Ana Duccan
Fecho a porta e me permito sentir, escorrego até o chão, encostada na parede e choro para aliviar toda essa dor que está acumulada em meu peito. Meu Deus! Será que eu nunca vou ser feliz? — Essa é a pergunta que me faço todos os dias.
Não, eu não sou nenhuma coitadinha, tenho saúde e muita disposição para vencer na vida, mas às vezes, só às vezes, é difícil aguentar tudo sozinha.
Vamos lá, vocês não devem estar entendendo nada que está acontecendo, deixa eu explicar algumas coisas.
Me chamo Ana e tenho dezenove anos, fui expulsa da casa da minha mãe aos dezessete anos e desde então tenho que me virar sozinha, não tenho ninguém por mim, até tinha ou pensava que tinha, mas hoje descobri que realmente sou sozinha nessa vida.
Nunca conheci meu pai, minha mãe sempre me culpou pelo sumiço dele e diz que por anos estraguei a vida dela, isso até ela conhecer o atual marido, pai da minha adorável irmãzinha, naquela família a única que presta é ela. Quando minha mãe começou a se relacionar com esse homem eu devia ter uns catorze anos, meu padrasto vivia me assediando e quando eu contava para minha mãe ela falava que eu provocava ele, andava com roupas chamativas e fazia de tudo para ser notada pelo meu padrasto.
Confesso que no começo eu me sentia culpada, mudei meu modo de vestir, nunca fui de usar roupas curtas e muito chamativas, mas mesmo assim passei a usar roupas mais longas e que não houvesse nenhum decote, nada que pudesse atrair ou chamar sua atenção e mesmo assim ele não parava, entrava no meu quarto para me ver tomando banho, passava as mãos em mim, falava coisas nojentas que até hoje só de lembrar sinto vontade de vomitar.
Tudo piorou quando fiz dezessete anos, a idade vai chegando e consequentemente nosso corpo vai mudando, acaba que deixamos de ser uma menina e nos tornamos mulher e com isso meu padrasto foi ficando cada vez mais ousado, não, não se iluda pensando que minha mãe não fazia ideia, ela sabia e sabe de tudo isso, mas se cegou completamente diante das atitudes daquele monstro.
Na noite em que ele tentou me estuprar e quase consumou o ato foi quando me expulsaram daquela casa, como se eu tivesse culpa do que estava acontecendo.
Gritei muito quando acordei e o encontrei em cima de mim, aquele hálito de álcool horrível e aquelas mãos nojentas passando por todo o meu corpo, minha mãe entrou no quarto a tempo e corri para seus braços, queria amparo, pensei que ela fosse mandar aquele monstro embora, mas não, ela fez o contrário.
Me bateu, jogou todas minhas coisas na rua e disse que era para eu ir e não voltar nunca mais e foi exatamente isso que fiz, fui embora sem olhar para trás, a única coisa que me dói é a saudade da minha irmã. Um dia, anota aí, um dia ainda vou voltar para buscá-la.
Quando saí de lá as coisas não foram fáceis, fiquei alguns dias na casa de uma vizinha, ela conseguiu me arrumar umas faxinas e fui trabalhar, com muito custo eu consegui terminar o último ano dos meus estudos e depois de duas semanas trabalhando todos os dias incansavelmente eu consegui alugar um lugar, lugar esse que permaneço até hoje.
Não foi fácil, me lembro de como ficava cansada, das vezes que a exaustão era tão grande que nem fome sentia.
Sou muito grata por ela ter me ajudado, embora não tenhamos nos visto mais, ela se mudou e eu não sei onde está, mas com toda certeza se eu tivesse uma oportunidade de retribuir tudo que ela fez por mim, eu faria.
Todos naquela rua sabem o monstro que minha mãe e meu padrasto são, mas são poucas as pessoas que se disponibilizam a ajudar, como ela fez, serei eternamente grata.
Hoje eu consigo sobreviver, não vou mentir dizendo que vivo bem, mas sobrevivo e isso para mim já é o suficiente.
Trabalho na lanchonete que fica dentro da faculdade faz mais ou menos um ano e com isso consigo pagar meu aluguel, água, luz e o que sobra compro comida para alguns dias, tem dias que não tem nada, mas a Dona Charlotte me deixa comer na lanchonete.
Foi lá nesse lugar que conheci meu namorado, o Nathan! Namorado não, ex-namorado!
