Capítulo - Carta
" A comunicação é a arte de se fazer entender, não importa se em palavras ou gestos."
Acélia
Injeções deveriam ser proibidas para criança. Ô coisa horrível é você ter uma agulha entrando dentro da sua b***a! E pior: o que dói mais não é a agulha, é o líquido que está dentro da seringa. No entanto, ao meu ver, o que está doendo em mim é essa aparência monstruosa no meu rosto. Parece que um monte de lagartas e cadeiras andaram fazendo uma festa na minha face sem a minha autorização.
Estou cheia de lesões avermelhadas espalhadas pelo meu rosto e pescoço, incluindo até as orelhas. O nome dessas coisinhas feias que coçam é urticária, e, segundo a médica que me atendeu, a culpa disso foi a maquiagem que usei. Eu não entendi bem o porquê. Era maquiagem que foi da minha mãe, ela sempre usou e nunca aconteceu nada. Por que comigo iria acontecer? Só poderia ser azar do destino. Eu, que queria ficar linda, plena, bela para o jantar, estou aqui com a cara parecendo um bulldog alemão.
A doutora explicou que provavelmente a maquiagem estivesse vencida. Meu pai revelou a ela que eram coisas da minha mãe, e que me deu porque eu estou crescendo. E como se não fosse o suficiente. acrescentou que pintei o rosto com tinta guache, por acreditar que era com tintas de pintura que as mulheres faziam suas maquiagens, por isso achou que seria uma ótima ideia me presentear com os cosméticos da minha falecida mãe. No final, rendeu boas gargalhadas entre os dois, injeções para a minha b***a, lágrimas em meus olhos e um monte de medicamentos para eu tomar durante sete dias.
Porém, quando eu achava que tudo já estava totalmente r**m, piorou. Ao voltarmos para casa, dei de cara com o moço bonito, e foi no pior momento porque o bico do sapato ficou preso no tapete, tropecei e cai nos braços dele..Eita moço bonito para cheirar, bem. Aproveitei para respirar profundo várias vezes, antes dele se afastar.
—Deveria tirar essa esponja de aço e a roupa, guardar para o Halloween.
Meu sangue ferveu, ele parece gostar de me ver nervosa. O queria dizer com tais palavras que eu estava feia?! É isso?
Sorri sem humor querendo mandar-lhe conhecer a rosca que carrega consigo. Mas tinha que manter a polida educação que recebo.
— Senhor, aceitaria de bom grado um presente meu?- perguntei aos sussurros.
— Não vejo porque iria declinar.
— Ótimo, vou lhe comprar uma passagem para Chicago e de lá o senhor vá a merda!
Sai dos braços do infeliz querendo enfiar meus dedos dentro dos olhos dele.
—Sua atrivida. - sibilou.
— Chato. - retruquei, o mais baixo que pude para meu pai não perceber que o moço bonito - que naquele momento estava sendo muito feio - estávamos feitos dois porcos-espinhos, soltando farpas.
Não bastava estar morrendo de vergonha por estar com o rosto coberto por caroços, coçando muito, fora que minha face inteira estava quente, como se estivesse em estado febril, tinha que lidar com a realidade: eu estava me achando feia.
O moço bonito, olhou com escrutínio para o meu rosto, estreitou as sobrancelhas. Quis sair correndo da sala, fazer igual às avestruzes e enfiar minha cara dentro da terra. No entanto, como não tinha essa opção, tive que enfrentar a situação. Endireitei o queixo, sem perder a postura, andei, um passo depois do outro, com aquele sapato da minha mãe que estava castigando os meus pés.
" Como gostar de estar com os pés em cima dessas coisas altas?Eles são carrascos torturadores de pés e dedos!"
— Então, Ricardo, o que houve com o bebê?
Travei meus pequenos dentes, fechando as mãos em punho. Ele estava outra vez me chamando de bebê. Será que não enxerga o suficiente para que perceba que eu não sou mais um bebê? Não sou mais uma criança, sou uma moça.
— Alergia. A menina usou maquiagem vencida e acabou com o rosto cheio de urticárias.
— Isso é perigoso, Ricardo. Pode acontecer algo pior com o seu bebê.
