O sol nascia lento sobre Darrow’s Hollow, filtrado pela névoa que nunca se dissipava por completo. A luz era pálida, quase doente, e refletia-se nas águas do lago como uma película fria.
Ethan acordou sem lembrar exatamente quando havia dormido. O corpo doía, a cabeça latejava, e o gosto de ferrugem ainda estava na boca. A rachadura no vidro da janela permanecia lá, marcada por um traço escuro.
Tomou banho rápido, vestiu uma camisa limpa e saiu. Precisava ver gente. Precisava de algo que o fizesse sentir que o que vira — ou pensara ter visto — era apenas cansaço e imaginação.
A cidade parecia parada no tempo. As mesmas casas de madeira, as mesmas fachadas apagadas. Alguns rostos conhecidos, mais envelhecidos, acenavam de longe, com curiosidade e cautela. Em Darrow’s Hollow, todo retorno era um acontecimento.
O café local ainda se chamava Millie’s Diner. O cheiro de café velho e bacon queimado invadiu o ar assim que ele entrou. Uma jukebox parada no canto, um rádio transmitindo estática.
A mulher atrás do balcão levantou os olhos.
— Ethan Cole... — disse, surpresa e um pouco emocionada. — Achei que nunca mais voltaria.
Ele sorriu.
— Millie. Ainda servindo o mesmo café h******l?
Ela riu, enxugando as mãos num pano.
-- Pior. Mas é o que temos.
Ele sentou-se ao balcão.
Millie o serviu sem perguntar o pedido, uma xícara fumegante e um prato de ovos.
— Sinto muito pela sua mãe. Era uma boa mulher.
Ethan assentiu.
— Obrigado. Ainda estou me acostumando à ideia.
— Ninguém se acostuma a perder mãe — ela disse, mais para si do que para ele.
Enquanto comia, notou os olhares. Dois homens conversavam em voz baixa numa mesa ao fundo. Uma mulher passava o pano nas janelas e o observava de canto de olho. Havia algo na atmosfera da cidade, uma tensão discreta, como se todos soubessem de algo que ele ainda não sabia.
Millie se aproximou de novo.
— Sarah Miller está na biblioteca, sabia? Voltou pra cá faz uns anos.
O nome fez o estômago de Ethan se contrair.
Sarah Miller.
Primeiro amor, primeiro adeus.
Lembrava-se dela rindo à beira do lago, com o sol refletindo nos cabelos castanhos.
— Trabalhando na biblioteca? — perguntou, tentando soar casual.
— Desde que o pai morreu. Cuida de tudo lá. Se quiser visitá-la, abre às nove.
Ethan olhou o relógio. O ponteiro marcava oito e quarenta.
Pagou, agradeceu e saiu.
A biblioteca ficava na rua principal, um prédio de tijolos escuros e janelas altas. O letreiro de ferro sobre a porta ainda dizia Darrow’s Hollow Public Library.
O ar lá dentro era frio e cheirava a papel antigo. As prateleiras, altas e estreitas, formavam corredores que lembravam túneis.
Sarah estava de costas, empilhando livros numa mesa.
Ethan hesitou um instante antes de falar.
— Achei que nunca mais ia ver você.
Ela se virou devagar. Os olhos dele encontraram os dela — o mesmo tom de avelã, agora mais sério, mais cansado.
— Ethan Cole — disse, sem sorriso. — Achei que tinha esquecido este lugar.
— Tentei — respondeu. — Mas o lugar não esquece da gente.
Um silêncio curto se formou.
Ela pousou o livro que segurava, limpou as mãos no avental e aproximou-se.
— Soube da sua mãe. Sinto muito.
— Obrigado. A casa está igual... ou quase.
— Nada aqui muda. Só piora.
Havia uma sinceridade amarga na voz dela. Ele notou olheiras fundas, uma rigidez no rosto.
— Ouvi dizer que você voltou pra ficar — ela disse.
— Ainda não sei. Só preciso resolver as coisas da herança.
Sarah assentiu.
— Vai querer vender?
— Talvez. Não tenho certeza se quero ficar sozinho naquela casa.
Ela o olhou de um jeito estranho.
— Ninguém deveria morar perto do lago, Ethan.
A frase o pegou de surpresa.
— Por quê?
— Porque... — ela hesitou. — As pessoas têm ouvido coisas. Desde o mês passado. Sons. Luzes. E agora, desaparecimentos.
