2. Ecos Do Passado

2012 Words
O sol nascia lento sobre Darrow’s Hollow, filtrado pela névoa que nunca se dissipava por completo. A luz era pálida, quase doente, e refletia-se nas águas do lago como uma película fria. Ethan acordou sem lembrar exatamente quando havia dormido. O corpo doía, a cabeça latejava, e o gosto de ferrugem ainda estava na boca. A rachadura no vidro da janela permanecia lá, marcada por um traço escuro. Tomou banho rápido, vestiu uma camisa limpa e saiu. Precisava ver gente. Precisava de algo que o fizesse sentir que o que vira — ou pensara ter visto — era apenas cansaço e imaginação. A cidade parecia parada no tempo. As mesmas casas de madeira, as mesmas fachadas apagadas. Alguns rostos conhecidos, mais envelhecidos, acenavam de longe, com curiosidade e cautela. Em Darrow’s Hollow, todo retorno era um acontecimento. O café local ainda se chamava Millie’s Diner. O cheiro de café velho e bacon queimado invadiu o ar assim que ele entrou. Uma jukebox parada no canto, um rádio transmitindo estática. A mulher atrás do balcão levantou os olhos. — Ethan Cole... — disse, surpresa e um pouco emocionada. — Achei que nunca mais voltaria. Ele sorriu. — Millie. Ainda servindo o mesmo café h******l? Ela riu, enxugando as mãos num pano. -- Pior. Mas é o que temos. Ele sentou-se ao balcão. Millie o serviu sem perguntar o pedido, uma xícara fumegante e um prato de ovos. — Sinto muito pela sua mãe. Era uma boa mulher. Ethan assentiu. — Obrigado. Ainda estou me acostumando à ideia. — Ninguém se acostuma a perder mãe — ela disse, mais para si do que para ele. Enquanto comia, notou os olhares. Dois homens conversavam em voz baixa numa mesa ao fundo. Uma mulher passava o pano nas janelas e o observava de canto de olho. Havia algo na atmosfera da cidade, uma tensão discreta, como se todos soubessem de algo que ele ainda não sabia. Millie se aproximou de novo. — Sarah Miller está na biblioteca, sabia? Voltou pra cá faz uns anos. O nome fez o estômago de Ethan se contrair. Sarah Miller. Primeiro amor, primeiro adeus. Lembrava-se dela rindo à beira do lago, com o sol refletindo nos cabelos castanhos. — Trabalhando na biblioteca? — perguntou, tentando soar casual. — Desde que o pai morreu. Cuida de tudo lá. Se quiser visitá-la, abre às nove. Ethan olhou o relógio. O ponteiro marcava oito e quarenta. Pagou, agradeceu e saiu. A biblioteca ficava na rua principal, um prédio de tijolos escuros e janelas altas. O letreiro de ferro sobre a porta ainda dizia Darrow’s Hollow Public Library. O ar lá dentro era frio e cheirava a papel antigo. As prateleiras, altas e estreitas, formavam corredores que lembravam túneis. Sarah estava de costas, empilhando livros numa mesa. Ethan hesitou um instante antes de falar. — Achei que nunca mais ia ver você. Ela se virou devagar. Os olhos dele encontraram os dela — o mesmo tom de avelã, agora mais sério, mais cansado. — Ethan Cole — disse, sem sorriso. — Achei que tinha esquecido este lugar. — Tentei — respondeu. — Mas o lugar não esquece da gente. Um silêncio curto se formou. Ela pousou o livro que segurava, limpou as mãos no avental e aproximou-se. — Soube da sua mãe. Sinto muito. — Obrigado. A casa está igual... ou quase. — Nada aqui muda. Só piora. Havia uma sinceridade amarga na voz dela. Ele notou olheiras fundas, uma rigidez no rosto. — Ouvi dizer que você voltou pra ficar — ela disse. — Ainda não sei. Só preciso resolver as coisas da herança. Sarah assentiu. — Vai querer vender? — Talvez. Não tenho certeza se quero ficar sozinho naquela casa. Ela o olhou de um jeito estranho. — Ninguém deveria morar perto do lago, Ethan. A frase o pegou de surpresa. — Por quê? — Porque... — ela hesitou. — As pessoas têm ouvido coisas. Desde o mês passado. Sons. Luzes. E agora, desaparecimentos. — Desaparecimentos? Ela olhou em