Gruni de raiva, alto, obtendo a atenção do meu pai e de Rovani. Olhei bem dentro dos olhos do moço bonito e disse:
— Eu não sou mais um bebê! Sou uma mocinha. E se eu estou com a minha cara parecendo que as lagartas andaram por aqui fazendo uma rave, é culpa do meu pai, que me deu maquiagem vencida! E agora, com licença, porque estou muito cansada e estou doida para tirar esses sapatos que estão me matando.
Recebi olhares atravessados dos dois homens e, depois, escutei ambos rindo quando virei as costas e comecei a subir a escada. Parei na metade dela com uma vontade danada de gritar. No entanto, respirei fundo e continuei. Tinha medo de que ao fazer isso, lhe daria a confirmação de que sou uma criança — coisa que não sou, porque sou bem crescidinha.
Atravessei o corredor com o coração apertado e as lágrimas rolando pelo rosto. Eu estava me sentindo feia e cheia de vergonha pelo moço bonito ter me visto com o rosto totalmente desfigurado, inchado, cheio de carocinhos vermelhos que coçam tanto. Parece uma das sete pragas do Egito.
Entrei em meu quarto, retirei o vestido, os sapatos e dei graças a Deus quando pisei com os pezinhos descalços no chão. Mexi rapidamente meus dedinhos, que pareciam muito felizes por se livrar do aperto. Peguei os sapatos de mamãe, coloquei ao lado da minha cama. O vestido dobrei e deixei em cima da cômoda. Era hora de tomar um banho, me livrar daquele cheiro horroroso de hospital.
— Meu pai também não facilita em nada a minha vida. Custava ele dar uma olhadinha na validade dos produtos? E eu também falhei, porque deveria ter me dado conta de que tudo estava estragado. Faz anos que minha mãe morreu. Droga! Tudo está dando errado! E ainda terei a lembrança vivida em minha b*nda das agulhadas. - Falei decepcionada e cheia de frustração.
Escolhi um pijama cheio de unicórnios — sou apaixonada por unicórnios. Tomei um banho, coloquei o pijama e fui para a cama. Me deitei, deixando só a luz do abajur acesa, e fiquei olhando para o teto com as minhas mãozinhas cruzadas em cima da barriga. Até que percebi que estava parecendo um defunto dentro do caixão. Rapidamente me virei de lado e comecei a encarar a parede, com a imagem do moço bonito circulando na minha mente: os olhos dele, um tom dourado âmbar… ou seria verde? Ou até mesmo a mistura dos dois? O cabelo, o jeito de falar, os dentes alinhados e brancos. Ele é chato, mas não deixa de ser bonito. E o pior: meu coração não deixa de bater acelerado por ele.
Inquieta, sem conseguir pegar no sono, me levanto. Vou até a janela do meu quarto, abro uma pequena fresta para poder explorar o céu. Eu amo a noite. Sou apaixonada pela noite. Acho-a linda, misteriosa, soberana, igual a uma feiticeira que esconde, atrás de um belo rosto, quem verdadeiramente ela é.
Meus olhinhos então me traem, olham para baixo e vejo meu pai sentado na varanda junto com Rovani. Ambos possuem copos em suas mãos, eles conversam, e de vez em quando um sorriso salta no rosto do meu pai ou no rosto do moço bonito. Cada movimento que ele faz me hipnotiza: os dedos se infiltrando nos fios que rapidamente voltam ao lugar sem ficarem desalinhados, o modo como olha o relógio, como estreita as sobrancelhas, como o olho se fecha rapidamente antes de abrir um sorriso.
E a voz… meu Deus do céu, se tem algo lindo e maravilhoso é a voz da pessoa que gostamos. Porque ela pode estar em qualquer canto, mas se ouvirmos a voz, é suficiente para o coração disparar e as pernas começarem a tremer. Um vento gelado envolve o coração, enquanto o estômago entra num frenesi constante. É gostoso, pavoroso, causa constrangimento, mas também uma vontade imensa de fazer alguma coisa para ser percebida, notada, olhada.
— Bonita, dona Acélia … como é que você vai ganhar olhares com essa cara cheia de caroço?
Bufo, deixo a janela e ando pelo meu quarto, pensando em algo que poderia fazer para chamar a atenção dele. Então, me surge uma ideia: uma carta. Vou escrever uma carta. Corro até minha mesa, abro a gaveta, puxo um bloco enorme de papel, pego uma caneta dentre tantas que estão no porta-lápis, sento e começo a escrever:
"Seus olhos me fascinam, penso em sua boca e te acho muito chato…"
Olho a frase que escrevi e balanço a cabeça em negação. Eu não posso me deixar levar pela raiva que senti durante o jantar, enquanto ele falava do Bombril na minha cabeça, e muito menos pela raiva que ainda estou sentindo por ele me chamar de bebê. Arranco a folha e jogo fora. Estou prestes a iniciar outra carta quando algo passa por minha mente feito o barulho de um tambor que anuncia a chegada de alguém ou de um evento prestes a acontecer.
