17. O Velho Livro

2036 Words
Chovia quando Eleanor chegou a Portland. O vidro do táxi refletia a cidade como se ela estivesse sendo vista debaixo d’água — tudo ondulava, lento, distorcido. Ela piscava com frequência, tentando dissipar o incômodo nos olhos. A chuva parecia viva. Cada gota descia pesada, com um som que ela já conhecia demais. Ping… ping… ping… Tentou ignorar, mas o reflexo no vidro piscou de volta. Sozinha, no banco de trás, ela sussurrou: “Não agora. Por favor.” A imagem no vidro sorriu. E desapareceu. ************ O prédio da universidade ficava numa rua esquecida, cercada por carvalhos antigos e luzes amareladas. Lá dentro, Eleanor foi recebida por uma mulher magra, de olhar cansado, doutora Rebecca Harlow, professora de antropologia e especialista em religiões pré-coloniais. “Senhora Brooks” disse ela, segurando um envelope velho. “Quando li seu e-mail, achei que fosse uma piada. Agora, não tenho tanta certeza.” Eleanor assentiu. “O lago existe. E ele está se movendo.” Rebecca a estudou com um olhar misto de ceticismo e medo. “Você falou em um selo. E em uma mulher chamada Sarah Cole.” “Sim. Ela era o selo. Agora é o reflexo.” A professora respirou fundo e abriu o envelope. Dele retirou um livro pequeno, de capa grossa e couro rachado. O cheiro era de mofo e maresia. “Encontrei isto há vinte anos, durante uma escavação em New Hampshire. O texto estava parcialmente destruído. Mas o nome… o nome estava lá.” Eleanor se inclinou. O título, em latim antigo, dizia: “De Speculum Vivum” (O Espelho Vivo) Rebecca folheou as páginas com cuidado. Os símbolos eram familiares — espirais, olhos, marcas circulares idênticas às que Sarah desenhou. Mas havia algo mais. Uma assinatura. Henricus Calder. Eleanor prendeu o ar. “O velho Henry…” Rebecca olhou para ela. “Você o conhece?” “Ele era o guardião do selo original.” A professora franziu o cenho. “Então o livro é real.” ****** Enquanto Rebecca traduzia as linhas, Eleanor observava as janelas da sala. A chuva agora caía mais devagar, quase flutuando no ar, e as gotas que deslizavam pelo vidro deixavam rastros luminosos. Reflexos se formavam e sumiam em segundos. Um olho aqui, um sorriso ali. Todos a observando. “Eleanor” chamou Rebecca. “Ouça isto.” A voz da professora tremia enquanto lia em voz alta: “O espelho nasceu daquilo que o homem recusou olhar. A criatura foi moldada na lembrança do medo. Seu nome é Elyon… Aquele que Reflete.” Eleanor repetiu, quase sem perceber. “Elyon…” Ao pronunciar o nome, as lâmpadas piscaram. O ar ficou pesado. O vidro da janela tremeu. E, no reflexo, um olho se abriu. Rebecca recuou, derrubando o livro. “O que foi isso?” “O nome… ele escuta.” As páginas do manuscrito se abriram sozinhas. Uma ventania invisível atravessou a sala, espalhando papéis e derrubando livros. E no centro da página, em letras negras, uma frase começou a se formar, não escrita, mas queimada na superfície: “Quem pronuncia o nome, lembra.” Eleanor sentiu o coração disparar. Rebecca tentava apagar as luzes, mas o interruptor não respondia. Os refletores da rua começaram a projetar formas estranhas nas janelas: espirais, sombras e olhos. E, de repente, todas as janelas se transformaram em espelhos. Nos reflexos, havia pessoas. Centenas delas. De pé, imóveis, olhando para dentro da sala. Rostos sem cor. Olhos abertos. Rebecca gritou. Eleanor pegou o livro, o corpo tremendo. As páginas ainda queimavam, mas ela conseguiu ler as últimas linhas: “Se o espelho atravessar o corpo, o mundo o seguirá. A única forma de contê-lo é lembrando tudo e esquecendo o nome.” O vidro da janela mais próxima partiu, mas não em cacos. Se dissolveu. A água escorreu do batente, formando uma poça no chão. Dentro dela, um reflexo. De Sarah. “Eleanor” disse a imagem, a voz suave e