Fora da redoma

1885 Words
Antes de eles estarem à espera da polícia no corredor da FHCE com Juliet assassinada ao lado deles, os jovens estavam naquele mesmo cenário, apinhado de calouros. As aulas do primeiro semestre haviam começado no dia 09 de fevereiro de 2015, e aquele ano letivo prometia, pois "a tal garota que assumiria a mais importante empresa que mantinha a cidade" estaria por perto. Juliet causava curiosidade e, para alguns, euforia, mas nem por isso escapou de comentários maldosos. O povo não perdoava no quesito "comentários exagerados". Juliet até pensou em desistir daquela façanha. Meu Deus, onde eu estava com a cabeça? Bem que "eles" falaram... só não sabia que seria assim tão perturbador. Porém, no auge de seus dezoito anos, estava decidida, já havia enfrentado o seu tio, o maior dos problemas, e depois de muito insistir, acabou por atingir seu objetivo. Lembrou-se das conversas que tinha com seu amigo virtual, Yuki, e dos encorajamentos que recebeu dele. Yuki havia passado por um problema parecido com o seu, segundo o próprio, e havia dito que ela podia tudo, pois era a sobrinha de um homem muito poderoso.  É necessário mais que olhares e comentários para me fazer desistir! O objetivo de Juliet, por mais absurdo que pudesse parecer, era o de se socializar. Desde que fora morar com seu tio, nunca mais frequentou uma escola. Professores particulares, de gabarito, foram contratados por Augusto para dar aulas à moça. Foi divertido no começo, mas Juliet percebeu que todo mundo necessitava de pessoas por perto.  Juliet m*l saia da mansão e, daquela forma, jamais poderia desenvolver amizades, pois somente viver em sociedade já estava difícil, imagine poder fazer coisas banais, como sair com amigos, ir à balada, a barzinhos, namorar, papear, se divertir... Eu nem ao menos tenho companhia pra sair... Juliet estava frustrada, e então decidiu arriscar. Vou falar com meu tio, a Muralha-Augusto, e serei radical, assim como ele foi comigo a vida toda.  Juliet sabia que o velho fazia tudo para o seu bem, mas já era insuportável viver sozinha. Juliet precisava se libertar. E não queria manter amizades com os filhos dos ricaços que vez ou outra apareciam na mansão para tratar de negócios. Quero ter amigos de verdade. Esses filhinhos de papai são esnobes com os outros, e não servem pra mim... O que o dinheiro não faz...? Os seguranças sempre estavam à espreita, mas foi uma das condições — imposições — que ela teve que aceitar. Não foi fácil conseguir a bênção de Augusto para embrenhar-se numa faculdade pública "cheia de gente". Foram várias tentativas e discussões até Juliet conseguir pôr os pés ali na FHCE.  Tio Augusto e a governanta Abilene às vezes riam do rosto angelical dela, que não combinava com a expressão que fazia quando se sentia enraivecida. Mas, querendo ou não, o curso serviria como treinamento para ela, porque logo assumiria a empresa. Era óbvio que a garota poderia ser mais bem treinada, Augusto pagaria os professores e consultores dos diversos cursos de coaching mais respeitados do mercado, mas o objetivo de Juliet era outro. Augusto consentiu, pois, de todo modo, ela estaria focada nos estudos, preparando-se para a Metal Industrial. * * * * * O primeiro dia de aula foi o pior. Juliet era observada. A atração principal daquele lugar era ela, ou melhor, Juliet era a única atração da FHCE. Era o animal extinto. Quando passava perto de algumas pessoas, ouvia cochichos e saía rapidamente, refugiando-se. Sempre que ouvia a palavra “família”, uma sensação gélida percorria sua espinha. Dia difícil. Nenhuma aproximação. — Ela relatava em sua mente. E assim foi por duas semanas. Quando a terceira estava prestes a acabar, sua frustração já estava no nível "sufocante". O que há comigo agora? Eu não sou tímida, eu converso com todo mundo! Algo fazia