira parece... contida? Como se estivéssemos esperando algo acontecer?”
“Não é impressão. É real.”
O silêncio que se seguiu entre eles parecia pulsar.
Darrow’s Hollow estava respirando diferente.
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O primeiro desaparecimento aconteceu antes que o sol subisse completamente.
Danny Harper, um adolescente de dezesseis anos, saiu de casa como fazia todas as manhãs.
Gostava de correr pelas trilhas que levavam até o lago, desafiando o frio e a neblina.
Era ousado, curioso, inquieto.
Mas, naquela manhã, algo o chamava.
Horas se passaram, e Danny não voltou.
Os pais procuraram por ele nos arredores, depois na estrada, e, quando o medo se instalou, chamaram o xerife.
Quando Ethan soube, foi até a casa dos Harper.
O pânico já havia tomado conta do lugar.
A mãe, pálida, tremia.
Tom Grady estava lá, o rosto duro, os olhos cansados.
“Você tem ideia de onde ele poderia estar?” perguntou a mulher, a voz trêmula.
Tom balançou a cabeça.
“Não há sinais. Saiu sozinho, mas a trilha estava vazia. Nenhum rastro, nada.”
O silêncio que se seguiu foi sufocante.
Ethan sentiu o mesmo arrepio da floresta percorrer-lhe a espinha.
Não era apenas medo — era reconhecimento.
A presença.
Ela havia se movido.
E Danny fora o primeiro a cruzar o seu caminho.
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Mais tarde, Ethan foi até a trilha.
A lama ainda fresca guardava marcas confusas — passos que começavam firmes e, de repente, se tornavam arrastados, distorcidos, como se algo pesado o tivesse puxado.
Não havia sangue.
Não havia luta.
Apenas o rastro de alguém que deixou de estar no mundo.
O ar estava pesado, úmido, com cheiro metálico.
Cada estalo de galho soava como um aviso.
Ethan se ajoelhou, encostou a mão no chão — e sentiu.
Uma vibração sutil, quase imperceptível, correndo sob a terra.
Como um coração batendo muito abaixo da superfície.
O sangue lhe gelou.
A lembrança do olho sob a água voltou nítida.
Os símbolos na escavação.
O sussurro na névoa.
Tudo pulsava, agora, num mesmo ritmo.
“Ele está aqui”, murmurou, mais para si mesmo do que para os outros.
Sarah, que o acompanhava, se aproximou, tentando decifrar o olhar dele.
“O que você quer dizer?”
Ethan levantou-se, os olhos presos no lago.
“Não aqui, mas... abaixo. Sob a terra. Sob a água. A criatura está ativa. Danny cruzou o caminho dela.”
Tom o fitou com irritação.
“Não estamos lidando com histórias antigas, Ethan. Um garoto desapareceu. Precisamos de fatos, não de mitos.”
Ethan não respondeu.
Sabia que Tom tentava se proteger com o ceticismo.
Mas dentro dele, uma voz insistia: a razão não tem mais lugar em Darrow’s Hollow.
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Quando retornou à margem do lago, a superfície parecia lisa, intacta.
Mas havia um detalhe novo — pequenas ondulações que surgiam sem vento, se expandindo em círculos perfeitos antes de sumirem.
Como dedos invisíveis brincando com a água.
Ethan ficou ali, parado, observando.
O som do mundo parecia ter cessado.
Nem pássaros.
Nem vento.
Apenas o leve som de água se movendo sozinha.
Ele sentiu o olhar da coisa.
Não precisava vê-la para saber.
Ela o observava, estudando seus movimentos, seu medo, seu silêncio.
Da floresta, um estalo.
Não natural.
Nem vento, nem animal.
Era consciente.
E naquele instante, Ethan compreendeu: o desaparecimento de Danny Harper não fora um acidente.
Fora um chamado, o começo.
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Ao longo da manhã, a notícia se espalhou.
O desaparecimento tomou a cidade como uma doença.
As pessoas cochichavam nas esquinas, espiando a floresta pelas janelas.
Grupos se formaram, discutindo em murmúrios.
O medo começou a se multiplicar.
Tom organizou uma busca formal.
Homens e mulheres entraram na floresta, carregando lanternas e paus improvisados como armas.