firme. “Você o chamou.” “Não quis.” “Não importa. O nome lembra o corpo. Agora ele virá.” Rebecca caiu de joelhos, chorando. “Quem é ela? O que é isso?” Eleanor olhou para o reflexo e respondeu sem desviar os olhos: “A guardiã do que restou.” Sarah ergueu a cabeça. “O espelho voltou a olhar. E agora, só há um modo de fechar os olhos dele novamente.” ******* As luzes se apagaram. A água subiu pelas paredes. E a voz de Sarah, firme, sussurrou entre os trovões: "Encontre o segundo livro, Eleanor. O nome está incompleto. O verdadeiro selo está nas páginas que o tempo não quis lembrar." E, antes que tudo escurecesse, Eleanor viu. No reflexo da poça, um mapa antigo se desenhava. Rios, florestas, montanhas. E, no centro, o nome esquecido. Darrow’s Hollow. Mas logo abaixo, uma segunda inscrição aparecia, riscada, como uma cicatriz sobre o papel: “O espelho nasceu em outro lugar.” ******* O vento cessou. O prédio estava vazio. A chuva, suspensa no ar, como se o tempo esperasse. Eleanor segurava o livro junto ao peito, encharcada, o coração batendo como um tambor. O nome de Elyon ecoava em sua mente. Não apenas como palavra, mas como presença. Ela sentia algo dentro de si se mover. Algo líquido. Algo que respirava com ela. No vidro quebrado da janela, o reflexo voltou a sorrir. E a voz de Sarah sussurrou, distante, quase maternal: "Agora você é a lembrança, Eleanor. E o mundo está pronto para se olhar." ********** O vento soprava baixo, frio, arrastando o cheiro úmido do papel e da madeira velha. A universidade parecia abandonada. Corredores longos, cheios de ecos e sombras. Eleanor atravessava o prédio com o livro de Henry Calder preso contra o peito. O nome — Elyon — ainda martelava dentro dela como um som que não parava. Cada vez que respirava, sentia algo mover-se sob a pele, como um eco líquido tentando se firmar em sua carne. Ela precisava sair dali. Mas algo no ar a impedia de correr. Como se a própria estrutura do lugar a observasse. As janelas refletiam não o corredor, mas o lago. Sempre o lago. No reflexo, uma figura andava atrás dela, pálida, imóvel. Sarah. De novo. “Você precisa encontrar o templo” sussurrou a voz. “O selo não nasceu em Darrow’s Hollow. A cidade foi apenas a primeira lembrança.” Eleanor virou-se. “Por que eu? Por que me escolheram?” “Porque você escreveu. E quem escreve, molda o reflexo.” ********* Fora do prédio, a chuva havia parado. O céu, no entanto, não voltará ao normal. As nuvens formavam espirais lentas, concêntricas, sobre a cidade. No centro delas, uma luz branca piscava, como um olho. Eleanor pegou o carro e dirigiu para o norte. Não sabia exatamente para onde ia, mas o livro parecia indicar o caminho, cada vez que ela se desviava, o couro da capa ficava quente, pulsante, como se reagisse à direção errada. A estrada era estreita, ladeada por árvores densas. A neblina cobria tudo. Ela ligou o rádio, mais por conforto do que por necessidade, mas o som era só estática. Depois, entre ruídos, surgiu uma voz. A mesma que ouvira no lago. "Volte para onde o reflexo nasceu." E então, silêncio. ****** Horas depois, ela chegou a um vilarejo esquecido, um punhado de casas de madeira afundando na lama. Um letreiro quebrado anunciava o nome apagado: apenas as letras A W L. Restos de “Hollow”. Mas ninguém vivia ali. Ou, se vivia, se escondia bem. Eleanor entrou na igreja local, pequena, coberta de musgo. No altar, não havia cruz. Havia um espelho redondo, antigo, rachado em três partes. Cada fragmento refletia algo diferente: um pedaço do teto, o chão e o rosto dela. Mas os três reflexos se moviam em tempos distintos. Ela se aproximou. E, no fragmento do meio, viu Henry Calder. Velho, exausto, ajoelhado diante de um altar de pedra. “Henry?” A imagem se moveu, a boca articulando palavras sem