Eu não posso escrever em uma língua que todos leiam e entendam. Preciso escrever em uma linguagem que quase ninguém tem acesso. Mas o moço bonito, sendo inteligente, creio que terá. Afinal, quem é que não sabe a "linguagem do P"? Só meu pai. E é nele que minha atenção está voltada, porque se o moço bonito encontrar o papel e der para o meu pai ler, eu vou estar muito, mas muito ferrada. E coloca ferrada nisso! Nem todos os santos da igreja conseguirão fazer a raiva do senhor Ricardo diminuir.
De novo, do início, começo a carta — agora com a linguagem do P.
Explicando melhor: a "Linguagem do P" é um código de comunicação popular entre crianças e adolescentes, que consiste em inserir a letra "P" antes de cada sílaba de uma palavra, tornando a fala "codificada" e difícil de entender para quem não conhece. Por exemplo, a frase "Eu gosto de chocolate" se transforma em "pEu pgos-to pde pcho-co-pla-te". Meu pai não conhece. Certa vez falei nessa linguagem dentro do carro, quando retornávamos de um restaurante. Era domingo, o sol estava lindo, eu queria passear de barco, e meu pai me disse um não bem redondo. Com raiva, chamei ele de chato utilizando a língua do P: P-CHA-P-TO. Ele me perguntou que cargas d’água eu tinha dito. Dissimulei até meu pai deixar de tentar obter uma resposta que eu não iria dar.
Início a carta, abrindo meu jovem coração para o moço bonito, orando para ele não recriminar meus erros ortográficos:
"Me disseram que um dia o meu pequeno coração iria bater apressado por alguém, e foi você quem conseguiu isso. Quando te vi, meu coração parecia que iria saltar pela garganta. Te acho lindo. Gosto dos seus olhos, do sorriso, do cabelo… gosto de tudo em você, moço bonito. Contudo, te acho chato quando me chama de bebê. Não sou bebê. Sou mocinha, e muito bonita, por sinal. Ficaria muito feliz se parasse de me chamar de bebê, ou vou colocar uma barata dentro das vossas calças. Também ganharia o céu se me desse um beijo. Quero ganhar um beijo seu… um não, vários. Gosto do senhor, moço bonito."
Quando termino, estou com a cara ardendo. Não pelas urticárias, mas pela vergonha que estou sentindo. Se abrir, confessar o que sente para a pessoa que é alvo dos seus sentimentos e das batidas do seu coração não é fácil. Muito pelo contrário, parece uma missão impossível e árdua. Entretanto, eu preciso que ele saiba que eu tenho um coração que está cegamente apaixonado por ele.
Dou beijinhos na carta, abrindo um sorriso. Então me lembro de que vi num filme a mulher espirrando perfume na carta que ia dar ao amado. Desesperada, corro até o banheiro para pegar o meu perfume. Dou duas espirradinhas de leve. No entanto, não fico satisfeita, porque ao encostar o nariz na folha escrita, o que sinto é só o cheiro da tinta da caneta esferográfica. Por isso, capricho: passo bastante perfume, dobro rapidamente o papel e procuro um envelope.
Faço coleção deles dentro de uma caixa que fica na parte de baixo do meu guarda-roupa. Escolho um de cor vermelha — a cor do amor — e coloco o papel dentro. Mas acho o envelope tão sem graça que decido caprichar. Sigo até minha mochila, pego meu caderno que tem duas folhas cheias de figurinhas autoadesivas, colo todas que posso no envelope e abro um sorriso maravilhoso com o meu trabalho. Ficou divino.
Agora vem a pior parte: fazer com que esse envelope chegue às mãos do moço bonito. E foi pensando nisso que deixei meu quarto. Estou aqui, na casa escura, pé ante pé, seguindo para baixo, descendo as escadas lentamente, prendendo o envelope entre meus dedos.
— Essa minha carta precisa chegar ao moço bonito… mas como farei isso? - Me pergunto.