4. Sons Na Floresta

2424 Words
A manhã seguinte chegou cinzenta, pesada, saturada de um silêncio denso. Era como se Darrow’s Hollow ainda carregasse o peso da noite anterior — um cansaço que pairava no ar, lento e úmido, infiltrando-se nas paredes e nos ossos. A névoa rastejava pela rua principal, cobrindo as cercas e os postes, dissolvendo as formas familiares da cidade num véu de indecisão. Ethan Cole acordou com a sensação incômoda de estar sendo observado. Não era o tipo de olhar que se sente vindo de longe, escondido atrás de janelas. Era algo mais íntimo, mais próximo — como se algo o observasse do quintal, debaixo da terra, do outro lado do vidro da janela. Ele ficou deitado por alguns segundos, tentando afastar a sensação. Mas ela persistia. Havia um som fraco vindo de fora, como um estalo seco, depois outro, e outro. Talvez o vento. Talvez não. Quando se levantou, a luz fria do amanhecer se infiltrava pelas cortinas. A casa da mãe ainda tinha o cheiro de mofo antigo e café adormecido. Ele passou a mão pelo rosto, vestiu a jaqueta e pegou as chaves. Tom Grady havia passado cedo pela cidade, supervisionando a área da escavação, mas evitara contato. Ethan sabia o porquê. Mesmo o xerife não queria se aproximar daquele lugar depois do que encontraram na noite anterior. Mas ele precisava ir. Precisava ver o lago. Precisava entender o que Henry Calder quisera dizer sobre “o olho aberto”. *******†*********†*******†******†**** O caminho até a floresta era uma trilha de barro e silêncio. Cada passo produzia um som molhado, afundando na lama fria. O ar tinha cheiro de terra molhada, de folhas em decomposição e — algo mais. Um odor metálico, cortante, que lembrava ferrugem. Ou sangue antigo. As árvores formavam uma parede densa, o tipo de escuridão que engole o som. Mesmo os pássaros pareciam ausentes. Ethan caminhava devagar, atento a cada ruído, a cada mudança sutil no ar. Sentia que algo o acompanhava, não em movimento, mas em atenção. Um olhar invisível, disperso entre os troncos, seguindo-o passo a passo. Quando chegou à clareira da escavação, o coração dele apertou. As lonas haviam sido rasgadas — não cortadas por mãos humanas, mas dilaceradas, como se algo houvesse passado por ali durante a noite. As estacas de madeira estavam quebradas, e o chão, remexido. A lama, antes sólida, se movia lentamente, pulsando, como se respirasse. E então ele viu: os símbolos que haviam sido escavados ainda brilhavam sob a superfície lamacenta. O sangue seco do dia anterior escorria entre eles, fresco novamente. Vivo. Ethan engoliu em seco. Deu um passo para trás. Do fundo da floresta, veio um som. Um estalo. Depois outro. Não era o vento. Nem galhos caindo. O som era ritmado, consciente — como se esperasse que alguém o ouvisse. Ethan prendeu a respiração. Os estalos se moviam, contornando-o, alternando distância e proximidade, como passos. Ele acendeu a lanterna. O feixe de luz cortou a névoa em linhas brancas. Nada. Mas o cheiro se intensificou. Ferro. Podridão. A umidade da terra misturada ao odor adocicado de carne apodrecida. Ele deu um passo adiante. O som cessou. Outro passo. O som retornou, mais perto. A floresta o cercava. O silêncio ganhava corpo. Cada tronco parecia pulsar, respirar. Ethan se lembrou do que Henry dissera na noite anterior: “A terra lembra.” Talvez estivesse lembrando agora. *******†*********†*******†******†**** O arranhar começou devagar. Unhas — ou algo que imitava unhas — riscando madeira. O som vinha da direita, depois da esquerda, depois de trás. Um arrepio percorreu a espinha de Ethan. Aquela presença o cercava. Grande. Silenciosa. Paciente. E então o primeiro grito. Não humano. Não completamente. Um som que misturava dor e ecos, um eco que parecia vir das profundezas do chão. Ethan se abaixou, tentando controlar a respiração. O grito se repetiu, mais próximo, tão próximo que parecia vibrar dentro do peito dele. O coração martelava. Os pulmões queimavam. Cada fibra de seu corpo gritava para correr. Mas o instinto dizia o oposto: não se mova. A luz da lanterna tremia. Ele a ergueu. Por um instante, viu uma silhueta. Alta. Inclinada. Fluida. Como se o corpo fosse feito de água e sombra. E, no instante em que a luz a tocou, um reflexo brilhou. Um olho — só um — se abriu. E olhou diretamente para ele. Ethan recuou. Os estalos cessaram. O ar ficou espesso, denso, como se o mundo prendesse o fôlego. Então, algo se moveu atrás dele. Rápido. Um sopro úmido passou por seu pescoço. Ele girou, mas não havia nada. A floresta, viva, respirava em seu lugar. E o lago, lá ao fundo, imóvel, refletia o pouco de luz que restava — pequenas ondulações que lembravam pupilas. Ethan