Acélia
Rovani está sendo um bom menino. Não contou para o meu pai as estripulias que aprontei, muito embora eu tenha percebido que o senhor Ricardo anda muito nervoso — por qual razão, eu não sei.
Me pergunto se meu pai arrumou alguma namorada e, por essa razão, está nesse nervosismo todo. Talvez ele não saiba como me contar. No entanto, eu ficaria muito feliz se ele reerguesse a vida e seguisse em frente.
Acredito que minha mãe também ficaria feliz. Afinal, nenhum ser humano é uma ilha para viver sozinho. E quando eu crescer, me casar com Rovani, meu pai vai ficar sozinho — porque, do jeito que o senhor Ricardo é, duvido muito que ele queira vir morar comigo e com o futuro genro dele.
Fico imaginando o que vai acontecer quando ele souber que o futuro genro é o melhor amigo dele.
Escuto os dois falarem em italiano, o que me irrita bastante, porque quase não consigo acompanhar a conversa. Além de falarem muito rápido, usam palavras cujo significado eu nem imagino. Mas aproveito o momento para saborear com o olhar o Rovani.
Encosto o braço na cadeira e vou inclinando o corpo aos poucos, tentando enxergar melhor o ângulo do rosto dele. Fala gesticulando levemente com uma das mãos, e meu coração acelera quando ele sorri — o canto dos olhos se aperta, criando pequenas rugas.
Quando a língua dele passa levemente pelos lábios, lubrificando-os, eu desejo ser uma das fissuras presentes naquela boca desenhada.
Inclino tanto que levo um tombo, caio com cadeira e tudo. A queda é feia, e por muito pouco não mostro as portas do paraíso para o Rovani. Sorte a minha que sou daquelas meninas que usam sunquini — uma calcinha mais comprida e comportada — por baixo da saia ou do vestido. Deus me livre de uma rajada de vento enquanto estou com uma calcinha pequena e mostrar meu popozito para quem quiser ver. De maneira nenhuma! Jamais passaria por essa vergonha.
Minha cara arde; não sei nem onde enfiar a cabeça, talvez debaixo do tapete do escritório do meu pai.
— Você se machucou, Acélia? — pergunta ao meu pai, desesperado, retirando a cadeira de cima de mim e me ajudando a levantar do chão.
— Não, estou bem, pai. Mas o senhor tem que ver melhor essas cadeiras. Devem estar com as pernas frouxas, sei lá. Olha o tombo que levei! Por muito pouco minha cabeça não bateu no chão.
Rovani olha na minha direção, e não se mostra nem um pouquinho preocupado. Pelo contrário: tem um sorriso sonso estampado no lindo rosto. Que ódio que me dá!
Minha vontade é de torturá-lo: amarrar as mãos e os pés, pegar uma pinça e arrancar os pelos da barba dele um por um. Ele precisa saber como isso dói.
Pensar nessa possível tortura me remete a tempos atrás, quando, aos doze anos, bati o pé e disse para Margot que queria “fazer” minhas sobrancelhas.
Minha cuidadora me corrigiu, dizendo que não era fazer, era preparar, porque elas já estavam feitas. Fiquei de queixo caído.
Acontece que eu tinha visto uns vídeos na internet de moças com sobrancelhas lindas, arqueadas. Enquanto isso, as minhas pareciam mais sobrancelhas de lobisomem — unidas no meio da testa. Ou seja, eu não tinha sobrancelhas, eu tinha uma monocelha. E ridícula, por sinal.
Margot disse que eu não iria arrancar os pelos porque era muito nova. Bati o pé e disse que queria fazer. Ela retrucou, afirmando que meu pai não iria gostar nem um pouco de saber que eu, uma menina, estava retirando fios da sobrancelha.
Suspirei com raiva. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi: “Nessa casa ninguém me entende. Todo mundo me trata como um bebê. Mas eu já sou uma moça e quero sim fazer minhas sobrancelhas, pintar minhas unhas.”
Abri um sorriso para Margot e balancei a cabeça afirmando que aceitava o ponto de vista dela — no entanto, era só uma maneira de driblar o olhar atento da mulher.
Eu sabia que Margot sempre trazia uma pinça na bolsa. Várias vezes a flagrei diante do espelho do banheiro dos funcionários retirando um pelinho daqui, outro dali.