— Desaparecimentos?
Ela olhou em volta, certificando-se de que estavam sozinhos.
— Um garoto. Timmy Ross. Sumiu há duas semanas. Encontraram o barco dele virado na margem.
O nome trouxe um peso imediato.
Ethan lembrou-se do som que ouvira, do reflexo na água, do olho.
— E o xerife? — perguntou.
— Tom está cuidando disso. Mas ninguém fala muito. Há medo demais.
Sarah o observou com atenção.
— Você viu alguma coisa, Ethan?
Ele hesitou.
As imagens voltaram — o brilho sob a água, a voz chamando seu nome, o reflexo sorrindo.
Quase respondeu, mas o olhar dela o conteve.
— Não. Só o lago, como sempre.
Ela não pareceu convencida.
— Henry Calder esteve aqui ontem. Disse que o selo estava enfraquecendo.
— O velho Henry ainda vive? — perguntou, lembrando-se do homem que contava histórias sobre maldições e rituais.
— Vive. Ou algo perto disso. Ninguém mais acredita nele, mas às vezes eu acho que deveria.
O silêncio se estendeu.
Lá fora, o vento soprou, e as janelas tremeram. O som ecoou pelo salão como um suspiro.
Sarah cruzou os braços.
— O lago está diferente, Ethan. Você vai sentir.
Ele olhou para ela, tentando sorrir.
— Sempre foi estranho. Lembra das histórias? “O olho na água”, a maldição, os gritos nas noites frias...
— Não são histórias. — A voz dela foi seca, firme. — Não mais.
************
O som das gotas batendo nas telhas lembrava batidas de dedos impacientes. Ethan observava o copo de café esfriar sobre a mesa enquanto o relógio de parede fazia questão de marcar cada segundo com precisão c***l. Havia algo naquela madrugada que o impedia de dormir — um sussurro distante, quase imperceptível, mas insistente como uma lembrança m*l enterrada.
Pegou o caderno antigo que trouxera da cidade, um presente do pai antes de morrer. As páginas estavam amareladas, algumas manchadas por algo que ele preferiu acreditar ser café. No entanto, quando a luz do abajur incidiu num ponto específico, Ethan notou uma anotação escrita à lápis, quase apagada:
"As vozes vêm da floresta, não da mente."
Por um instante, ficou imóvel.
Não lembrava de ter escrito aquilo.
Levantou-se, acendeu outro cigarro e abriu a janela. O vento frio carregava o cheiro de terra molhada e algo mais — algo metálico, quase doce. A neblina engolia as árvores, e lá no fundo, entre sombras e troncos retorcidos, uma luz parecia piscar. Breve. Intermitente. Como se alguém tentasse chamá-lo.
A porta rangeu quando ele desceu os degraus da varanda.
O barulho do cascalho sob suas botas o manteve lúcido o bastante para ignorar o instinto que o mandava voltar.
Mas ele seguiu.
A floresta parecia viva. As árvores estalavam, respiravam. O som da chuva se transformava em vozes desconexas — nomes, risadas, choros. Ethan apertou o casaco contra o corpo, tentando afastar a sensação de estar sendo observado.
A luz se apagou de repente.
No escuro, o silêncio era quase sólido.
Quando o raio iluminou o caminho, ele viu.
Algo — ou alguém — estava parado entre as árvores.
Uma figura imóvel, de costas, com o cabelo colado pela chuva.
“Sarah?”
A palavra escapou antes que pudesse contê-la.
A figura virou-se devagar.
Por um instante, ele jurou ver o rosto dela — os olhos verdes, o sorriso que conhecia de cor.
Mas quando piscou, não havia mais nada.
Apenas o vazio da floresta e o som distante de algo correndo.
Ethan recuou, o coração disparado. Voltou para a casa quase tropeçando, trancou a porta e apoiou as costas nela, tentando controlar a respiração.
Olhou para o caderno, ainda sobre a mesa. Outra frase havia surgido. As letras úmidas, tremidas, como se alguém tivesse acabado de escrevê-las:
"Você demorou demais, Ethan."
O ar pareceu desaparecer do cômodo.
Ele passou a mão pelos cabelos, suando frio.
As janelas se fecharam sozinhas com o vento, e o relógio parou de marcar o tempo.
Quando tentou reler a frase, a tinta já havia sumido.
Mas o eco daquelas palavras permaneceu em sua mente, vibrando como um aviso.
