A madrugada chegou, mas a cidade não viu o amanhecer.
Darrow’s Hollow estava mergulhada em um silêncio espesso, cortado apenas pelo som irregular da água avançando.
As casas mais próximas à margem já haviam sido engolidas até a metade; os móveis boiavam como corpos sem vida, batendo uns nos outros ao sabor de uma maré que não vinha do vento.
Ethan estava na janela da casa da mãe, observando a linha crescente do lago. Sarah dormia no sofá, exausta, e Henry Calder permanecia imóvel na poltrona, os olhos fixos no nada, murmurando frases antigas em voz baixa.
O diário jazia sobre a mesa. As páginas secas pareciam respirar, abrindo-se de vez em quando como se uma mão invisível as folheasse. Ethan sabia que não era vento.
A criatura usava tudo agora- ar, água, pensamento.
E o lago falava.
Um som baixo começou a se espalhar pela cidade, como um coro distante, uma vibração que subia pelas paredes.
As pessoas que ainda estavam acordadas saíram às portas, atordoadas.
Era um sussurro vindo de todos os lugares: dos canos, das frestas, da terra.
Palavras incompreensíveis que se tornavam cada vez mais nítidas, até que todos entenderam o mesmo:
"O selo quebrou. O sangue chama. O lago vê."
Sarah acordou assustada, os olhos arregalados. “Está ouvindo?”
Ethan assentiu. “Ela está chamando. Mas agora, ela não fala mais comigo. Fala com todos.”
Henry levantou-se com esforço, a bengala tremendo na mão. “O ciclo está completo. Ela atravessou o véu. Agora a cidade é o espelho da água.”
Do lado de fora, a névoa começou a se mover em círculos.
Ethan sentiu o mesmo pulsar do lago em seu peito, o mesmo ritmo.
Cada batimento era acompanhado por uma vibração subterrânea, um som profundo que parecia o de um coração — um coração antigo, enterrado sob Darrow’s Hollow, batendo devagar.
Eles saíram para a rua.
As janelas vibravam, e o ar tinha cheiro de ferro e maresia.
Pessoas se reuniam no centro, atônitas, observando o lago se mover como se respirasse.
E então o sussurro tornou-se voz.
Não uma voz única, mas milhares, falando ao mesmo tempo, em tons diferentes, formando uma frase única:
"O olho vê tudo. E nada pode fechar o que foi aberto."
Ethan cambaleou, levando as mãos à cabeça. As vozes ecoavam dentro dele.
Imagens surgiam em flashes: sua mãe diante do lago, sangue escorrendo pelas mãos, símbolos sendo desenhados na areia. O ritual.
Ela sabia.
Ela tentou impedir.
Mas falhou.
Sarah segurou seus ombros. “Ethan! O que está vendo?”
“Ela tentou me proteger… mas eu sou parte disso. Sempre fui.”
Henry o observava em silêncio. “O sangue Cole é o selo e a chave. É por isso que ela o chama. Quer que abra o que resta do portal.”
A água avançou mais, cobrindo as ruas da parte baixa.
De dentro dela, bolhas subiam em intervalos regulares.
Cada estouro trazia um som.
Palavras.
Sussurros.
Chamados.
E, de repente, o lago começou a ferver.
Ondas pequenas, rápidas, formando redemoinhos.
Ethan sentiu o coração acelerar — não por medo, mas porque o ritmo dentro dele era o mesmo.
O lago batia junto com ele.
Sarah o segurou com força. “Não se aproxima!”
Mas Ethan deu um passo à frente, hipnotizado.
O ar ficou mais frio.
A água, mais escura.
E então, do centro do lago, algo começou a emergir.
Primeiro uma forma disforme, translúcida. Depois, algo que lembrava um rosto — se é que podia ser chamado de rosto.
Uma massa de carne e olhos, movendo-se com fluidez, subindo como fumaça sólida.
Não era corpo, nem sombra.
Era lembrança viva.
As pessoas gritaram e recuaram, mas o som das vozes cobriu os gritos.
"Não temam. Lembrem. O sangue é o caminho."
Ethan caiu de joelhos.
A voz vinha de dentro dele agora, misturada ao som da água.
Ele ouviu o próprio nome, repetido milhares de vezes, até que o som se tornou o bater do próprio coração.
Henry se aproximou, gritando sobre o ruído do vento. “Ethan! Ouça! Ela não é deus, não é espírito! É memória! Alimenta-se daquilo que teme esquecer!”
Ethan ergueu o olhar, os olhos marejados. “E se for isso… o que ela quer que eu lembre?”