Então aguardei o momento do almoço. Quando ela estava comendo junto com os demais funcionários, saí na carreira, entrei no quartinho ao lado da lavanderia, onde eles deixavam casacos e bolsas, e fui direto na bolsa de Margot — morrendo de medo de ser pega.
Meu pai me daria uma bronca daquelas por mexer nas coisas pessoais de outra pessoa, mas eu não queria dinheiro nem nada. Queria apenas uma pinça — coisa que já tinha pedido diversas vezes ao meu pai, e ele sempre dizia que eu não tinha idade para ter uma. Parecia que eu tinha pedido um revólver.
Peguei a pinça, saí correndo com ela escondida dentro das minhas calcinhas, subi as escadas desesperada e, ao entrar no quarto, fechei a porta. Fui para o banheiro e, para garantir minha segurança, fechei a porta do banheiro também.
Peguei a pinça com as duas mãos, dei uma lavadinha, porque não ia usar um troço fedendo a pepeca na minha cara. Olhei para ela como se fosse uma joia, abri um sorriso largo e disse ao meu reflexo no espelho:
— Agora sim. Adeus, monocelha! Vai ressurgir uma nova Acélia!
Com todo o cuidado do mundo, coloquei o pelinho filha da mãe na boquinha da pinça, apertei e puxei. Foi um grito só. Aquilo parecia o demônio abrindo a boca! Ardeu pra caramba. Soltei a pinça imediatamente e levei a mão à sobrancelha, massageando.
Foi nesse instante que escutei um barulho estrondoso. Tive um sobressalto dentro do banheiro; meus olhos se arregalaram.
Primeira coisa que me veio à cabeça: “A casa está sendo invadida! Vamos morrer! Deve ser um assalto!”
No entanto, quando abri a porta desesperada, vi meu pai empunhando uma arma, os olhos enormes — e eu fiquei ainda mais assustada. Que raiva! O que ele estava fazendo armado dentro do meu quarto? E o pior é que, logo depois, todos os seguranças invadiram o pequeno espaço.
Fiquei desconcertada. Meu pai olhou para mim e perguntou:
— Que grito foi esse, Acélia? Está acontecendo alguma coisa? Entrou alguém aqui? Você está bem?
O senhor Ricardo estendeu a mão enorme e deu um puxão no meu braço. Fui acolhida por um abraço paternal. Com uma mão, ele segurava a arma; com a outra, me abraçava. E eu morrendo de medo daquilo.
Eu sabia que ele me amava. Sabia dos seguranças. Mas ver meu pai armado foi uma horrível surpresa — eu não sou fã de pistolas, ponto final.
Os seguranças começaram a vasculhar tudo: debaixo da cama, dentro do armário. Eu fiquei perplexa.
Meu pai esticou o pescoço, olhou dentro do banheiro — não havia nada, nem ninguém. Então o olhar dele caiu sobre o objeto de metal no chão, brilhando sob a luz.
Ele segurou meu queixo, examinou meu rosto e matou a barata.
— De onde diabos você tirou isso aqui? — perguntou, pegando a pinça e vindo com o objeto do meu roubo na mão.
Fiquei branca, roxa, rosa, de todas as cores. Parecia um arco-íris. Como ia dizer que tinha pegado “emprestado” da bolsa da Margot?
— Ah... eu encontrei lá na escola... — comecei.
De repente, Margot entrou no quarto, assustada com a movimentação, e olhou na direção do meu pai, depois para mim.
— Como é que a minha pinça veio parar aqui? — perguntou.
A mulher tinha que abrir a boca justo naquele momento!
Meu pai olhou para mim, estreitou o olhar e perguntou a Margot:
— Como você sabe que essa pinça é sua?
Margot se aproximou e mostrou a ele um pequeno pedaço de esparadrapo colado na alça, com a letra “M” escrita de caneta vermelha.
— Gosto de identificar minhas coisas com a primeira letra do meu nome — disse ela.
Fechei os olhos e parei de respirar por quase dois minutos. Meu coração começou a bater nas costelas.
Meu pai olhou para mim, atravessado, e berrou:
— Acélia! Você mentiu pra mim!
O senhor Ricardo detesta mentiras. Sempre me disse que, por mais que doa, prefere a verdade.
— Foi uma mentirinha pequenininha... — murmurei, me entregando.
Meu pai perguntou com todos os diabos no couro:
— Margot, você emprestou essa pinça?
E a abençoada balançou a cabeça, negando.