A névoa permanecia densa, e o chão encharcado engolia passos.
Cada estalo fazia os corpos enrijecerem.
Cada sombra parecia se mover.
Ethan seguiu com Sarah.
Ambos em silêncio, atentos.
Ele sentia sob os pés o mesmo tremor sutil que havia sentido na escavação.
Algo se movia.
Algo os observava.
“Ele não pode ter simplesmente desaparecido”, disse Ethan, quebrando o silêncio.
Sarah olhou em volta, a voz baixa.
“Eu sei. Não há sinais de luta, nem rastros. É... como se ele tivesse sido levado.”
“Não foi levado.”
Ethan olhou para o chão.
“Foi chamado.”
Um som respondeu.
Profundo.
Vindo das raízes.
Como um sussurro feito de terra.
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Tom reuniu o grupo em um ponto da trilha.
“Se alguém viu algo, qualquer coisa, diga agora. Cada minuto conta.”
Ninguém falou.
O medo era mais forte que a voz.
Ethan observou os rostos ao redor — olhos evitavam contato, corpos imóveis, mãos trêmulas.
A cidade inteira começava a sentir o que ele já sabia: havia algo vivo ali, mas não humano.
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Quando a busca terminou, sem sinal do garoto, o pânico se espalhou como fogo.
Boatos surgiram.
Alguns juravam ter visto sombras se movendo entre as árvores.
Outros diziam ouvir sussurros à noite, vindos da direção do lago.
Havia quem falasse de figuras na névoa, observando pelas janelas.
Ethan e Sarah foram até a cabana de Henry Calder.
O velho os recebeu em silêncio, como se já soubesse.
“O selo foi perturbado”, disse Henry.
“A terra está aberta. E o que dormia... agora se move.”
Sarah arregalou os olhos.
“Então tudo que disse... era verdade?”
Henry assentiu lentamente.
“Toda cidade tem um preço pelo esquecimento. E Darrow’s Hollow esqueceu demais.”
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Quando deixaram a cabana, o ar estava frio.
O lago refletia o céu cinzento, mas o reflexo não era estático — pulsava, respirava.
Ethan sentiu o mesmo peso no peito.
O olhar.
A presença.
A coisa sob a água o acompanhava, invisível, atenta.
Ele sabia o que aquilo significava.
Danny não era o fim.
Era o início.
O primeiro aviso.
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Ao entardecer, a cidade mergulhou num silêncio de vigília.
As janelas se fecharam.
As portas se trancaram.
As luzes piscavam dentro das casas, fracas, como se temessem atrair atenção.
Ethan voltou à trilha, agora com Tom e alguns voluntários.
As marcas na lama pareciam diferentes sob a luz mortiça.
Eram deformadas, arranhadas, como se mãos enormes tivessem varrido o chão.
Sarah caminhava próxima.
“Você sente?”
Ethan assentiu.
“A presença não está só na floresta. Está na cidade. Em todo lugar.”
O som veio logo em seguida — seco, cortante.
Um estalo, depois um arranhar profundo.
Todos congelaram.
As lanternas giraram, tremendo.
Nada.
Mas Ethan sabia.
Algo estava ali.
Vendo.
Medindo.
A neblina se adensou, formando silhuetas estranhas.
Pareciam braços.
Mãos.
O lago, ao longe, movia-se em ondas regulares, como respiração.
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Quando retornaram à cidade, as pessoas esperavam nas ruas.
Rostos ansiosos, olhos vazios.
Ninguém dizia nada, mas todos sabiam: o garoto não seria encontrado.
Outros começaram a relatar presenças, sombras que sumiam, sussurros noturnos.
O pânico crescia.
E o lago, silencioso, continuava observando.
Ethan pensou em Henry, nos símbolos, nas lendas.
Sabia que precisavam entender.
A escavação.
O selo.
O diário antigo.
Tudo apontava para o mesmo destino.
A primeira desaparição era um sinal.
O início do despertar.
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À noite, a floresta retomou sua voz.
Os estalos e os sussurros voltaram, mais numerosos, mais próximos.
Ethan ouviu-os do alpendre da casa da mãe, olhando o lago pela janela.