com que Juliet não tivesse coragem suficiente de enfrentar aqueles olhos curiosos, que a fitavam sem discrição. Seu coração pulsava mais forte quando entrava naquele ambiente, mas não por causa das matérias — ela dominava todos os assuntos abordados em aula —, mas sim pelo fato de não saber se aproximar das pessoas. Numa das últimas folhas de seu fichário (que chamava atenção, mesmo ela tendo escolhido o mais simples que pôde. Péssima escolha!) havia um relatório com nomes e descrições físicas dos companheiros de sala e algumas observações. O professor fazia a chamada em ordem alfabética, então, enquanto anunciava os nomes, ela anotava e observava quem eram as pessoas. Se você quer se aproximar e ser legal com os outros, deve conhecê-los bem — essa era sua primeira regra de aproximação. * * * * * A turma em que estava matriculada era composta de alunos selecionados. Além de estarem ali por causa de uma cota destinada a alunos que passaram numa prova do governo, eles também foram avaliados pela própria faculdade num processo seletivo que fornecia vales e vários outros auxílios estudantis para os felizardos. Eles recebiam material didático grátis, bolsa-auxílio num valor que chegava a quase um salário mínimo, vale-transporte, vales-cultura onde podiam gastar em livrarias, cinemas, teatros, shows, passeios e outros eventos culturais, além de um "estágio", que era visto como um trabalho que complementava a renda. Esses alunos trabalhavam para a instituição como "auxiliares de qualquer coisa", espalhados em laboratórios de informática, secretaria, chefia de campus, coordenação, tesouraria, portaria, e podiam até fazer b***s nas lanchonetes distribuídas por todos os blocos (tinha até serviço de chapeiro). De todo, não era r**m. Além de não pagarem os absurdos de mensalidades que as instituições particulares cobravam pelo mesmo curso — com ensino de qualidade inferior —, eles ainda poderiam desenvolver um trabalho que não era pesado e tornar-se independentes, de certa forma. Fora esses benefícios, adquiridos por boas notas no vestibular, ainda recebiam uma porcentagem de desconto nas repúblicas "conveniadas" à faculdade. Alguns donos de pousadas, pensões e repúblicas ofereciam um belo desconto para os alunos da FHCE, desde que ocupassem um número mínimo de vagas, como se fossem pacotes fechados de aluguel. Ou seja, tirar uma bela nota no vestibular da FHCE trazia benefícios que incentivavam, e muito, os estudos. Não havia como não se dedicar. Os alunos dessa turma, que cursavam Administração, estudavam durante o dia, no primeiro período, e no segundo, cada um desenvolvia suas atribuições. Não houve tanta burocracia assim para conseguir uma vaga para Juliet. Augusto havia conversado com o diretor e o coordenador do curso de Administração, que avaliaram Juliet com uma prova que, para ela, não tinha nada de complicada. Decidiram inseri-la na "turma dos bolsistas" porque tinha alunos mais influentes, segundo eles, e era uma turma fechada, com somente vinte alunos. Ambos os lados concordaram, com ressalvas: Juliet não se beneficiaria do estágio, dos vales e descontos em pensões ou repúblicas — o que seria irônico se acontecesse. Obviamente, o que facilitou o recrutamento dela foi um possível acordo entre a faculdade e o empresário, que conversariam depois para pôr no papel um projeto sobre um novo programa de estágios na Metal Industrial. * * * * * O professor chamou a atenção de todos, tirando Juliet de devaneios, e anunciou: — Bem, como eu tinha dito, vou passar um trabalho pra fechar este semestre. Terão tempo suficiente para a entrega, e não poderão reclamar. Preciso que a sala se divida em dois grupos. Pois a tarefa é “árdua” — debochou. Após a explicação do tema e as especificações do projeto, disse: — Vamos então, pessoal! Agilizando! Houve certa movimentação