O velho respirou fundo. “Tudo. Cada pecado. Cada culpa. Cada morte que a cidade enterrou.”
O lago rugiu.
O vento cessou.
E então, silêncio.
Por um instante, Darrow’s Hollow pareceu parar.
Mas todos sabiam que não era o fim.
Era o respiro antes do horror.
Do meio da água, uma última palavra atravessou a cidade, clara como um trovão:
"Acordem."
E quando o eco se perdeu, o primeiro clarão surgiu sob a superfície — como um olho se abrindo.
O olho do lago.
O clarão sob a superfície espalhou um brilho leitoso pela névoa.
Por alguns segundos, Darrow’s Hollow pareceu iluminada de dentro para fora — uma luz pálida, trêmula, que não vinha do céu nem da terra.
As pessoas pararam onde estavam, presas entre o espanto e o terror.
Então o som voltou.
Um murmúrio coletivo, mais alto, mais definido, como centenas de vozes tentando falar ao mesmo tempo.
Ethan cobriu os ouvidos.
Sarah gritou seu nome, mas ele não ouviu.
As vozes estavam dentro dele, misturadas, sobrepostas.
Eram lembranças.
Lembranças que não eram dele: uma mulher gritando às margens do lago, homens cavando o chão, símbolos sendo desenhados com sangue fresco.
As mesmas cenas que vira no diário, mas agora vivas, pulsantes, reais.
Henry, apoiado na bengala, observava o lago, os olhos marejados. “Ela está mostrando. O que foi esquecido. O que a cidade tentou esconder.”
Ethan cambaleou. “As vozes... elas me conhecem.”
“Porque o sangue as conhece” respondeu Henry.
Do lago, pequenas ondas começaram a avançar, deslizando por entre as ruas.
As pessoas fugiam, mas a água parecia segui-las, silenciosa, como uma criatura rastejando.
Onde tocava, o chão escurecia, como se apodrecesse.
Sarah agarrou Ethan pelos ombros. “Você precisa resistir! Ela quer que você abra o selo!”
“Eu não sei como fechar algo que nem entendo” murmurou ele.
De repente, algo mudou no som.
As vozes se tornaram mais suaves, mais familiares.
Sarah ouviu o próprio nome vindo da água, pronunciado com perfeição.
Ela empalideceu.
“Isso é impossível...”
As vozes começaram a se adaptar, a imitar.
Chamavam pais, filhos, maridos, esposas.
Cada pessoa ouvia o nome de alguém que amava — mesmo que esse alguém já estivesse morto.
E, um a um, começaram a caminhar na direção do lago.
Ethan tentou impedi-los. “Não! É um truque!”
Mas era inútil.
A presença no lago entendia o medo e o desejo de cada um.
Ela não precisava caçar — bastava chamar.
Henry caiu de joelhos. “É assim que ela alimenta o selo. Não mata com força, mata com lembrança.”
Sarah se virou para ele. “Então como quebramos isso?”
O velho levantou o olhar. “Mostrando o que é real. Ela não suporta a verdade.”
O vento aumentou, e a superfície do lago voltou a se mover.
O clarão sob a água se expandiu, revelando o que todos temiam.
Um olho gigantesco, sem pálpebras, girando lentamente, refletindo o contorno da cidade.
Cada piscada fazia as luzes da cidade oscilarem.
Ethan sentiu o chão vibrar com o batimento daquele olho — o mesmo ritmo de seu coração.
Ele começou a entender.
A criatura não era apenas um ser físico.
Era memória viva.
Tudo que a cidade havia enterrado — culpas, mortes, segredos — fluía pelo sangue da família Cole, que havia sido o primeiro elo.
E o lago, o selo, a criatura — tudo era uma mesma coisa.
“Henry” sussurrou Ethan, “se o selo é feito de sangue... posso fechá-lo com o meu?”
O velho respirou com dificuldade. “Pode. Mas o preço é o mesmo de sempre.”
Ethan olhou para o lago.
A criatura o olhava de volta.
Por um instante, ele sentiu que podia compreender os sussurros, traduzir o que o lago dizia.
Não era uma ameaça.
Era um convite.
"Venha. Lembre-se de mim."
Sarah o puxou. “Não escuta! É o medo falando!”
Mas Ethan já sabia que não era só o medo.
Era história.
E toda história pedia testemunha.
O vento cessou.
A água ficou lisa.
E o olho começou a fechar lentamente, como se esperasse a decisão dele.
O olho sob o lago pulsava como um coração do mundo. Cada batimento fazia o ar vibrar, o chão estremecer, as luzes da cidade oscilarem.