som. O livro em suas mãos começou a vibrar. As páginas se abriram sozinhas, revelando um mapa antigo, desenhado com tinta escura e seca — o mesmo que ela vira nas visões. No centro, o nome gravado: Templo de Elyon. Logo abaixo, uma frase em latim: “Sub aqua, sub memoria.” (Debaixo da água, debaixo da lembrança.) ******* Eleanor saiu da igreja. O chão era puro lodo, e o som de passos soava atrás dela — mas quando virava, nada via. O ar tornava-se mais pesado a cada metro, o mundo perdendo cor. As árvores começaram a se curvar, as folhas pingando um líquido espesso e translúcido. As gotas formavam círculos perfeitos no solo, e dentro de cada um, um pequeno reflexo. Ela sabia o que era. O selo despertando. ****** Seguiu o mapa até o limite da floresta. Ali, o terreno se abria num vale profundo, coberto por névoa e troncos caídos. E, no centro, uma estrutura de pedra. Cilíndrica. Afundada pela metade. O templo. As colunas estavam cobertas de símbolos idênticos aos do diário de Sarah. E, no centro da ruína, uma porta circular feita de metal antigo, manchado. A forma lembrava uma íris — um olho colossal de ferro. E no centro, uma f***a em espiral. Ela se ajoelhou, passando a mão sobre o símbolo. O metal estava morno, vivo. E o som que veio de dentro era o mesmo que sempre voltava, uma respiração. Baixa. Constante. “O espelho nasceu aqui…” A voz de Sarah ecoou atrás dela. “Antes da cidade, antes dos homens. Elyon foi o primeiro reflexo, o medo do próprio criador.” Eleanor se levantou, virando-se para a aparição. Sarah estava diferente — mais sólida, mais humana, mas os olhos ainda líquidos. “O selo não o destrói, apenas o contém” disse ela. “E agora ele desperta porque o nome foi lembrado.” “Como fecho?” “Não com sangue. Com lembrança. O selo é a história.” Eleanor abriu o livro. “As palavras o acalmam?” “As palavras refletem. E um reflexo nunca suporta outro reflexo. Escreva o nome dele e o devolva ao espelho.” O chão tremeu. O templo começou a vibrar, e a porta de ferro girou lentamente. Da f***a, água escura começou a escorrer. E, do fundo, um som grave, ancestral, atravessou a pedra: "Quem me lembra… me traz de volta." Eleanor segurou o livro com força. As páginas se molharam, e a tinta começou a subir sozinha, formando o nome: ELYON. A estrutura reagiu imediatamente. A água subiu, girando em espiral, e o reflexo da própria Eleanor surgiu na parede oposta. Mas o reflexo sorria e andava por conta própria. “Você não pode me conter” disse a cópia. “Não. Mas posso fazer o mundo esquecer.” Ela pegou a caneta e escreveu no livro, por cima do nome, com traço firme: “Elyon não é.” O som cessou. A água congelou no ar. A porta de ferro se fechou sozinha, com um estalo seco. E o reflexo desapareceu. Sarah sorriu, pálida. “Você se lembrou o suficiente para esquecer.” A névoa começou a recuar. O templo parecia se apagar diante dos olhos delas, dissolvendo-se como tinta na chuva. “Agora vá” disse Sarah. “O selo dorme, e eu… descanso.” “Você vai desaparecer?” “Eu sou o que o mundo precisa esquecer. Mas, enquanto alguém escrever, sempre haverá um reflexo.” Ela se afastou devagar, entrando na névoa até sumir. Eleanor permaneceu ali, sozinha, o livro fechado nas mãos. A floresta estava em silêncio. Nenhum som, nem vento. O ar parecia leve, limpo. Ela abriu o livro mais uma vez. As páginas estavam em branco. Mas, no canto inferior, uma frase se formava, lenta, em letra delicada: “Toda lembrança é uma forma de salvação.” O lago dormia. O selo, refeito. Mas a história — essa — ainda precisava ser contada. E enquanto ela voltava pela estrada envolta em névoa, no espelho retrovisor do carro, algo se movia. Um lampejo. Um olhar. Sereno. Atento. Sarah. Ou o reflexo do mundo, lembrando.
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