E então, do andar de cima, uma porta bateu.
Ethan levantou o olhar.
Sabia que estava sozinho.
Ou pelo menos, acreditava estar.
Subiu os degraus lentamente. Cada passo rangia com o peso da dúvida. No corredor, o ar parecia mais frio, e o cheiro de umidade era mais forte. Quando chegou à última porta — a do antigo quarto de Sarah —, viu que estava entreaberta.
Empurrou-a com cuidado.
O quarto estava igual.
Mesmo depois de tantos anos, a colcha bordada permanecia dobrada no mesmo canto, e o espelho trincado refletia um vulto que não era dele.
Ethan congelou.
A imagem no espelho o encarava — olhos vazios, pele pálida, expressão vazia.
Não era o seu reflexo.
Uma voz, suave e distante, sussurrou dentro do quarto:
“Você achou que podia apagar o passado, Ethan? Ele só dorme quando você sonha.”
Ele deu um passo para trás, mas o chão cedeu.
Caiu, batendo o ombro, e quando olhou de novo para o espelho, este estava inteiro.
Nenhum vulto. Nenhuma voz.
Apenas o som do vento e o eco das lembranças que ele nunca quis revisitar.
Lá fora, a tempestade se intensificava.
E, ao longe, alguém — ou algo — o observava da floresta.
A madrugada avançava lenta.
Ethan acendeu a lareira, mas a chama tremulava fraca, como se também sentisse medo. Sentou-se diante do fogo, os cotovelos sobre os joelhos, o olhar perdido entre brasas que se apagavam. As lembranças vinham em fragmentos — um quarto iluminado pelo sol, o som de risadas, o toque suave de uma mão sobre a dele. E então, o grito.
O estalo.
O silêncio.
Sarah tinha apenas dezessete.
E ele, vinte e dois.
Nunca contou a ninguém o que aconteceu naquela noite.
Um trovão cortou o céu.
Ethan levantou o olhar e percebeu o caderno sobre a mesa, agora aberto em outra página.
As letras pareciam ter sido gravadas a ferro:
"Você prometeu que ficaria até o fim."
O som de passos ecoou no corredor.
Lentos. Firmes.
O piso antigo estalava sob o peso invisível de algo que se aproximava.
“Quem está aí?”
A voz de Ethan saiu rouca, trêmula. Nenhuma resposta.
Apenas o vento empurrando a porta do escritório, que se abriu lentamente.
No umbral, uma sombra se formou — tênue, oscilante, como fumaça.
E, por um instante, uma figura feminina surgiu.
Os olhos verdes de Sarah brilharam com algo entre dor e acusação.
A boca se moveu, mas o som veio de dentro da cabeça dele.
“Você me deixou sozinha.”
Ethan recuou, o peito comprimido por algo que não sabia nomear.
“Eu... tentei voltar”, murmurou, mas a voz se quebrou no ar.
A sombra inclinou a cabeça, e lágrimas invisíveis pareciam cair dos olhos que já não existiam.
A chama da lareira se apagou.
Tudo mergulhou em escuridão.
O som do relógio voltou.
Três horas.
O mesmo horário em que ela desaparecera há sete anos.
Quando Ethan acendeu a lanterna, a sala estava vazia.
Nenhum sinal da sombra.
Nenhum vestígio de Sarah.
Mas o caderno continuava aberto, e a última frase agora estava diferente:
"Não olhe para trás quando ouvir meu nome."
O coração dele acelerou.
Mas, como quem desafia o destino, Ethan olhou.
Atrás de si, nada — apenas a casa mergulhada em penumbra.
Ainda assim, jurou ouvir a respiração de alguém próxima, muito próxima.
Do lado de fora, a tempestade cessou.
A lua surgiu entre as nuvens, iluminando o bosque.
E lá, na beira da trilha, uma figura observava a cabana.
Silenciosa.
Imóvel.
Segurando um objeto pequeno, envolto em pano — um colar com uma pedra azul, o mesmo que Sarah usava no dia em que desapareceu.
A sombra se virou e caminhou de volta para a floresta, desaparecendo sob a névoa.
O vento carregou um último sussurro até a janela do escritório:
“Darrow’s Hollow nunca esquece.”
Ethan fechou os olhos.
Sabia que aquilo era só o começo.
A cidade o chamava de volta, e dessa vez, não havia como escapar.