A chuva começou a cair pouco antes do amanhecer.
Grossa, pesada, constante.
Mas o que incomodava não era o som — era o cheiro.
A água que caía sobre Darrow’s Hollow não cheirava a chuva.
Cheirava ao lago.
Tom Grady caminhava pela rua principal com o chapéu encharcado, o coldre vazio e a expressão de quem carregava uma culpa antiga.
Os moradores observavam das janelas, em silêncio.
Ninguém mais falava do que aconteceu, mas todos sabiam: cada gota daquela chuva era uma lembrança voltando à superfície.
Sarah o esperava na casa de Henry.
O velho dormia na poltrona, o rosto pálido e o diário aberto sobre o colo.
A chama da lamparina tremia, projetando sombras que pareciam se mover devagar pelas paredes.
“Você demorou” disse ela.
Tom tirou o chapéu, torcendo o tecido encharcado.
“Tive que ir até o arquivo da prefeitura.”
“E?”
Ele hesitou antes de responder.
“Há registros. Antigos. De 1887. A primeira vez que o selo quebrou.”
Sarah se aproximou. “E o que encontrou?”
Tom abriu uma pasta de couro, tirando de dentro folhas amareladas e uma fotografia desbotada.
Mostrou a ela.
Na imagem, um grupo de homens à beira do lago.
No centro, um mais jovem, com o mesmo rosto de Tom.
Mesmo olhar.
Mesmo sobrenome.
Ela franziu o cenho. “Seu ancestral?”
Tom assentiu. “Edward Grady. O primeiro xerife de Darrow’s Hollow. Ele estava aqui quando tudo começou.”
Ele espalhou as folhas sobre a mesa.
Eram anotações — registros de rituais, confissões, ordens de prisão que nunca chegaram a ser executadas.
“Meu tataravô fez parte do culto que tentou controlar o selo. Eles acreditavam que poderiam usar o poder do lago para proteger a cidade... mas não entenderam o que estavam libertando.”
Sarah passou os dedos sobre as páginas. “Então os Grady… ajudaram a trazer aquilo pra cá?”
Tom fechou os olhos por um momento. “Sim. O selo foi criado para prender. Mas eles o romperam tentando dominá-lo. E, desde então, o sangue dos Grady tem sido amaldiçoado.”
O som da chuva aumentou, batendo com força nas telhas.
Do lado de fora, a água escorria pelas ruas, formando poças escuras que pareciam pulsar.
Cada relâmpago iluminava brevemente a superfície — e Sarah jurou ver algo se movendo dentro delas, como pequenos olhos que se abriam e fechavam.
“Meu avô dizia que o lago sempre cobra o que é seu” continuou Tom. “Disse que quando o selo dormisse, um Grady deveria vigiá-lo. Por isso fiquei. Por isso nunca fui embora.”
Sarah olhou para ele, a voz firme apesar do medo.
“E agora?”
Tom respirou fundo. “Agora entendo que não era vigiar. Era pagar. E está chegando a hora.”
O velho Henry se mexeu na poltrona, abrindo lentamente os olhos.
“Vocês sentiram?” perguntou, a voz rouca.
“O quê?” respondeu Sarah.
“A chuva. Ela não vem do céu. Vem do lago.”
Tom olhou pela janela.
A água escorria do telhado em pequenos filetes grossos, densos demais para serem simples chuva.
No vidro, uma película fina de umidade se acumulava, e sob ela, algo se movia — como se a água respirasse.
Sarah se aproximou, tocando o vidro com a ponta dos dedos.
O frio a fez estremecer, mas o que a fez recuar foi o que viu:
seu reflexo piscou — mas ela não.
“Tom…”
Ele foi até ela.
Quando olhou, viu o mesmo.
Os reflexos estavam vivos.
E, em cada gota que escorria pelo vidro, pequenos olhos se abriam e fechavam, observando.
Henry levantou-se com esforço.
