Sonhar não faz barulho

1583 Words
Capítulo- VI. Sonhar não faz barulho. " Amar e rezar é o mesmo que fechar os olhos e agradecer por todos os obstáculos vencidos." Acélia Eu estou na parte de baixo da casa, escondida entre uma estante feita de pedra jade — pedra que mamãe sempre adorou — e o aparador de madeira. O local em que me enfio é escuro, quem olha de frente precisa observar bem e apurar a visão para poder enxergar algo nesse cantinho esquecido. Meu coração bate igual tambor chinês. Nas minhas mãos suadas, está a cartinha mais importante da minha vida. Da minha vida, não: da minha existência! Não é uma carta qualquer, não senhor. É a carta. A carta em que eu, Acélia, revelo ao mundo (ou melhor, a Rovani, amigo do meu pai) que sou uma futura poetisa de renome, que tenho sentimentos profundos e que, se fosse permitido, quero muito que ele perceba que eu existo. Mesmo tendo o rosto coberto por caroços que ardem e coçam. Alergia é maldade do d***o, só pode! Tá, talvez eu exagere um pouquinho na parte de poetisa de renome. Mas, se depender do meu coração emocionado, vou fazer muitos poemas com o nome Rovani. Como, por exemplo: Rovani, você é um banani que meus dentes sonham morder. Não, não… isso fica feio, e “banani” nem existe, é banana. Melhor será esse: Rovani, Rovani, você é igual bailarino que dança sem os pés porque tem chulé. Jesus! Ele vai me odiar se eu disser que tem chulé! Será que tem? Tomara que não. Não gosto de chulé. Tive uma experiência horrível durante uma dinâmica na sala, em que precisaríamos ficar descalços. Pedro tirou o sapato… Deus, o que foi aquilo? Ninguém ficou na sala, nem as almas penadas! Tenho que melhorar isso. Talvez assim fique melhor: Rovani, coisa fofa, você é igual flor roxa, um trouxa! Jesus, melhor parar, ou vai piorar. Penso na cartinha. Eu caprichei tanto nas palavrinhas que até parece carta de filme. Escrevi com minha caneta azul e enfeitei com corações de glitter rosa, botei um “A” enorme no final e até borrifei perfume. Aliás, borrifar é pouco: dei um banho nas palavras. Se isso não encantar o coração do Rovani, eu desisto e viro freira — coisa que jamais conseguiria, porque sou estabanada demais até para carregar um terço. E porque viveria em pecado, pensando no rosto do moço bonito. Eu seria a freira que pula o muro do convento. Agora, o problema não é a carta em si. O problema é como entregar. Eu não posso simplesmente aparecer diante dele, estender a mãozinha, sorrir e dizer: “Pegue, é sua, leia, não ria dos meus erros ortográficos ou eu te mostro como dói ter uma agulha debaixo da unha.” E dói pra valer! Certa vez caiu um botão do meu uniforme. Margoth ia pregar no lugar, mas alguém a chamou e ela saiu. Eu tentei fazer o negócio de espetar a agulha no tecido, parecia fácil… me enganei redondamente e dolorosamente. Espetei os dedos e cravei a agulha debaixo da unha. Nossa, foi horrível, parecia tortura. Jurei nunca mais tocar em agulha na vida. Apesar disso, acredito que o moço bonito não vai me olhar. Ele sempre que vem visitar papai cumprimenta todo mundo, menos eu. Parece que sou transparente. Ou pior: uma criança. E eu odeio ser chamada de criança. Então eu tenho que agir com astúcia, inteligência, uma mente criminosa — digo, criativa. Preciso deixar a carta no caminho de Rovani sem que ele perceba que vem de mim, e sem que ninguém mais da casa descubra. Porque, se descobrirem, estou frita. Assada. Servida com batata e arroz. Minha barriga ronca. Olho assustada para todos os lados. — Bela hora para implorar por comida! — brigo com minhas tripas. Respiro fundo, enrolo a carta fazendo um pequeno canudo e escondo na barra da minha calça, espiando até me sentir segura para sair do esconderijo. — Lá vou eu, moço bonito. — Rovani, você precisa ver o novo cavalo que comprei! — ouço a voz do meu pai, e a vontade de fazer xixi, nervosa, começa a surgir. Rovani ri. Aquele riso grave que parece vento passando por dentro de uma gruta. Eu quase desmaio só de ouvir. É agora ou nunca. Seguro a carta e começo a andar de mansinho. Mas, como sempre acontece comigo, o destino conspira. Piso na minha meia e esbarro em uma coluna de madeira. O treco balança, ameaçando cair. Fico estática, segurando a respiração, esperando alguém aparecer. Mas, por milagre, ninguém percebe. Ou, pelo menos, não falam nada. Recupero a respiração, arrumo melhor a