— Como foi que você pegou essa pinça? — insistiu meu pai.
Juntei as mãozinhas na frente do corpo, apertando os lábios, morrendo de medo, mas... o que é um peido pra quem já está cågado?
— Eu peguei... da bolsa da Margoth... mas foi um empréstimo! Eu ia devolver! Eu só queria tirar essa monocelha da minha cara! — apontei para minha sobrancelha.
Meu pai olhou para os seguranças, pediu que todos saíssem — inclusive Margoth —, devolveu a pinça e depois sentou comigo.
Levou um sermão daqueles. Parecia um padre.
Fiquei um mês de castigo: sem televisão, sem doces. Ele dizia que isso serviria para me fazer refletir sobre os erros.
Um dia, ouvi duas funcionárias conversando. Uma elogiava a sobrancelha da outra.
— Ah, eu faço com gilete! — disse uma. — Não suporto pinça. Cada pelinho que arranco é uma dor que me faz ver os anjos.
Uma luz brilhou na minha cabeça: era isso!
Com gilete seria melhor! Meu pai tinha uma no banheiro da suíte.
Subi as escadas desesperada, mas, ao fazer a curva do corredor, levei um tombo. Ainda assim, nada me impediria de ter sobrancelhas bonitas. Entrei no quarto do meu pai, peguei a gilete e fui lá tirar os pelinhos.
O que aconteceu? Raspei uma sobrancelha inteira.
Entrei em desespero. Não podia sair por aí com um lado do rosto com sobrancelha e o outro sem.
Nem podia olhar para o meu pai — se ele me deixou um mês de castigo, dessa vez me deixaria dois.
Fiquei quase duas semanas andando pela casa olhando para o chão, evitando o olhar dele, até os benditos pelinhos crescerem de novo. Depois disso, nunca mais me aproximei de uma gilete.
Agora estou aqui, com a cara vermelha, diante de Rovani, que presenciou meu tombo feio.
— Senta, minha filha, que vou pegar um pouco de água pra você — diz meu pai, saindo do escritório.
— Você não se cansa de aprontar, hein, menina? — solta Rovani.
Olho em sua direção, me aproximo, coloco as mãos em cada braço da cadeira, deixo nossos rostos quase colados, abro um sorriso e digo:
— Espera só um pouquinho que estou invocando um tremendo føda-se pra você.
O homem estreita o olhar. No momento em que faz menção de erguer a mão para segurar meu braço, meu pai entra pela porta — e eu rapidamente disfarço.
O senhor Ricardo percebe algo, se aproxima com uma das sobrancelhas arqueadas e pergunta:
— O que está acontecendo?
O metido do Rovani abre a boca para responder, mas eu piso no pé dele e sorrio para o meu pai.
— Tinha alguma coisa no meu olho, pai. Pedi para o Rovani soprar. — Minto mais uma vez.
Chego perto do meu pai e lhe dou um abraço. Sinto o olhar de Rovani queimar minhas costas.
— Ricardo, preciso ir. Tenho um compromisso — diz Rovani, olhando o relógio de pulso.
Sinto uma raiva tremenda. Na minha cabeça, ele vai se encontrar com alguma mulher.
— Tudo bem, meu amigo. Obrigado por tudo. Espero que a Acélia não tenha te dado trabalho — diz meu pai.
Escondo o rosto no tórax dele. Sinto o olhar de Rovani, e minha pele queima.
— Não se preocupe com nada, meu amigo — diz ele, em seguida. Escuto seus passos, a porta se abrindo e depois fechando.
Afasto-me um passo, pego o copo de água que meu pai traz e bebo tudo de uma vez.
— Então, como foi a prova do vestido? — pergunta ele.
— Maravilhoso! Está lindo! — respondo, sentando na cadeira de Rovani. Queria sentir o cheiro dele, e está lá, impregnado no tecido: o aroma do perfume.
— Então, minha filha, já pensou quem vai ser o seu príncipe? Qual rapazinho vai tirar minha bela princesa pra dançar?
Seguro minha língua. Se falasse para o meu pai quem eu desejo que seja meu príncipe, ele se assustaria.
— Eu sou a princesa do meu próprio castelo, pai. Não preciso de príncipe nenhum — digo, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
Mas, em meus sonhos, eu danço com Rovani. E ele me dá o meu primeiro beijo.
No entanto, isso é algo secreto, que não quero contar ao meu pai — nem a mais ninguém.