“A criatura nunca foi um corpo. Foi sempre um espelho. E agora ela usa a água como porta.”
Do lado de fora, a chuva aumentou, transformando-se em uma cortina grossa, viva.
E, por um instante, todos ouviram — não com os ouvidos, mas com a mente — a voz familiar e distante que parecia vir de dentro de cada gota:
"O sangue guarda. O medo guia. A água lembra."
Tom virou-se para o diário, a expressão decidida.
“Se ela vem pelo sangue, talvez o sangue possa pará-la outra vez.”
Sarah o encarou. “Você não vai fazer isso.”
“Talvez seja o único jeito.”
“O Ethan tentou, e veja o que aconteceu!”
Tom respirou fundo, a voz firme, mas trêmula. “Ethan era o selo. Eu sou o erro. Talvez ela queira o que começou com os Grady.”
Henry assentiu devagar, com pesar. “Ela sempre volta à origem.”
O trovão rasgou o céu, e a luz piscou.
Quando voltou, a janela estava coberta de olhos — dezenas, centenas — todos fixos neles.
E, de dentro da casa, uma única gota caiu do teto, estourando no chão como se tivesse peso.
Da poça que se formou, algo sussurrou:
"O guardião deve abrir."
Tom olhou para os dois, o semblante endurecido.
“Então é isso. Ela me escolheu.”
Sarah sentiu o frio subir pela espinha, enquanto a casa inteira parecia respirar junto com o lago.
E lá fora, no meio da tempestade, algo começou a andar — passos lentos, pesados, molhados — aproximando-se da porta.
O som dos passos do lado de fora era metódico, arrastado.
Cada impacto contra a madeira molhada fazia a casa estremecer, como se algo pesado demais para ser humano estivesse se movendo lentamente em direção à varanda.
Sarah segurou a lamparina com as duas mãos.
Tom encostou o ouvido na porta.
Silêncio.
Depois, o som de água escorrendo, pingando do batente, formando pequenas poças aos pés da soleira.
Henry murmurou baixinho: “Ela anda pelas formas que restaram do selo. Onde o sangue abriu, ela passa.”
De repente, um estalo veio do outro lado — a madeira se curvando sob um peso imenso.
Tom recuou e apontou a arma, mesmo sabendo que seria inútil.
A fechadura girou sozinha.
A porta se abriu um palmo, e o vento frio entrou, trazendo o cheiro úmido do lago.
Do lado de fora, nada.
Somente chuva e névoa.
Sarah se aproximou devagar, os olhos fixos na escuridão.
“Tem alguém aí?”
Nenhuma resposta.
Somente um eco distante, que não parecia humano:
"Guardião."
A palavra veio dentro da cabeça dos três ao mesmo tempo.
Henry segurou a bengala com força.
“Ela o chamou.”
Tom respirou fundo e saiu, deixando que a chuva o atingisse em cheio.
A água escorria pelo rosto e pelas roupas, mas parecia mais densa, mais viva.
Ele olhou em volta — a rua estava deserta, mas cada telhado, cada janela, pingava em uníssono, o som das gotas formando um ritmo cadenciado.
“Sou eu,” disse em voz alta. “O guardião. O que você quer?”
A chuva parou por um instante.
E, no silêncio, uma figura tomou forma no meio da rua — feita de água e sombra, alta, sem rosto, mas com olhos brilhando como faróis sob a superfície líquida.
Tom ficou imóvel.
“Meu sangue abriu o selo” disse ele. “Eu posso fechá-lo.”
A figura moveu a cabeça, devagar, como se o estudasse.
A voz veio de dentro da chuva.
"Teu sangue guardou. Teu medo guiou. Agora teu corpo será a ponte."
A água ao redor dele começou a se mover em espirais, subindo pelas botas, pelas pernas, até a cintura.
Sarah gritou da porta. “Tom!”