soube, com uma clareza instintiva, que aquilo não era o fim. Era o início. O que dormia sob Darrow’s Hollow começava a se mover. *******†*********†*******†******†**** Ele caminhava com cautela, o feixe de luz abrindo caminho entre a neblina. Cada som parecia responder aos seus passos, como se a floresta fosse um espelho sonoro. Um estalo. Um sopro. Um sussurro. “Ethan…” Ele parou. O nome ecoou entre as árvores. A voz era impossível. Nem humana, nem animal. Mas familiar. “Ethan…” Era um chamado. Suave. Hipnótico. Como se a floresta quisesse lembrá-lo de algo que ele havia esquecido. A neblina se fechou em torno dele. Os troncos perderam forma. O chão ficou movediço, mole, como se respirasse. Algo roçou sua perna — escorregadio, frio — mas, ao olhar, só viu lama. Do lago, veio outro som. Uma ondulação súbita, densa, como se algo colossal se movesse sob a superfície. Ethan se aproximou da margem. O reflexo da névoa na água se distorceu, e, por entre as ondas, ele viu — ou imaginou ver — formas que não eram de peixes. Eram rápidas demais. Profundas demais. Um novo arranhar ecoou. Mais próximo. Mais violento. Ethan apontou a lanterna. A luz cortou o breu. Uma sombra imóvel o observava entre os troncos. Grande, alongada, quase humana. Mas errada. Ele piscou. A sombra desapareceu. *******†*********†*******†******†**** O frio penetrou até os ossos. Ethan respirava rápido, tentando pensar. Queria correr, mas não podia. Sabia que, se corresse, algo o seguiria — e não apenas pelas trilhas da floresta. Então, ouviu. Um grito abafado. Humano. Vindo do solo. Como se alguém estivesse preso sob a terra, lutando para sair. “Não… não pode ser real…” A frase escapou antes que ele pudesse contê-la. E, de repente, silêncio. Absoluto. O som da própria respiração era alto demais. O coração batia no ouvido. E, mesmo sem ver, ele sabia: algo o observava. Um olhar invisível. Antigo. Curioso. A floresta inteira parecia inclinada em direção a ele. Os galhos, as folhas, o ar — tudo pulsava. Então, movimento. Algo se arrastando. E uma forma que surgia da névoa. Um braço — ou algo que lembrava um. Alongado. Viscoso. Pulsando, como se respirasse. Ethan recuou, tropeçando na lama. Caiu de costas. A lanterna caiu, o feixe girando em espiral antes de apagar. O braço recuou tão rápido quanto aparecera. E o som voltou — um sussurro coletivo, vindo de todos os lados. "Voltamos para você." Ethan sentiu o frio subir pela espinha. O mesmo olhar da escavação. O mesmo que Henry descrevera — o olho do lago, o olho da terra — agora espalhado, múltiplo, vivo. Cada estalo. Cada sombra. Cada sopro. Tudo respirava em uníssono. Ele se levantou, cambaleante, e correu. Os sons o seguiram, não atrás, mas ao redor, acompanhando-o como uma respiração gigante. A névoa fechava-se como uma muralha viva. A floresta parecia querer engoli-lo de volta. Mas, finalmente, ele viu o contorno da estrada. E atravessou a linha invisível que separava o bosque da cidade. O ar mudou. Mais leve. Mais frio. Mas o silêncio continuava. Darrow’s Hollow ainda dormia. Ethan ficou parado, ofegante, coberto de lama. A floresta atrás dele parecia imóvel. Mas ele sabia. Nada dormia mais. Algo havia despertado — e não pretendia voltar a dormir. Um vento gelado soprou do lago. E nele, um sussurro, suave, quase humano: "Estamos esperando." Ethan fechou os olhos. Aquela não seria a última vez que ouviria a voz. Sabia disso. O horror de Darrow’s Hollow estava apenas começando. E, no fundo da floresta, algo respondeu, um som leve, úmido, compassado, como um coração aprendendo a bater. Ping. Ping. Ping. Ethan permaneceu imóvel. O som do próprio coração parecia preencher o espaço, batendo alto, compassado, confundindo-se com o eco que vinha da floresta. Ping. Ping. Ping. O mesmo som. O mesmo ritmo. Como se algo, em algum lugar da terra, respirasse em sincronia com ele. A névoa o cercava completamente. Era impossível distinguir o limite entre o chão e o ar. Tudo era um único véu cinzento, úmido, que se movia em ondas lentas. O cheiro de ferro ainda estava lá — mais forte, mais próximo — misturado ao odor doce de vegetação apodrecida. Aquela combinação de morte e vida o deixava nauseado. Ele deu um passo para trás. Depois outro. Cada movimento produzia um som que parecia ecoar além do real, como se a floresta imitasse seus gestos, repetindo os ruídos com um atraso de segundos. Um reflexo. Um espelho sonoro. O vento soprou e, por um instante, a névoa se abriu. Ethan viu o lago à distância — uma faixa escura e imóvel, como um olho aberto dentro da terra. A superfície estava lisa demais, sem uma única ondulação, e ainda assim, parecia pulsar levemente, como se