Estávamos juntos há seis meses, eu nunca conheci a família dele e nem ele a minha, eu porque não tenho família e ele porque sempre dizia que deveríamos ir devagar.
O Nathan me ajudava com algumas coisas, ficava aqui em casa, trazia comida e às vezes até se oferecia para pagar algumas contas, mas eu nunca deixei, sei que ele é "filhinho de papai" e tem uma boa condição, mas eu não fiquei com ele por esse motivo, eu amo ou amava, sei lá! A pergunta que não quer calar, já amei e fui amada algum dia nessa vida?
Ao longo desse tempo eu só conheci uma amiga dele, a Ashley, ela sempre foi um amor de pessoa comigo e me ajudava muito com o Nathan, nas poucas vezes que tínhamos algum desentendimento, era ela quem remediava a situação, o que eu não sabia era que os dois estavam me passando para trás.
Devido a tudo que passei, fiquei um pouco traumatizada, o toque masculino me dá medo, quando as coisas esquentam eu me apavoro e isso incomodava muito o Nathan, sempre insistia muito para que ficássemos juntos, pois, ele era homem e já estava cansado dessa coisa só de beijinho. Nathan também não tinha muita paciência para os meus "dramas" — era assim que ele costumava falar quando eu tentava explicar meus traumas.
Hoje resolvi fazer uma surpresa, fui até o apartamento que ele tem, Ashley me ajudou em tudo, arrumei, deixei o local lindo e romântico — sou romântica, gosto dessas coisas clichês —, estava decidida a ter nossa primeira noite, fiquei aguardando ele chegar, mas para minha surpresa, ouvi um barulho na sala e fui olhar, é o que aquele velho ditado diz, não é mesmo? A curiosidade matou o gato. Encontrei Nathan e Ashley, os dois estavam transando, não consigo descrever o que senti na hora.
Naquele momento eu não conseguia falar e nem fazer nada, fiquei parada, olhando para os dois, até que depois de um tempo, fui notada por eles.
Ele ficou desesperado, enquanto ela estava tranquila e sorridente, claro, foi ela quem armou tudo, mas de qualquer forma ela não era culpada sozinha e se ela não tivesse me avisado, sabe Deus quando eu ia descobrir.
Depois que eles se vestiram, ele mandou que ela fosse embora e eu pretendia fazer o mesmo, mas ele me impediu, disse que precisávamos conversar de fato, precisávamos mesmo.
Não derramei nenhuma lágrima diante dele, escutei tudo, todas as mentiras que ele dizia para tentar reverter a situação, mas nada adiantou, eu já estava decidida, foi quando tomei a infeliz decisão de perguntar:
[flashback on]
— Porque fez isso Nathan? Eu te dei tudo, amor, carinho, deixei você entrar na minha vida, confiei em você, porque fez isso?
— Você ficava enrolando, eu falei com você que precisava de sexo e você ficava se fazendo de difícil.
— O que move um relacionamento para você é sexo? — Pergunto
desacreditada — E o amor?
— Que amor, Ana? Para de ser iludida, olha para você, somos de mundos totalmente diferentes, a gente não tem como namorar sério, mas isso não nos impede de continuar ficando.
Balanço a cabeça de um lado para o outro, ainda sem conseguir acreditar no que estou ouvindo.
— O que você está falando?
— Eu nunca te apresentei para ninguém e nem nunca sai com você para lugares que pudéssemos ser vistos por pessoas da minha classe, nossa realidade não bate, como eu um cara que tem dinheiro vou sair com meus amigos e uma menina pobretona?
Me assusto com a forma rude em que ele fala, nunca ouvi ele falando assim, nunca conheci esse Nathan! Eu sei que ele sempre preferiu que ficássemos juntos em casa ou nas raras vezes em que saímos, sempre era um lugar mais discreto, mas na minha mente i****a ele estava fazendo isso porque queria ter mais tempo para nós dois, ter privacidade.
— Eu posso até ser pobre de dinheiro, mas de caráter e humildade jamais!
Pego minha bolsa e me levanto, mas ele me segura.
— Você vai fazer o que? Terminar? — Começa a rir — E vai
viver como? Passando fome? Aquele emprego m*l dá para você se sustentar.
— Vou viver como vivi até hoje, eu nunca precisei de você, tudo bem que você já cansou de levar comida lá para casa, mas foi você quem quis ajudar, eu nunca te pedi nada e quer saber? Tudo isso foi pouco ainda perto do que passei, não paga a metade da dor que você causou.