A superfície parecia se mover mesmo sem vento.
O olho aberto.
Vivo.
O som do vento trouxe consigo uma frase, fria como o metal da noite:
"O próximo olhar será seu."
Ethan ficou imóvel.
Não tentou fugir.
O medo era inútil.
Sabia, naquele instante, que o horror não vinha apenas da água ou da terra.
Vinha dele.
De dentro.
E o lago, como se entendesse, respondeu com uma ondulação lenta.
Um único círculo perfeito.
Como um olho que piscava.
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Ethan permaneceu diante do lago, imóvel, a respiração curta, o frio atravessando o casaco como uma lâmina fina.
A superfície da água estava parada, mas havia um ritmo silencioso ali — um movimento tão lento que parecia o bater de um coração escondido nas profundezas.
O vento soprou, leve, e uma única ondulação cruzou o espelho do lago, formando um círculo perfeito antes de se dissipar.
Ele não desviou o olhar.
Por um instante, teve a certeza de ver algo refletido — uma sombra enorme, indistinta, movendo-se sob a água.
Não era um reflexo do céu, nem da neblina.
Era algo próprio.
As palavras ecoaram novamente dentro da cabeça dele, sem som, sem voz.
"O próximo olhar será seu."
Ethan sentiu o corpo estremecer.
A frase soava como um juramento.
Não havia ameaça, apenas certeza.
O lago escolhera.
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Atrás dele, as luzes das casas cintilavam em meio à névoa.
O som distante de portas sendo trancadas, janelas fechadas.
A cidade recolhia-se.
Cada morador se abrigava atrás de paredes frágeis, acreditando que madeira e vidro poderiam deter o que vinha da água.
Mas Ethan sabia que o m*l não batia à porta.
Ele já estava dentro.
Darrow’s Hollow respirava ao mesmo tempo que o lago.
Um cão latiu ao longe, um som agudo e curto, seguido de silêncio.
Depois, o eco do próprio latido retornou — igual, idêntico — vindo da direção oposta.
Ethan ergueu o rosto.
O som não era repetição.
Era resposta.
Ele deu um passo atrás, os olhos fixos na escuridão da floresta.
Tudo estava quieto.
Quieto demais.
Aquela quietude não era ausência de som, mas a presença dele — comprimida, contida, viva.
A floresta observava.
A terra esperava.
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Mais tarde, já em casa, Ethan acendeu a luz da cozinha, mas a claridade não trouxe conforto.
O relógio da parede marcava quase meia-noite.
As mãos tremiam enquanto ele segurava uma caneca de café frio.
O líquido escuro refletia a lâmpada amarelada como um pequeno lago doméstico, e, por um segundo, ele achou que o reflexo se movia sozinho.
Fechou os olhos.
O cansaço pesava.
Mas mesmo no silêncio da casa, o som da floresta permanecia.
Estalos.
Sussurros.
Aqueles ruídos finos e distantes que pareciam arranhar o fundo da mente.
Abriu os olhos e olhou pela janela.
A neblina cobria o quintal como um véu espesso.
Entre as árvores, viu algo — uma silhueta imóvel, alta, sem contorno definido.
Por um instante, pensou ser uma ilusão da luz.
Mas então, a sombra se moveu.
Devagar.
Quase com curiosidade.
Ethan apagou a luz.
Ficou imóvel.
O coração batia alto demais.
A sombra parou.
Os dois ficaram ali, separados apenas pelo vidro e pelo ar frio, medindo um ao outro em silêncio.
Depois, ela se dissolveu.
Sumiu na névoa.
Ethan recuou, o corpo inteiro em tensão.
Sabia que aquela coisa não estava apenas o observando — estava aprendendo.
Observava seus hábitos, seu medo, suas respostas.
Estava compreendendo o que era humano.
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Na manhã seguinte, o sol tentou romper a névoa, mas a luz parecia doente.
Cinza, sem calor.
O lago continuava imóvel, com pequenas ondulações que vinham e iam sem motivo.
As buscas continuavam.
Homens exaustos, mulheres com os rostos tensos, crianças chorando sem entender.
As conversas na praça eram todas variações do mesmo tema: Danny Harper.
Mas ninguém dizia em voz alta o que todos pensavam — que ele não voltaria.