no local com arrastar de carteiras, e as pessoas combinavam entre si para formar o g***o. Juliet ficou perdida. “Dois grupos”, pensava, mas não conseguia se mexer. Como num passe de mágica barulhento, os grupos já estavam formados. E Juliet ainda se encontrava perdida. Sua tapada! E agora? Ela estava vermelha de vergonha e desconcertada. Sem saber que atitude tomar, Juliet ergueu a mão devagar, no melhor estilo "tô sobrando". — Eu aqui, fiquei sem g***o. E o professor, sem cerimônia, perguntou: — Bem, então o que está esperando? Vamos, junte-se aos outros, por favor, para darmos continuidade ao projeto. Juliet sentia-se na selva. Era a mais nova daquela sala. E, para piorar: era Juliet! Ficou boiando por alguns segundos, ruborizada, nervosa, e perdida entre dois grupos, onde dez pares de olhos a encaravam de cada lado. So-cor-ro! — Chega aí! — alguém a convidou. Um anjo! — Certo — disse o professor. — Começaremos, então. Conforme eu disse, o tema consiste em... Meu Deus, me ajuda... Ok, Juliet, só não se esqueça de respirar, tá bom...? Juliet parecia não ouvir o professor. Pegou suas coisas, que não eram muitas, e juntou-se aos outros. Andrew, um rapaz loiro, alto, de cabelos levemente arrepiados, dono de olhos verdes vivos castigados com miopia, e que usava óculos que o deixavam mais nerd que nunca, pôs-se de pé e a ajudou com sua cadeira. — Obrigada pelo convite — disse Juliet, meio sem jeito. – Por nada. Será um prazer. Ok, primeiro contato com os seres deste planeta chamado "Além-mansão". Todos se acomodaram. Ela olhou para cada um do seu g***o, cautelosa, porém aliviada por estar no meio deles. Foi recebida de forma natural, ninguém a fitou por muito tempo, para sua surpresa. Parecia uma situação normal. Espero que eu me sinta mais confortável durante as próximas aulas. Juliet estava na extremidade da grande mesa formada por carteiras justapostas.  Agora você está superexposta, respira... Apesar do nervosismo, ela era capaz de dizer facilmente o nome de todos que estavam ali, graças aos seus relatórios. À sua esquerda, estava o n***o que tinha um sorriso lindo e jeito de xavequeiro, seu nome era Robson. Ao lado dele, sentava o Douglas, que aparentava ser o mais tímido dos homens. Depois vinham as meninas: a vaidosa Liliane, uma morena alta, dona de um corpo atraente e sotaque característico; a branquela da Lúcia, de cabelos curtos e loiros; a Elita, com seus olhos negros penetrantes, que a cada mês estava com os cabelos pintados de uma cor diferente e que poderia ser comparada fácil fácil com uma boneca viva. De frente para Elita, estava a meiga Carol e, ao lado dela, encontrava-se o moço da cabeleira encaracolada, Dênis. Depois vinha o gordinho chamado Maicon, que conversava sem parar com o Leonardo, mais conhecido como Leo (eram melhores amigos, e andavam de skate juntos). E, fechando o g***o: Andrew. As semanas passavam, Juliet já havia desenvolvido diálogos longos com eles, conversava com todos, e gostava daquilo. Conhecia um pouco mais de cada colega a cada dia que passava, e isso a deixava mais à v*****e. Todos pareciam gostar de Juliet e, como era a mais inteligente, o g***o estava em vantagem nos trabalhos. Ela era a cabeça do g***o e se mostrava muito animada com o cargo. Os trabalhos escolares eram difíceis, mas tendo Juliet no g***o, a-menina-que-manjava, tudo ficava mais fácil. Ainda era precipitado dizer que eles eram seus amigos de verdade, mas ela sentia que conseguira atingir seu objetivo principal: ter amigos. Ela abandonou algumas de suas "regras de aproximação", pois era bem melhor deixar a i********e fluir sozinha. Dona de uma capacidade de observação infalível, sabia dizer o que cada um gostava de fazer. Consegui. Tenho amigos. Juliet se mostrava empolgada. E muito enganada.
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