Pego o restante da minha dignidade e me mantenho firme no olhar. Não vou fraquejar, não vou chorar e muito menos deixar que ele saiba como está me afetando com essas palavras.
— Vai para casa Ana, amanhã eu passo lá, não estou com cabeça para ouvir suas lamentações e lições de moral hoje.
— Não precisa ir lá, suas coisas eu levarei para a faculdade e você pega lá.
— Não vai fazer show na frente dos meus amigos, entendeu?
— Tem medo de que eles descubram que você estava namorando com uma pobretona? — repito suas palavras com desprezo.
— Eu nunca namorei com você garota, isso foi você quem inventou nessa sua cabeça tola.
Puxo meu braço com força e vou embora dali o mais depressa possível, escuto ele me chamar.
— Ana desculpa, Ana, volta aqui!
Desço correndo pelas escadas e escuto os passos dele atrás de mim, atravesso a rua e saio correndo entre a multidão.
[flashback off]
Foi dessa forma que acabei aqui, sentada, chorando e sozinha. Sei que ele não merece uma lágrima minha, mas é inevitável, hoje o dia foi muito difícil, tudo que vi e ouvi me doeram muito, vai levar um tempo para juntar todos os caquinhos, mas vou fazer isso, não é a primeira vez que alguém me destrói e tenho certeza que não será a última.
Ontem acabei pegando no sono depois de muito chorar, agora estou aqui com dor de cabeça e com o rosto horrível, os olhos inchados não negam que passei a noite inteira chorando e sofrendo por aquele i****a.
Minha vida não pode parar por causa disso, o aluguel não espera a dor passar, a fome e nenhuma outra conta vai esperar, então bora para luta.
Termino de colocar algumas roupas que ele deixou aqui em casa dentro de uma sacola e levo comigo para o trabalho, lá entrego para ele ou peço para alguém entregar.
— Bom dia Dona Charlotte! — cumprimento minha chefe.
— Bom dia Ana! Temos que conversar — sua expressão séria me diz que não é algo bom — Pediram o seu desligamento Ana, infelizmente.
— Como assim pediram? O que eu fiz?
— Você sabe que essa faculdade pertence aos Atkinson e parece que você acabou se desentendendo com um deles.
— Nathan — digo baixinho.
— Eu te falei minha filha para não se envolver com esse tipo de pessoa, elas não são para gente como nós, tem dinheiro, mandam e desmandam em tudo. Eu sinto muito Ana, mas não posso fazer nada.
Apenas concordo em silêncio, pego minha bolsa e saio dali.
— Amanhã passa para receber — grita.
Encontro Ashley na entrada da faculdade.
— Ashley — a chamo — Cadê o Nathan?
— Já vai querer se humilhar pedindo para voltar? — abre um sorriso debochado.
— Onde está o Nathan? — estou tão nervosa que meu corpo inteiro está tremendo.
— Deve estar na empresa, hoje ele disse que tinha que trabalhar.
— Onde fica essa empresa?
— É a Atkinson Tecnologia, fica no centro.
Decidida eu caminho até o centro, de cara vejo o prédio dessa empresa, é o maior no centro da cidade e sem dúvidas o mais bonito. Entro toda retraída, segurando firme em minha bolsa, vejo que ainda no térreo tem que passar por uma recepção e fico pensando o que eu vou falar para conseguir subir.
— Oi? Você veio para entrevista da vaga de secretária? — Uma moça simpática pergunta.
— Oi, sim, eu vim sim — minto.
— Vá até aquela moça e ela te entregará um crachá para que suba. Boa sorte!
— Obrigada!
Faço o que ela me instruiu, pego o crachá e subo junto com umas outras meninas, todas bem arrumadas, logo me pego olhando para meus trajes, um jeans velho, uma blusa branca e tênis, com toda certeza eu não passaria nem na primeira fase dessa entrevista.
Quando chegamos no 32.° andar a moça nos direciona para uma outra sala. Esse prédio é enorme e muito alto, Nathan trabalha em um lugar muito chique.
Não sei muita coisa sobre ele, somente que tem uma boa condição de vida, que sua mãe morreu e ele foi criado pelo tio e que esse tio é bem rigoroso, por isso ele nunca tinha me apresentado para ele, pois, esse tio queria que ele estudasse apenas, mas agora já sei que isso é mentira, Nathan inventou isso para não apresentar uma “pobretona”, nem sei se o que ele contou sobre a mãe dele é verdade, afinal, quem mente, mente sempre.