Tom Grady se mantinha firme, comandando os grupos de busca, mas o olhar denunciava o desgaste.
A cidade começava a desmoronar em silêncio.
Ethan observava tudo da varanda da casa da mãe.
Sarah se aproximou, trazendo duas xícaras fumegantes.
“Você dormiu?”
Ele negou com a cabeça.
“Não consegui.”
Ela olhou para o lago.
“O que acha que aconteceu com Danny?”
Ethan demorou a responder.
Não queria dizer o que sabia.
Mas a verdade já não cabia dentro dele.
“Ele foi chamado.”
Sarah o fitou por um longo momento, sem dizer nada.
Depois, desviou o olhar para o horizonte.
A névoa se movia devagar, como se respirasse.
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O dia arrastou-se em silêncio.
Os moradores começaram a evitar o lago.
As crianças já não brincavam nas ruas.
Os sons comuns da cidade — martelos, risadas, passos — desapareceram.
O que restava era o farfalhar constante das folhas, o rumor distante da água.
À tarde, Henry Calder passou pela casa de Ethan.
Trazia o rosto tenso, as mãos trêmulas.
“O que começou não pode ser parado com orações nem buscas”, disse, olhando o chão.
“A criatura foi despertada, e o selo não se fecha sem preço.”
Ethan sentiu o peso daquelas palavras.
“Danny foi o primeiro.”
Henry ergueu os olhos, marejados.
“O primeiro chamado. Mas não será o último.”
O velho se afastou, sumindo pela rua coberta de névoa.
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À noite, a cidade mergulhou de novo no medo.
As lamparinas tremulavam dentro das casas, projetando sombras nas cortinas.
Ethan ficou sentado perto da janela, ouvindo.
O som da floresta voltara — o mesmo arranhar leve, os estalos espaçados, o murmúrio que parecia formar sílabas.
Sarah bateu à porta pouco depois das dez.
Entrou, os olhos assustados.
“Você ouviu?”
“Ouvi.”
“É... como se a floresta falasse.”
Ethan olhou para o chão.
“Ela está viva. Sempre esteve. Nós é que nunca quisemos ouvir.”
Ficaram em silêncio.
O som aumentava.
Mais nítido.
Mais próximo.
O estalo, o arranhar, o sopro — tudo se misturava numa cadência quase orgânica, como um corpo aprendendo a respirar.
E então, de repente, parou.
O silêncio que veio depois era absoluto.
Mas havia algo naquele vazio, algo que se movia sem som.
Sarah se aproximou da janela.
“Tem algo no lago...”
Ethan foi até ela.
A superfície da água estava inquieta.
Ondas pequenas se formavam e desapareciam rápido, como se dedos invisíveis a tocassem.
E então, no meio do lago, algo rompeu a superfície — não o bastante para se ver, apenas o suficiente para saber que havia movimento.
Sarah recuou um passo.
“O que é isso?”
Ethan respondeu baixo, quase sem voz.
“O olho.”
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Eles permaneceram ali, observando.
A água se acalmou, mas a sensação de vigília não cessou.
O vento trouxe de novo o sussurro.
Fraco, distante, mas real.
"O próximo olhar será seu."
Sarah empalideceu.
“Você ouviu?”
Ethan assentiu, sem conseguir falar.
A voz não era ameaça.
Era promessa.
E ele sabia o que significava: a criatura escolhera o próximo.
A atenção dela agora o seguia, assim como seguira Danny.
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Quando finalmente se afastaram da janela, a casa pareceu menor, as paredes mais próximas.
O som do vento nas frestas lembrava respiração.
Ethan apagou as luzes.
Sentou-se na penumbra, os olhos abertos, o corpo tenso.
O medo, agora, tinha forma.
Não de monstro, mas de consciência.
Algo havia despertado.
E tudo o que restava a Darrow’s Hollow era esperar o próximo chamado.
No silêncio profundo da madrugada, Ethan ainda ouvia a frase se repetindo, como uma oração invertida:
"O próximo olhar será seu."
E, do lado de fora, no coração do lago, algo respondeu.
Um som baixo, quase imperceptível, como um suspiro vindo das profundezas:
"Estamos aqui."