volta, certificando-se de que estavam sozinhos. — Um garoto. Timmy Ross. Sumiu há duas semanas. Encontraram o barco dele virado na margem. O nome trouxe um peso imediato. Ethan lembrou-se do som que ouvira, do reflexo na água, do olho. — E o xerife? — perguntou. — Tom está cuidando disso. Mas ninguém fala muito. Há medo demais. Sarah o observou com atenção. — Você viu alguma coisa, Ethan? Ele hesitou. As imagens voltaram — o brilho sob a água, a voz chamando seu nome, o reflexo sorrindo. Quase respondeu, mas o olhar dela o conteve. — Não. Só o lago, como sempre. Ela não pareceu convencida. — Henry Calder esteve aqui ontem. Disse que o selo estava enfraquecendo. — O velho Henry ainda vive? — perguntou, lembrando-se do homem que contava histórias sobre maldições e rituais. — Vive. Ou algo perto disso. Ninguém mais acredita nele, mas às vezes eu acho que deveria. O silêncio se estendeu. Lá fora, o vento soprou, e as janelas tremeram. O som ecoou pelo salão como um suspiro. Sarah cruzou os braços. — O lago está diferente, Ethan. Você vai sentir. Ele olhou para ela, tentando sorrir. — Sempre foi estranho. Lembra das histórias? “O olho na água”, a maldição, os gritos nas noites frias... — Não são histórias. — A voz dela foi seca, firme. — Não mais. ************ O som das gotas batendo nas telhas lembrava batidas de dedos impacientes. Ethan observava o copo de café esfriar sobre a mesa enquanto o relógio de parede fazia questão de marcar cada segundo com precisão c***l. Havia algo naquela madrugada que o impedia de dormir — um sussurro distante, quase imperceptível, mas insistente como uma lembrança m*l enterrada. Pegou o caderno antigo que trouxera da cidade, um presente do pai antes de morrer. As páginas estavam amareladas, algumas manchadas por algo que ele preferiu acreditar ser café. No entanto, quando a luz do abajur incidiu num ponto específico, Ethan notou uma anotação escrita à lápis, quase apagada: "As vozes vêm da floresta, não da mente." Por um instante, ficou imóvel. Não lembrava de ter escrito aquilo. Levantou-se, acendeu outro cigarro e abriu a janela. O vento frio carregava o cheiro de terra molhada e algo mais — algo metálico, quase doce. A neblina engolia as árvores, e lá no fundo, entre sombras e troncos retorcidos, uma luz parecia piscar. Breve. Intermitente. Como se alguém tentasse chamá-lo. A porta rangeu quando ele desceu os degraus da varanda. O barulho do cascalho sob suas botas o manteve lúcido o bastante para ignorar o instinto que o mandava voltar. Mas ele seguiu. A floresta parecia viva. As árvores estalavam, respiravam. O som da chuva se transformava em vozes desconexas — nomes, risadas, choros. Ethan apertou o casaco contra o corpo, tentando afastar a sensação de estar sendo observado. A luz se apagou de repente. No escuro, o silêncio era quase sólido. Quando o raio iluminou o caminho, ele viu. Algo — ou alguém — estava parado entre as árvores. Uma figura imóvel, de costas, com o cabelo colado pela chuva. “Sarah?” A palavra escapou antes que pudesse contê-la. A figura virou-se devagar. Por um instante, ele jurou ver o rosto dela — os olhos verdes, o sorriso que conhecia de cor. Mas quando piscou, não havia mais nada. Apenas o vazio da floresta e o som distante de algo correndo. Ethan recuou, o coração disparado. Voltou para a casa quase tropeçando, trancou a porta e apoiou as costas nela, tentando controlar a respiração. Olhou para o caderno, ainda sobre a mesa. Outra frase havia surgido. As letras úmidas, tremidas, como se alguém tivesse acabado de escrevê-las: "Você demorou demais, Ethan." O ar pareceu desaparecer do cômodo. Ele passou a mão pelos cabelos, suando frio. As janelas se fecharam sozinhas com o vento, e o relógio parou de marcar o tempo. Quando tentou reler a frase, a tinta já havia sumido. Mas o eco daquelas palavras