— Oi, você poderia me passar uma informação? — pergunto para uma moça que passa uniformizada — Onde eu encontro o Nathan?
— Nathan? Nathan Atkinson? — pergunta desconfiada.
— Sim, ele mesmo, é que eu vim entregar um trabalho da faculdade, porque hoje ele não conseguiu ir.
— No penúltimo andar.
— Obrigada!
Vou para o elevador e aperto para subir no 64.º andar. Quando chego dou de cara com uma secretária, meu Deus, todo andar tem uma recepção? Que lugar chique!
— Bom dia, tudo bem? Eu gostaria de falar com o Nathan.
— Bom dia, tudo sim e você? — sorri simpática — Tem horário agendado?
— Não, fala com ele que é Ana, Ana Duncan.
— Só um momento, por favor — ela pega o telefone e fala com ele que estou aqui fora aguardando — Pode entrar — se levanta e me encaminha até a porta, gentilmente abre para mim e eu agradeço.
Quando a porta se fecha e eu olho para ele, sinto uma raiva incomum, tenho vontade de matá-lo, mas não quero ser presa, por isso me controlo.
— O que faz aqui Ana? — pergunta cínico.
— Por que fez com que eu fosse demitida do serviço Nathan?
— Tenho outra funcionária para colocar no lugar.
— Você sabe que eu preciso desse emprego.
— Então aceite continuar comigo, Ana — ele se levanta e anda na minha direção — Esquece o que viu, o que ouviu, vamos recomeçar, vamos ficar juntos, mas sem que ninguém saiba.
É muito cretino!
— Eu não quero continuar com você!
— Então fique sem emprego e passe fome — ele volta e se senta na cadeira, me viro e abro a porta — Depois não volte arrependida, estou te dando uma oportunidade.
Saio dali o mais depressa possível, eu não preciso passar por essa humilhação.
Entro no elevador e choro em silêncio, quando chego no térreo respiro aliviada, como pode uma pessoa mudar tanto em tão pouco tempo? Ou será que ele sempre foi esse monstro e eu nunca percebi isso antes?
Fico alheia em meus pensamentos e acabo esbarrando em alguém, o celular cai no chão e acaba se quebrando.
— Olha por onde anda — sua voz grossa ecoou em meus ouvidos.
— Você também não olhou, ai meu Deus! Eu não posso pagar por isso! — exclamo desesperada olhando para o celular caro quebrado no chão.
— Não precisa pagar.
Levanto minha cabeça, ele me encara e eu fico fascinada pela sua beleza. É um homem alto, bem alto, tem barba, é bonito, mais velho, mas bonito, muito bonito, posso dizer que é a primeira vez que eu fico frente a frente com um homem tão lindo.
— Está me ouvindo? — chama minha atenção.
— Ahn, desculpe, o que você disse?
— Porque está chorando?
— Não é nada — limpo as lágrimas com o dorso da mão.
— Tem certeza?
— Tenho sim.
Olho para esse lindo homem com esse terno super caro feito sob medida e aí que eu choro mesmo, só esse terno resolveria minha vida por um bom tempo, eu teria dinheiro do aluguel, dinheiro para comer... A verdade é que eu estou tão cansada de tudo sempre dar errado.
— Não acho que você esteja bem — volto a encarar seus olhos — Estou falando e você m*l está me ouvindo, venha comigo, por favor.
— Para onde? — pergunto desconfiada.
— Um café que tem aqui na frente do prédio.
— Obrigada, mas eu preciso ir.
— Você tem duas opções, aceita tomar um café comigo, ou você paga meu celular que quebrou.
Abro a boca para responder, mas minha voz falha.
Pensamento bem eu não tenho muita opção, não vou conseguir pagar esse celular nunca na vida e não seria nada m*l tomar um café.
— Vamos tomar café — respondo e ele abre um sorriso satisfeito.
Fico hipnotizada, ele é ainda mais lindo sorrindo, os dentes branquinhos.
— Boa escolha.
Caminho com ele até o café, confesso que fico um pouco desconcertada perto dele, por vários motivos, ele é enorme perto de mim e olha que eu não sou tão pequena, lindo e tem cara de ser rico, fico completamente sem jeito.