Ethan não conseguia desviar o olhar. Havia algo hipnótico naquela presença — como se o próprio universo respirasse por meio da criatura.
Sarah o segurava pelos ombros, tentando mantê-lo consciente. “Olhe pra mim, Ethan! Não pra ela!”
Mas era tarde. As vozes dentro dele não eram mais ruído. Eram memórias, e elas falavam em sua mente como lembranças próprias.
O som da chuva em 1887. O choro das mulheres na beira do lago. Homens cavando com as mãos, o sangue escorrendo pelos dedos, o selo sendo desenhado na lama.
O lago sempre exigira sangue — o sangue dos Cole.
Henry estava de joelhos, rezando palavras antigas, fragmentos de orações esquecidas.
“A água vê. A água guarda. A água cobra…” murmurava.
As vozes se intensificaram, transformando-se em gritos que pareciam ecoar de todos os lados. As pessoas começaram a correr, tentando fugir, mas a névoa as seguia como um véu vivo.
E então o lago rompeu.
A água subiu sem aviso, uma onda densa, escura, silenciosa. Invadiu a praça, arrastando cadeiras, bancos, portas, tudo que estava no caminho.
E no centro da enchente, ela veio.
A criatura.
Não havia forma definida.
Era uma massa de carne e sombra, feita de lembranças, olhos e bocas que se moviam em direções diferentes, falando todas as vozes da cidade ao mesmo tempo.
Alguns olhos choravam, outros riam, outros apenas olhavam.
Mas todos o encaravam.
Ethan sentiu o sangue gelar.
Ela falava sem som, mas ele entendia.
"O selo é tua memória. Abre-o e tudo se lembra."
Sarah o puxou para trás, mas o chão sob eles começou a ceder.
A água se infiltrava pelas frestas, o ar se tornava pesado, o cheiro de ferro e podridão quase insuportável.
Ethan caiu de joelhos, o diário escorregando de suas mãos e flutuando sobre a água. As páginas se abriram sozinhas, e as palavras começaram a se mover, reescrevendo-se diante de seus olhos.
“O sangue fecha o que o medo abriu.”
Henry ergueu a cabeça, os olhos cheios de lágrimas. “Ela te escolheu, Ethan. Ou você sela agora, ou a cidade se torna parte dela.”
Mas o lago não esperou.
De dentro da massa escura, algo começou a se formar — uma figura humana, alta, magra, translúcida, feita de água e sombra.
Tinha olhos. Olhos idênticos aos de Ethan.
Sarah recuou, horrorizada. “É você.”
Ethan entendeu. A criatura não apenas observava — ela copiava.
Cada olhar trocado com o lago, cada medo sentido, cada lembrança revivida era um fragmento entregue a ela.
E agora, ela o refletia por completo.
A figura deu um passo para fora da água, a pele escorrendo em filetes que se misturavam à chuva.
O chão tremeu.
O vento cessou.
E toda Darrow’s Hollow prendeu o fôlego.
Ethan olhou para o reflexo vivo à sua frente.
A cópia abriu a boca e falou com a voz dele.
“Você é o selo.”
A frase ecoou dentro da cabeça de Ethan como uma lâmina.
Ele entendeu, enfim, o significado do “olho na água”.
O lago não via o mundo. Via dentro das pessoas.
E tudo que refletia, tomava.
A criatura estendeu uma das mãos.
Ethan, como em transe, ergueu a sua.
As duas se tocaram.
O toque foi frio, profundo, e uma onda de imagens o atravessou — séculos de dor, rituais, gritos, culpa.
E, no fim, silêncio.
Sarah gritou seu nome, mas o som se perdeu.
O corpo de Ethan começou a tremer, e por um instante, o reflexo diante dele também.
Depois, ambos pararam.
O lago ficou imóvel.
E o olho, no fundo, se fechou.
O silêncio que veio depois foi absoluto.
A névoa começou a recuar.
A água retrocedeu, voltando ao leito.
Sarah olhou em volta, o coração acelerado.
Henry ainda estava ajoelhado, murmurando.
Mas Ethan... Ethan não estava mais lá.
O diário flutuava sobre a água calma, aberto na última página, onde uma nova frase havia surgido:
“O selo foi pago. O olho dorme.”
Sarah caiu de joelhos, as lágrimas se misturando à chuva.
O lago permanecia imóvel, pacífico, como se nada tivesse acontecido.
Mas, por um instante, no reflexo da superfície, ela jurou ver um olho se abrindo — só o suficiente para lembrá-la de que nada dorme para sempre.