O sol voltou a nascer em Darrow’s Hollow, mas a luz não trouxe alívio.
As ruas estavam cobertas por lama seca e destroços.
O lago havia recuado, deixando marcas escuras nas paredes das casas, como se tivesse tentado arranhar a cidade antes de voltar a dormir.
Os sobreviventes caminhavam em silêncio, olhando o chão, desviando do espelho d’água sempre que possível.
Ninguém falava sobre o que acontecera.
Era como se a cidade inteira tivesse feito um pacto mudo de esquecimento.
Sarah vagava entre os escombros da praça, o diário de Ethan apertado contra o peito.
O papel estava manchado de água, mas ainda legível.
Na última página, a frase permanecia nítida: “O selo foi pago. O olho dorme.”
Mas ela sabia que dormir não era o mesmo que morrer.
Tom Grady passou por ela, os olhos fundos, o rosto envelhecido.
“Estão dizendo que acabou,” murmurou. “Que o lago se acalmou, que o pior passou.”
Sarah olhou para ele. “Você acredita nisso?”
O xerife respirou fundo, sem responder.
Do outro lado da cidade, Henry Calder observava o lago da varanda de sua cabana.
O vento soprava fraco, o suficiente para formar pequenas ondulações na superfície.
Ele sabia que aquilo não era vento.
Era respiração.
*******************†*****
À noite, a cidade tentou voltar à rotina.
Algumas luzes se acenderam.
As crianças foram chamadas para dentro de casa.
Mas o silêncio continuava.
Um silêncio denso, cheio de expectativa.
Sarah sentou-se na sala, encarando o diário sobre a mesa.
Cada palavra parecia pulsar.
Ela passou os dedos sobre a capa e, sem saber por quê, abriu na primeira página.
O papel rangeu.
Entre as linhas antigas, algo novo havia surgido — uma frase escrita com a mesma caligrafia irregular de Ethan:
“O que dorme sempre sonha. E o sonho anda.”
Ela soltou o livro como se tivesse sido queimada.
O som ecoou pela casa.
Por um momento, tudo ficou quieto.
Depois, algo se moveu no andar de cima.
Um passo.
Depois outro.
Lento, arrastado.
Sarah ficou imóvel, o coração acelerado.
A escada rangeu.
E, então, uma voz.
“Sarah.”
Ela se levantou de um salto.
Aquela voz era inconfundível.
Ethan.
Mas não podia ser.
Ela vira o lago levá-lo.
Vira o selo se fechar.
“Sarah” repetiu a voz, mais baixa agora, como se viesse do final do corredor.
Ela deu um passo à frente, depois outro, sentindo o chão gelado sob os pés.
A luz da lamparina tremia, lançando sombras distorcidas nas paredes.
“Ethan?”
Silêncio.
Depois, o som — não exatamente passos, mas algo que arranhava o chão, como unhas molhadas sobre madeira.
Sarah recuou.
“Quem está aí?”
Do escuro, algo respondeu.
Uma respiração.
Depois, um sussurro idêntico ao do lago.
"O olho dorme... mas o corpo anda."
A lamparina apagou.
Sarah correu para a porta, tropeçando nos móveis, o coração martelando no peito.
Abriu a tranca, saiu para a rua, e o ar frio da madrugada a golpeou como uma lâmina.
Tudo estava quieto.
Mas no lago, muito distante, ela jurou ver — entre as névoas que voltavam a se formar — uma figura parada na margem.
Alta.
Imóvel.
Olhando na direção da cidade.
E, mesmo de longe, Sarah soube.
A forma era humana.
Mas o reflexo, no espelho d’água, não era.
******************
A manhã seguinte chegou como um engano.
A luz era pálida, fria, e parecia não tocar nada.
Sarah não dormiu.
Ficou sentada na varanda até o sol nascer, o diário de Ethan fechado sobre o colo e o olhar fixo no lago, distante, imóvel, ou quase.
Porque, às vezes, ela jurava ver pequenas ondulações se formando, e nelas, reflexos que não pertenciam a nada acima da superfície.
Tom Grady apareceu pouco depois, o rosto abatido, a barba por fazer.
“Alguns dizem que viram alguém andando na estrada leste” disse. “Alto, usando o casaco do Ethan. Mas quando se aproximaram, ele desapareceu.”
Sarah levantou o olhar. “Desapareceu como?”
“Como se a névoa o engolisse.”