Ele levantou a mão. “Fiquem dentro da casa!”
Mas a água já o envolvia.
O corpo da entidade se esticou, alongando-se, como uma sombra líquida tentando moldar-se ao redor dele.
Tom lutou, mas cada movimento era inútil — a chuva o prendia, penetrava a pele, infiltrava-se nas veias.
E então vieram as visões.
Imagens rápidas, violentas:
— Homens antigos, ajoelhados diante do lago.
— Um selo sendo desenhado com o sangue dos Grady.
— Crianças afogadas, olhos abertos, encarando o céu.
— O rosto de Ethan, sorrindo e desaparecendo na água.
"Guardião" dizia a voz dentro dele. "Teu medo é a chave. Abre-me."
Ele gritou, tentando resistir, mas o som se perdeu no rugido da tempestade.
A água se elevou em torno dele, formando um vórtice que se ergueu no meio da rua, girando com força sobrenatural.
As janelas das casas estouraram, e as lâmpadas se apagaram uma a uma.
Sarah correu até a varanda, o vento quase a derrubando.
Dentro do vórtice, viu Tom — o rosto contorcido, os olhos virados.
E então, por um segundo, o olhar dele se fixou nela.
“Feche… o selo.”
O redemoinho explodiu em uma chuva densa e barulhenta.
Quando cessou, o xerife havia desaparecido.
No chão, onde ele estava, restava apenas uma mancha escura em espiral — e no centro, o distintivo dele, deformado, coberto de limo.
Henry se aproximou, ofegante. “Ela o levou.”
Sarah olhou para a mancha, o rosto molhado de lágrimas e chuva. “Ou ele se tornou parte dela.”
A chuva diminuiu, transformando-se em garoa.
Mas a cidade inteira parecia respirar mais fundo, como se tivesse engolido algo novo.
O lago estava crescendo de novo, mesmo sem ondas.
A água voltava a se infiltrar pela terra.
E, sob o murmúrio da tempestade, Sarah ouviu.
Não uma voz, mas o som de passos.
Molhados, pesados, vindo do norte.
A coisa que andava agora tinha a farda de um xerife.
*************
A tempestade cessou ao amanhecer.
Mas a cidade continuava molhada, mesmo onde a chuva não tocava.
As ruas brilhavam com uma umidade que parecia vir de dentro da terra, não do céu.
Os moradores, trancados em casa, cochichavam histórias de algo andando pela estrada principal — pesado, lento, com o som de botas arrastando lama e o tilintar de um distintivo batendo contra o peito.
Sarah e Henry aguardavam na cabana.
Ninguém dormira.
A lareira ardia fraca, incapaz de afastar o frio que parecia vir das paredes.
Henry observava a água pingando do teto.
Cada gota caía em intervalos perfeitos, ritmados, como um relógio.
“Ela anda” disse o velho. “E usa o corpo do xerife para lembrar o caminho.”
Sarah não respondeu.
O diário estava sobre a mesa, aberto, e no canto da página surgira uma nova frase, escrita em tinta escura — fresca demais para ser antiga:
“O guardião abriu. Agora o espelho caminha pelas terras.”
Ela respirou fundo, tentando conter o tremor. “Ele está vivo?”
Henry ergueu o olhar, cansado. “Parte dele, talvez. Mas o que anda não é mais o homem.”
Um som veio da estrada.
Lento, arrastado.
O velho levantou-se, pegando a bengala.
Sarah foi até a janela.
Entre a névoa fina, uma silhueta caminhava.
Alta, imóvel, mas avançando um passo de cada vez, com a cabeça ligeiramente inclinada.
O casaco de Tom pingava, e sob o chapéu, o rosto estava escuro, indistinto.
Mas os olhos… os olhos brilhavam, frios, refletindo a luz fraca da lamparina.
Ele parou diante da casa.
O som de suas botas molhadas ecoou até o último canto da cabana.
Sarah sentiu o peito apertar.
“Tom?”
O vulto inclinou a cabeça.
Quando falou, a voz era dele — e não era.
Baixa, lenta, carregada de ecos, como se várias vozes falassem ao mesmo tempo.
“Sarah.”
Ela deu um passo à frente, o medo lutando com a esperança.
“Você está aí?”
O vulto estendeu a mão.
No pulso, as veias pulsavam em espiral, movendo-se sob a pele, como se algo vivo rastejasse dentro.
Henry puxou Sarah para trás. “Não o toque.”
O xerife — ou o que restava dele — olhou para o velho.
“Você… sabia.”
Henry assentiu. “Eu guardei o segredo.”
“E agora… o lago quer mais.”
O som da água se intensificou.
Do chão, pequenas gotas começaram a brotar, subindo em vez de cair, formando filetes que se juntavam ao redor dos pés do xerife.
Cada gota continha um reflexo — pequenas versões de rostos conhecidos, piscando e sorrindo.
Sarah recuou, ofegante.
“Meu Deus…”
Henry manteve a voz firme. “Ela o transformou em condutor. Ele é o caminho.”
Tom deu um passo à frente.
A cada passo, o chão ficava úmido, a madeira rangendo como se fosse apodrecer.
“Henry Calder” disse a coisa, com a voz dele. “O último guardião do ritual. Diga o que escondeu.”
O velho firmou a bengala. “Se eu disser, ela vence. Se eu calar, ela espera.”
O xerife inclinou a cabeça.
“Então espere.”
A luz da lamparina piscou.
O vento soprou, e a chama se apagou.
No escuro, o som era de respiração — úmida, pesada, perto demais.
Sarah sentiu algo tocar o ombro.
Virou-se.
Nada.
Mas a voz estava ali, ao pé do ouvido:
"O sangue sabe. Mostre o último selo."
Ela recuou até a parede.
“Henry…”
Mas o velho já não estava de pé.
Estava ajoelhado, as mãos no chão, desenhando algo com o dedo.
Um símbolo.
O mesmo das páginas do diário.
O xerife observava.
Os olhos dele — ou da coisa — brilhavam cada vez mais forte.
Henry terminou o desenho e ergueu o olhar, ofegante.
“É aqui. O selo final está aqui, sob Darrow’s Hollow.”
O som do lago veio como um trovão distante, ecoando por toda a cidade.
O chão tremeu.
O xerife se aproximou mais.
“Então mostre-me.”
O velho ergueu a cabeça, os olhos cheios de lágrimas.
“Você não vai querer ver.”
Tom sorriu — um sorriso que se abriu largo demais, esticando o rosto até as orelhas.
“Mas eu já vejo.”
Do teto, a água começou a cair em torrentes, e o chão da cabana se abriu sob seus pés, revelando a escuridão abaixo — uma rede de túneis e rochas pulsantes, cobertas de símbolos que brilhavam no escuro.
O som da água vinha de lá de baixo, profundo, vivo, respirando.
Sarah segurou a parede para não cair.
Henry gritou: “É o coração do selo! O lago nasceu aqui!”
O xerife deu mais um passo.
As botas bateram contra a madeira.
E então, ele estendeu as mãos e murmurou, com a voz da criatura:
"O guardião lembra. O selo se abre."
O chão cedeu completamente.
A cabana desabou.
E tudo se encheu de água.
*************
Quando Sarah abriu os olhos, estava sozinha, boiando entre os destroços.
A chuva havia parado.
O lago agora cobria o terreno da cabana, unindo-se à margem principal.
No centro, onde Henry e Tom haviam desaparecido, havia apenas uma espiral na água — lenta, hipnótica, girando para dentro.
E do fundo, um som novo começou a subir.
Baixo.
Constante.
Como passos pesados andando sob a superfície.
O selo estava aberto outra vez.
E o guardião — o xerife — andava por dentro dele.