respirasse. Ele sentiu o estômago revirar. Sabia que o que quer que estivesse ali embaixo não dormia mais. A voz voltou. Tão baixa que parecia nascida dentro da cabeça dele. "Ethan…" O som veio carregado de eco, como se fosse o sussurro de alguém que falava dentro de um túnel. Não era uma voz desconhecida. Tinha o tom que reconheceu de longe, algo entre lembrança e medo. Podia ser a voz da mãe. Ou apenas a floresta repetindo o que ele temia ouvir. "Ethan… volta pra casa…" O ar ficou mais frio. Os pelos em seus braços se arrepiaram. A voz era suave, quase gentil, mas cada sílaba vinha acompanhada de um peso invisível, uma pressão que parecia empurrá-lo para trás. Ele tentou responder, mas a garganta não obedeceu. Só um som rouco saiu, engolido pela névoa. Os estalos retornaram. Um, dois, três — vindo de diferentes direções. Depois, silêncio. E então, arranhões. Longos, lentos, como unhas riscando pedra. Ethan ergueu a lanterna. O feixe tremeu. Nada à frente. Mas o som continuava. Atrás. À esquerda. À direita. Cada vez mais perto. Cada vez mais fundo. Até que um som diferente o fez parar: o farfalhar de folhas, o peso de algo grande movendo-se sobre a lama. Não um animal. Havia ritmo, intenção, um compasso quase humano nos passos. Ele sentiu um frio súbito, como se algo tivesse passado por dentro dele. O corpo inteiro estremeceu. O som parou. E então, do chão, veio um novo ruído — um gemido abafado, distante, vindo de baixo. Como se alguém, preso sob camadas de terra, tentasse gritar. Ethan caiu de joelhos, encostando a mão no solo. A terra estava morna. Viva. Pulsava em intervalos regulares. Ele se levantou rápido, o pavor dominando o corpo. As pernas tremiam. A mente gritava que aquilo não era real. Mas tudo nele sabia que era. Um novo estalo. Depois um sussurro. "Voltamos para você." A frase parecia vir de todos os lados. Do ar, das raízes, do lago distante. Mil vozes, sussurrando em uníssono, como se a floresta inteira respirasse o mesmo pensamento. O som o envolveu. Era impossível distinguir se vinha de fora ou de dentro da cabeça. A lanterna piscou. Uma vez. Duas. E na terceira, ele viu. Entre as árvores, o contorno irregular de algo que se movia devagar, sem forma definida. Era sombra líquida, fluindo entre os troncos. Cada vez que a luz tocava, pequenos brilhos se acendiam na escuridão — olhos. Dezenas deles. Abrindo e fechando ao mesmo tempo, refletindo a lanterna como fragmentos de vidro molhado. Ethan recuou um passo. O chão cedeu um pouco sob o peso do corpo. Um som úmido o acompanhou — como respiração feita de lama. O contorno se aproximou, os olhos piscando em ritmos diferentes. E então, desapareceu. Sumiu por completo, como se nunca tivesse estado ali. O silêncio voltou, denso, opressor. O ar parecia se comprimir ao redor dele, sufocando. Ethan percebeu que estava de costas para a estrada. De algum modo, instintivamente, o corpo o havia guiado de volta. Aos poucos, começou a caminhar, sem correr, com passos curtos e cautelosos. A floresta o observava. Cada tronco, cada folha, parecia inclinar-se ligeiramente à medida que ele passava. Ao longe, um som final rompeu o ar — suave, frio, carregado pelo vento: "Estamos mais perto do que imagina." Ethan parou. A frase o atingiu como uma lâmina. Não sabia se era aviso, ameaça ou promessa. Olhou para trás. A névoa cobria tudo. Mas teve certeza de que algo ainda o seguia, observando-o por entre as árvores. O medo subiu como um nó na garganta. E ele soube, sem precisar de mais sinais, que nada em Darrow’s Hollow voltaria a ser o mesmo. O que estava na floresta — o que respirava sob o lago — havia acordado. E agora o chamava pelo nome. *******†*********†*******†******†**** Quando chegou à estrada, o corpo tremia. As mãos estavam sujas de lama, e a lanterna, quase sem bateria. O horizonte começava a clarear, mas a luz não trazia conforto. A cidade ainda dormia, alheia ao que despertava sob seus pés. Ethan se virou uma última vez em direção à floresta. A névoa parecia menos densa, mas o som permanecia. Sutil. Quase imperceptível. O mesmo ritmo, repetido ao longe. Ping. Ping. Ping. O som do lago. O som do coração. O som da coisa viva que os dois compartilhavam. Ethan respirou fundo, o frio queimando os pulmões. Sabia que aquele era apenas o começo. O que se movia nas sombras não era mais apenas memória. Era presença. E, enquanto caminhava de volta à cidade, o vento soprou um último sussurro entre as árvores — leve, quase carinhoso, mas carregado de promessa: "O olho está aberto." E o lago, distante, pareceu responder. Com um brilho leve, dourado, movendo-se sob a superfície.
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