Ela não respondeu.
Não havia o que dizer.
O lago podia ter recuado, mas algo ficou.
Uma presença, uma lembrança viva.
Henry Calder chegou mancando, apoiado na bengala, o semblante mais cansado do que nunca.
“Começou” murmurou.
Sarah franziu o cenho. “O quê?”
“O ciclo seguinte. O selo mantém o m*l preso, mas o m*l sempre tenta andar.”
Tom olhou para ele, incrédulo. “Está dizendo que aquela coisa saiu do lago?”
Henry o encarou. “Não saiu. Espalhou-se. Um fragmento dela caminha entre nós. Talvez o sangue a tenha atraído.”
Sarah apertou o diário contra o peito. “Ethan.”
O velho assentiu. “Parte dele ficou lá. Parte dele voltou.”
O vento soprou, e o som do lago se espalhou pela cidade, um sussurro que parecia acompanhar cada rajada.
As pessoas começaram a sentir.
Coisas pequenas, mas constantes: passos atrás delas em ruas vazias, reflexos que se moviam sozinhos nas janelas, vozes conhecidas chamando seus nomes à noite.
No mercado, a mulher que servia o pão deixou o saco cair quando viu, pelo vidro, a sombra de alguém parado do lado de fora.
No cemitério, o coveiro encontrou pegadas frescas sobre o túmulo de Wallace — as mesmas marcas espirais vistas nas vítimas.
E no lago, as gaivotas começaram a cair mortas, os olhos voltados para o céu.
Darrow’s Hollow respirava medo outra vez.
****************†*************
À noite, Sarah voltou para casa.
O diário estava sobre a mesa, aberto na última página, que agora trazia uma nova inscrição.
Ela não lembrava de tê-lo aberto.
Mas as palavras estavam ali, frescas, escritas com tinta escura:
“O selo anda. Eu vejo por ele.”
Ela recuou um passo, o coração disparado.
“Ethan?” sussurrou.
Um estalo respondeu, vindo do corredor.
Depois outro, mais próximo.
O som de passos molhados sobre a madeira.
Ela pegou a lamparina e caminhou devagar até o final do corredor.
A porta do quarto estava entreaberta.
O cheiro de água parada, o mesmo que vinha do lago, preenchia o ar.
“Ethan?”
Silêncio.
Depois, a sombra.
Alta, imóvel, parada junto à janela, olhando para fora.
Tinha o mesmo corpo, o mesmo cabelo, o mesmo casaco encharcado.
Ela prendeu a respiração.
“É você?”
A sombra virou o rosto.
O rosto era o de Ethan — e não era.
Os olhos estavam errados.
Eram olhos que refletiam demais, profundos, úmidos, vivos demais.
Olhos que lembravam a superfície do lago.
“Sarah” disse a coisa, com a voz dele. “Eu fechei o selo. Mas ele ficou aberto em mim.”
Ela deu um passo atrás.
“Você não é o Ethan.”
“Sou o que restou dele.”
“Então o que é você?”
A sombra inclinou a cabeça.
“O que anda quando o lago dorme.”
O som que veio depois não foi humano.
Um estalo seco, seguido de um ruído aquoso, como carne se torcendo.
A figura se moveu para o lado, dissolvendo-se lentamente, o corpo escorrendo pela parede como água suja.
Sarah caiu de joelhos, o coração disparado, enquanto a voz sussurrava em seu ouvido — não mais à frente, mas por toda a casa:
"O selo anda, Sarah. E o selo tem olhos."
Ela ficou ali, sozinha, com o som do lago ecoando distante.
Mas quando olhou pela janela, viu, sob a luz fraca da lua, marcas de passos molhados indo da porta até a rua.
E todas seguiam na direção do lago.
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O amanhecer seguinte trouxe um frio cortante e o cheiro denso de lama.
As nuvens baixas escondiam o sol, e o lago permanecia imóvel, sem vento, como uma superfície de vidro.
Mas Sarah sabia.
Aquilo era apenas aparência.
O lago não estava em silêncio — estava observando.
Tom bateu à porta logo cedo. O rosto cansado, o olhar sem foco.
“Há pegadas novas” disse. “Por toda a cidade. Na praça, perto da escola, até no cemitério. Molhadas. E nenhuma leva a lugar algum.”
Sarah empalideceu. “Eu vi. Dentro da minha casa.”
Tom a fitou, confuso. “Como?”
Ela hesitou. “Ele esteve lá. Ethan… ou o que restou dele.”
Henry chegou pouco depois, mancando mais do que nunca, o casaco encharcado da umidade da manhã.
“Não são pegadas humanas” murmurou, examinando uma marca próxima à porta.
A lama estava marcada em espiral, como se algo tivesse girado no solo em vez de pisar.
“O selo caminha, exatamente como temia.”
Tom suspirou, esfregando o rosto. “Explique, Henry. Sem enigmas.”
O velho levantou o olhar para ele. “Quando Ethan se sacrificou, ele não destruiu a criatura. Apenas a conteve dentro de si. Parte dela permaneceu no lago, mas parte tomou forma na carne dele. Agora, essa parte procura outro corpo, outro sangue, outro espelho onde possa viver.”
Sarah murmurou, quase sem voz: “E ela usa os passos dele.”
O vento soprou, e as folhas secas se espalharam pelo chão.
O som que veio do lago era sutil — uma respiração longa, úmida, profunda.
Eles se entreolharam, e sem combinar, começaram a seguir o rastro das pegadas.
As marcas os levaram até a antiga escavação, o mesmo ponto onde, semanas antes, haviam descoberto as ruínas sob a terra.
Agora o buraco estava parcialmente alagado.
O cheiro era de ferro e sal.
E, no centro, a água borbulhava em silêncio, como se o solo respirasse.
Henry parou à beira da a******a. “É aqui que ela tenta nascer de novo.”
Tom apontou a lanterna para dentro. A luz refletiu nas paredes e revelou algo escrito na rocha, linhas curvas desenhadas em um padrão familiar.
Sarah se ajoelhou. “São os símbolos do diário. Mas estão... diferentes.”
As espirais se conectavam umas às outras, formando algo parecido com um mapa — um círculo maior que englobava toda Darrow’s Hollow.
Ethan havia se tornado o selo, e agora o selo se expandia.
Tom recuou. “Quer dizer que a cidade inteira está marcada?”
Henry assentiu, a voz rouca. “Sim. O selo anda. E o lago já não está preso a um lugar. Ele está em todos os lugares onde a água toca.”
Sarah levantou-se devagar.
“O que quer dizer com... todos os lugares?”
“Chuva. Poços. Encanamentos. Rios subterrâneos. A criatura aprendeu com o sangue de Ethan. Está espalhando-se por dentro da cidade, uma gota de cada vez.”
Um ruído metálico ecoou ao redor — o som dos canos vibrando sob o chão.
Depois, um gotejar constante, ritmado, vindo de todos os lados.
Do teto, do solo, das paredes.
Cada gota caía em sincronia com o som distante do lago.
Sarah sentiu um arrepio subir pela espinha.
“Ela está ouvindo.”
Henry assentiu, sério. “Ela sempre esteve.”
De repente, Tom ergueu a lanterna, iluminando algo na água.
Um reflexo.
Por um instante, todos viram — o rosto de Ethan, imóvel sob a superfície, os olhos abertos, fixos neles.
Mas não era apenas reflexo.
Os olhos se moveram.
E sorriram.
Sarah recuou, o grito preso na garganta.
Henry segurou o braço dela com força. “Não olhe. É isso que ela quer.”
Mas já era tarde.
O reflexo começou a se expandir, as ondas distorcendo o rosto, e do centro do buraco subiu um som abafado, molhado, como algo enorme se arrastando de dentro da terra.
Eles correram, tropeçando na lama, enquanto a água transbordava do buraco e se espalhava pelo solo, avançando rápido demais para ser natural.
Ao longe, o sino da igreja começou a tocar — sozinho.
Um toque lento, contínuo, que se misturava ao som das ondas.
Quando pararam na colina, ofegantes, olharam para trás.
O buraco já não existia.
O chão havia se afundado completamente, e no lugar dele havia um novo espelho d’água.
Um olho.
Aberto.
Observando.
Henry falou sem desviar o olhar. “Não é mais um lago. É uma boca.”
Sarah sentiu as lágrimas caírem.
“Então o selo não dorme.”
“Não” respondeu o velho. “Ele anda. E agora, anda conosco.”
Do fundo da água, algo respondeu — uma única palavra, arrastada, vinda de dentro da terra:
"Lembrem."
O som reverberou por toda Darrow’s Hollow, e em cada casa, poço e encanamento, a água tremeu.
E o medo voltou a respirar.