meia que escapa do pé e continuo a missão suicida. Quando chego perto da porta que dá saída para a varanda, vejo papai, todo orgulhoso, falando dos cavalos; e Rovani, o alvo da minha cartinha, sentado de lado, mexendo nos punhos da camisa como se estivesse entediado. Meu coração quase sai pela boca. Preciso pensar rápido. Então invento o plano B: jogar a carta atrás do sofá, bem perto da cadeira dele. Assim, quando se inclinasse, encontraria o papel e talvez pensasse que fosse obra do destino. Um bilhete caído do céu. Eu, uma mensageira do amor secreto, invisível e silenciosa, igual a minha carta. Bom, ela não é tão invisível assim, porque com a quantidade de adesivos e perfume que coloquei, o cheiro deve estar indo para a estação espacial que fica em Marte. E, da Lua, dá pra ver os adesivos. O problema é que sou invisível e silenciosa só na imaginação. A missão é difícil: preciso deslizar para fora por detrás de um vaso enorme de plantas e depois me arrastar até o sofá, que faz a divisão de dois espaços distintos. A primeira parte dá supercerto, o que me deixa em êxtase. Vamos para a segunda. Aproveito que eles estão concentrados na conversa e tento dar um passinho em direção ao sofá. Só que, no meio do caminho, piso numa pedra que não vejo e a queda é certa. Caio estatelada no chão. — Acélia! — papai corre até mim. — Tudo bem? O que está fazendo aqui? — pergunta, me levantando do chão. É um caos: ele quer me pegar pelo tronco e eu estapeio suas mãos, com medo de que perceba a carta, o canudo, melhor dizendo. — Tô bem, tô bem — respondo, rindo de nervoso, puxando a blusa para cobrir a carta que está na barriga. — Só um ensaio de cambalhota. — Dou de ombros. Rovani olha de leve, mas logo desvia os olhos. Ele nunca olha por muito tempo. Que homem irritante! Vou arrancar aquelas butucas e colar em mim, saindo por aí desfilando com os olhos do chato grudados em mim. Ele me tira do sério. Levanto, sacudo os cabelos e volto para o plano. — Vai deitar, filha. É hora de criança estar na cama. Hã? Até meu pai quer me afundar? Não acredito! — Estou sem sono. Vim tomar um ar, porque essas coisas no meu rosto estão quentes, incomodam muito — digo, tentando soar amável. — Ah, minha filha… papai errou com você. — A voz de Ricardo me corta a alma. Vejo a culpa em seu olhar. Mas não temos o que fazer. Afinal, o estrago já está consumado. É dar tempo ao efeito dos medicamentos. Espero todo mundo voltar a falar. Ajeito a carta, miro com toda a minha força discreta e jogo para trás do sofá. Mas, em vez de ir para o chão, a carta desce em uma linda curva no ar, como se fosse um pombo-correio suicida, e cai… dentro do copo de bebida do Rovani. O som de ploft faz meus olhos ficarem enormes. O silêncio que se segue é mortal. Rovani olha para o copo. Papai olha para o copo. E eu sorrio feito uma estátua de jardim. — Que diabos foi isso? — pergunta papai. Rovani pesca o envelope com a ponta encharcada e, antes que possa abrir, eu pulo na frente. — É… é um envelope com minhas figurinhas! Fui abrir, mas fiz um movimento e caiu aí. Me desculpem. Papai estreita os olhos. — Envelope perfumado com figurinhas? Minha alma quer fugir do corpo. Eu digo para ela: “Volta aqui, condenada, que não vou passar vergonha sozinha, não!” Gelo inteira. — É meu novo hobby… colecionar figurinhas… e figurinhas cheirosas! — Gente, eu preciso passar óleo de peroba na cara. Pego o papel da mão do Rovani e corro de volta para o quarto, escada acima, com o coração explodindo. Fracasso total. Mas eu não sou de desistir. Nunca. Então, debaixo da escada, começo a bolar o plano C: esconder a carta dentro do carro de Rovani. Quando ele for embora, vai entrar no carro e — surpresa! — vai encontrar minhas palavras apaixonadas. Sim, perfeito. Quase um golpe de mestre. Espero até a hora em que ninguém está olhando, sigo até a porta e me deparo com homens armados até os dentes. — Deus… se eu encostar no carro, vão me levar presa! E agora? O que eu faço? Fico ali, segurando a carta de novo, derrotada. Quem sabe eu consiga finalmente entregar essa carta para Rovani sem que o mundo inteiro descubra? Mas hoje, só hoje, vou guardar a carta debaixo do travesseiro e sonhar que ele abre, lê e acha minhas palavras bonitas. Porque sonhar não faz barulho. E sonhar é o único plano que nunca falha.
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