permaneceu em sua mente, vibrando como um aviso. E então, do andar de cima, uma porta bateu. Ethan levantou o olhar. Sabia que estava sozinho. Ou pelo menos, acreditava estar. Subiu os degraus lentamente. Cada passo rangia com o peso da dúvida. No corredor, o ar parecia mais frio, e o cheiro de umidade era mais forte. Quando chegou à última porta — a do antigo quarto de Sarah —, viu que estava entreaberta. Empurrou-a com cuidado. O quarto estava igual. Mesmo depois de tantos anos, a colcha bordada permanecia dobrada no mesmo canto, e o espelho trincado refletia um vulto que não era dele. Ethan congelou. A imagem no espelho o encarava — olhos vazios, pele pálida, expressão vazia. Não era o seu reflexo. Uma voz, suave e distante, sussurrou dentro do quarto: “Você achou que podia apagar o passado, Ethan? Ele só dorme quando você sonha.” Ele deu um passo para trás, mas o chão cedeu. Caiu, batendo o ombro, e quando olhou de novo para o espelho, este estava inteiro. Nenhum vulto. Nenhuma voz. Apenas o som do vento e o eco das lembranças que ele nunca quis revisitar. Lá fora, a tempestade se intensificava. E, ao longe, alguém — ou algo — o observava da floresta. A madrugada avançava lenta. Ethan acendeu a lareira, mas a chama tremulava fraca, como se também sentisse medo. Sentou-se diante do fogo, os cotovelos sobre os joelhos, o olhar perdido entre brasas que se apagavam. As lembranças vinham em fragmentos — um quarto iluminado pelo sol, o som de risadas, o toque suave de uma mão sobre a dele. E então, o grito. O estalo. O silêncio. Sarah tinha apenas dezessete. E ele, vinte e dois. Nunca contou a ninguém o que aconteceu naquela noite. Um trovão cortou o céu. Ethan levantou o olhar e percebeu o caderno sobre a mesa, agora aberto em outra página. As letras pareciam ter sido gravadas a ferro: "Você prometeu que ficaria até o fim." O som de passos ecoou no corredor. Lentos. Firmes. O piso antigo estalava sob o peso invisível de algo que se aproximava. “Quem está aí?” A voz de Ethan saiu rouca, trêmula. Nenhuma resposta. Apenas o vento empurrando a porta do escritório, que se abriu lentamente. No umbral, uma sombra se formou — tênue, oscilante, como fumaça. E, por um instante, uma figura feminina surgiu. Os olhos verdes de Sarah brilharam com algo entre dor e acusação. A boca se moveu, mas o som veio de dentro da cabeça dele. “Você me deixou sozinha.” Ethan recuou, o peito comprimido por algo que não sabia nomear. “Eu... tentei voltar”, murmurou, mas a voz se quebrou no ar. A sombra inclinou a cabeça, e lágrimas invisíveis pareciam cair dos olhos que já não existiam. A chama da lareira se apagou. Tudo mergulhou em escuridão. O som do relógio voltou. Três horas. O mesmo horário em que ela desaparecera há sete anos. Quando Ethan acendeu a lanterna, a sala estava vazia. Nenhum sinal da sombra. Nenhum vestígio de Sarah. Mas o caderno continuava aberto, e a última frase agora estava diferente: "Não olhe para trás quando ouvir meu nome." O coração dele acelerou. Mas, como quem desafia o destino, Ethan olhou. Atrás de si, nada — apenas a casa mergulhada em penumbra. Ainda assim, jurou ouvir a respiração de alguém próxima, muito próxima. Do lado de fora, a tempestade cessou. A lua surgiu entre as nuvens, iluminando o bosque. E lá, na beira da trilha, uma figura observava a cabana. Silenciosa. Imóvel. Segurando um objeto pequeno, envolto em pano — um colar com uma pedra azul, o mesmo que Sarah usava no dia em que desapareceu. A sombra se virou e caminhou de volta para a floresta, desaparecendo sob a névoa. O vento carregou um último sussurro até a janela do escritório: “Darrow’s Hollow nunca esquece.” Ethan fechou os olhos. Sabia que aquilo era só o começo. A cidade o chamava de volta, e dessa vez, não havia como escapar.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD