Capítulo 01: Jornadas - Parte 2

2191 Words
Cidade de Prata Miguel nunca tinha tido seu pescoço quebrado antes, não que fosse um ferimento fatal, afinal, ele era um anjo do Senhor e, como tal, era imortal – exceto por algumas armas ou feitiços específicos. Entretanto, algo completamente diferente estava acontecendo. Ele estava na Terra, ou pelo menos, era o que parecia. Estava parado diante de celeiro pequeno, feito de pedra e barro, com algumas cabras caminhando perto, um cavalo preso a uma coluna de madeira e vacas a distância. Miguel olhou para céu, vendo uma estrela quase cinco vezes maior do que as outras, brilhando tão intensamente que poderia segar um desavisado. O querubim sorriu, sabendo exatamente com qual momento da história estava sonhando. Todavia, algo estava errado; não com o evento em si, mas com o fato de ele estar sonhando. Anjos não eram humanos; não tinham conexão com o Reino dos Sonhos e, portanto, não podiam sonhar, nem mesmo usando Magia Celestial. – Mais de vinte e um mil anos de História, este ainda é o meu momento favorito. – Ouviu uma voz conhecida dizendo; ao mesmo tempo que sua voz soava como o trovão de uma tempestade, ela também era tranquilizadora, como a voz de um pai. – Boa escolha. Ele saiu de dentro do celeiro, carregando um pequeno bebê de pele morena nos braços. Não estava com o mesmo rosto de antes; por alguma razão, ele estava com o rosto de homem branco, com a barba grande e bem recortada, os olhos eram de um intenso castanho escuro, mas amorosos. Por alguma razão, o Criador estava passando uma mensagem muito paternal. – Meu Criador. – Miguel disse, de maneira forma, ajoelhando-se imediatamente. – Levante-se, meu filho. Tenho uma mensagem para você. – O querubim não tinha certeza, mas podia jurar que havia certa cautela em seu tom. – Vá com Leonard Ross para Alexandria, onde você encontrará a o Fogo Celestial. – Senhor? – Ele estranhou. Nunca, nos vinte e um mil anos da existência do universo, um anjo compartilhou uma jornada com um homem, de fato, as interações entre as espécies eram mínimas, exceto no Paraíso é claro; ainda, ada semelhante jamais foi feito. Ao mesmo tempo, o querubim podia invocar o Fogo Celestial com apenas um pensamento ao sacar sua espada. – Estou falando do Fogo Celestial. O primeiro e fonte de todos os outros. – O Criador abriu um sorriso, desaparecendo em seguida, com o pequeno bebê Cristo nos braços. Sua voz, porém, ainda ecoou: – Não aceite a espada. Miguel conhecia os trejeitos de seu pai. Sabia que não conseguiria descobrir mais informações sobre aquela estranha jornada na qual partiria, com um humano, não menos. O celeiro de Belém de desfez aos poucos, em borrões, dando lugar ao seu quarto na Cidade de Prata, acima das nuvens de Nova Jerusalém. Ele não se lembrava da última vez que estivera ali, mesmo antes da guerra, não costumava dormir de fato. Nathanael estava no quarto com ele, sentado em uma cadeira na esquina, lendo um livro humano. Não tentou ler a capa, não se interessava – além de ter outros milhões de coisas para fazer, uma delas era vencer a guerra. Ao sentar-se na cama, ele sentiu suas seis asas doloridas, devido ao impacto da altura da qual caiu; de resto, seu corpo estava com todas as funções normais, quase pronto para um combate. Olhou em volta, lembrando-se de quando ainda era um jovem querubim, recém-criado, passando noites a fio naquela mesma cadeira em que Nathanael estava lendo todos os pergaminhos que o lore angelical tinha para oferecer: indo desde o surgimento dos Três Maiores até o fim da primeira Guerra Celestial. Leu sobre os mundos e o que cada um deles continha; sobre os deuses que habitavam Khali e Duat; sobre os Daityonis do Inferno; e sobre as promessas do Criador – nem tudo havia saído conforme o Seu Plano, mas seu pai sabia escrever certo por linhas muito tortas. – É bem estranho quando sonhamos com Ele, não? – Nathanael comentou, abaixando o livro em seu colo. – Sim, eu tive minha experiência com isso pelos séculos a fora. – O anjo acrescentou ao ver o rosto surpreso do querubim. – Sim, eu me rebelei, fui expulso e vivi na miséria durante milhares de anos, mas eu ainda estava nos planos dEle. Miguel levantou-se para sentir como estavam suas pernas. Pareciam intactas, prontas para andar o quanto fosse necessário. Tentou bater suas asas, mas sentiu tanta dor, que se perguntou o que poderia estar acontecendo com elas. Foi até um espelho que tinha ali – agora esquecido, mas nos seus primeiros anos, Miguel fora muito vaidoso com sua aparência – e abriu suas seis asas lentamente. Elas estavam estranhamente queimadas e faltando algumas penas. Não sabia como tinha acontecido, mas julgou serem ferimentos de quando estava desmaiado; Nathanael confirmou sua teoria, dizendo que o salvou de alguns demônios que tentaram tirar a vida dele com fogo infernal. – Pelo jeito, não irei voar por um bom tempo. – Miguel disse para si mesmo, mas acrescentou para o anjo: – Nós vencemos? – Sim, graças a ajuda dos Heartless e do rapaz, Leonard. Mas Nova Jerusalém está um pouco destruída. – O anjo informou. – Acho que demoraremos um tempo para reconstruímos a cidade. – Não importa. – Miguel disse. – Temos que vencer a guerra antes de pensar em reconstruir qualquer coisa. Vamos indo. Tenho que encontrar Leonard Ross. O Senhor assim me disse. Uma palavra simples em Magia Celestial fez os dois desaparecerem em um vótex de luz prateada. _____________________________ Nova Jerusalém, Paraíso Sete dias haviam se passado de meu reencontro com a Morte. Nenhum de nós três estávamos prontos para começar nossa jornada para Alexandria, pelo contrário, estávamos trabalhando com os Heartless para reconstruir o máximo possível da cidade antes de um novo ataque dos Filhos do Abismo. Lana estava trabalhando com os outros Heartless de raio para reestabelecer a eletricidade da cidade – de modo que a energia pudesse permanecer independente dos constantes inputs deles. Týr, porém, estava guardando sua magia para a jornada, que seria ainda mais perigosa do que havíamos passado até então; Kifo estava mais poderoso do que nunca e estava livre para conquistar o Paraíso. O pior problema, porém, era que os anjos espiões que tentavam manter constante vigia sobre Kifo não estavam liberando informações para os humanos. Naquela manhã, despertei no dormitório improvisado para os Heartless próximos ao muro norte da cidade, de onde mais provavelmente viria um ataque dos Filhos. O café-da-manhã foi barulhento, como sempre acontecia desde a vitória da Batalha dos Heartless, como ficou conhecida nossa batalha contra os demônios em Nova Jerusalém. Heartless, anjos e almas passando a viver em harmonia. Encontrei com Lana voltando de seu turno de trabalho, exausta como sempre. Sentamos juntos à mesa depois de ambos nos servimos no buffet – eu não deixava meu hábito de pão com manteiga herdado do Brasil, mas também não dispensava o ovo mexido e algumas frutas, estas principalmente pela insistência sem sentido de Lana, afinal, estávamos mortos e não tínhamos uma saúde com a qual se preocupar. – Como está indo na usina? – Perguntei, sabendo que não era exatamente o termo usado para descrever o lugar em que ela trabalhava. – Estamos quase colocando tudo em ordem, porém ainda tendo dificuldade em encontrar materiais para substituir coisas que apenas surgiram por causa da conexão com a Terra. – Lana informou depois de tomar um gole do copo de leite quente. O Paraíso e a Terra eram conectados, de modo que uma mudança significativa que acontecesse na Terra, esta mudança também aconteceria no Paraíso – quando, por exemplo, as Torres Gêmeas de Nova York foram alvos de terroristas, os anjos tiveram que esvaziá-las no Paraíso, pois logo desapareceriam ali também. O oposto, porém, não acontecia. Os danos causados nas cidades por causa da guerra, incluindo na usina, não mudariam nada na Terra; e as peças que foram construídas lá seriam difíceis de reproduzir no Paraíso, principalmente pelo fato das pessoas que as desenvolveram não serem capazes de lembrar que o tinham feito em vida. – Tenho certeza que vocês irão resolver. – Eu disse, tentando parecer animado; secretamente, eu me cansava só de pensar em todo o caminho que teríamos até o Egito e só o Criador sabe o que mais viria depois. – De qualquer forma, você precisa trocar seu turno, pois partiremos logo mais. Dois, três dias no máximo. Quanto mais tempo passarmos aqui, mais Kifo se fortalece e pior será para cumprimos a missão da Morte. – Sim, eu sei. – Lana bocejou. – Então você tem pouco tempo para aperfeiçoar seu swing, não? – Ouvi a voz de Lael, o anjo amigo de Lana, que, antes da Batalha de Roma, guardava as portas do coliseu, pousou ao lado deles. Nos últimos dias, o anjo ensinava-me a combater com uma espada que não era a minha própria; assim, eu não dependeria tanto do feitiço de Týr na lâmina. Lael estava ali para me encontrar e irmos até nosso local de treinamento – um campo aberto logo do outro lado do muro, o que significava que eu passava pela humilhante experiência de ser carregado para o outro lado; todos os portões estavam magicamente selados. Nós trocávamos golpes que, para um anjo, parecia ser em câmera lenta. Sua espada de madeira vinha de todas as direções possíveis; algumas vezes, ele até mesmo usava as asas para levemente sair do chão e atacar do alto. Não demorou muito para que ele me subjugasse completamente, deixando-me estirado no chão, suando como um cachorro e com dores no corpo inteiro. Lana resolveu sair completamente de seu trabalho, sabendo que eles tomariam conta do serviço sem muitos problemas, já que outra pessoa tomaria conta de seu lugar. Ela aproveitou para descansar e colocar seu sono em dia, para garantir que não dormiria em minha moto. No entanto, a visita que recebemos antes do almoço do dia seguinte nos pegou de surpresa – principalmente pelo fato de termos perguntado por ele a semana inteira. De perto, Miguel era mais alto do que aparentava. Seu olhar era calmo, como se a chama e a raiva que a guerra provinha não mais o afetasse. Sua barba estava bem-feita, porém suas seis asas estavam chamuscadas. Ele vestia uma armadura feita de prata, com desenhos aleatórios e belos em ouro; no seu peito, em um dourado ainda mais brilhante, estava a cruz de Cristo. – Pegue suas coisas, Leonard Ross. – Miguel falou, em tom solene; a raiva com a qual havia falado em nosso primeiro encontro não existia. – Nós partimos imediatamente para Alexandria. – Ao ver minha cara de confusão, narrou rapidamente sobre a mensagem do Criador. Lana apareceu em seguida. Em suas mãos estava a espada que Kane havia forjado na China, capaz de m***r os Filhos do Abismo – uma Miʻridʻr como a minha; este era o nome que os Filhos davam para minha espada; eu mesmo nunca tinha me dado ao trabalho. – Essa lâmina foi forjada pelo sangue e vida de um anjo. Ela é capaz de ceifar a vida dos Filhos do Abismo. – Eu olhei para ela com uma careta; eu nunca a tinha ouvido falar tão educadamente com alguém, nem mesmo com Taavi, o primeiro Heartless e líder de todos eles ali no Paraíso. – Apesar do poder que possui, devo negar sua oferta. – Miguel respondeu, para minha surpresa. – Pois assim o Senhor determina. – Então, não tem como te convencer a não vir conosco, não? – Eu disse, conformado, pouco antes de o silêncio tornar-se palpável. – Tudo bem, nós partiremos pela manhã. Ah, e Lael virá conosco; apenas ele. Miguel aceitou aos termos sem problema, desaparecendo em um vórtex de luz prateada. Eu não havia notado até então que outro anjo havia chegado com Miguel. Este eu reconheci imediatamente: Nathanael. Ele estava na Terra ajudando a parar Elena enquanto ela massacrava uma vila inteira – apenas as lembranças que eu trouxera à tona foram capazes. Nathanael fez um movimento positivo com a cabeça, como se concordasse com o que eu tinha acabado de fazer. Ele abriu suas asas de águia e partiu voando.   Na manhã do dia seguinte, nós preparamos mochilas com mantimentos, abastecemos minha Harley Davidson e a guardamos nas marcas de meu braço – do feitiço que Týr conjurara do livro da Morte, quando o reencontramos pela primeira vez em seu Castelo. Minha espada estava presa a cintura; a adaga de Godheim estava às costas, presa no cinto na horizontal. Coloquei meu casaco pela primeira vez desde a última batalha. Lana, com sua armadura azul preparada e enfeitiçada para surgir a sua v*****e, assim como a minha que estava também nas marcas de meu pulso. Assim que abrimos a porta, Miguel e Lael, ambos de armadura com a cruz de Cristo no peito, já esperavam por nós. Não tive nem tempo de perguntar como iriamos viajar, pois um vórtex de luz prateada me absorveu, tirando-nos de Nova Jerusalém em menos de um segundo.
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