Tentativas infelizes - parte 1/2

1684 Words
Valéria Gentil vivia na pacata cidadezinha chamada Vila Pequena, e era justamente isso que ela havia procurado naquela altura da vida, um lugar simples que a fizesse bem. Finalmente achara. Trabalhava como professora na creche de Vila Pequena, e amava o que fazia. Os pequeninos a chamavam de "Tia Val", e ela se derretia toda com o carinho que emanava deles. Num final de semana, como era de hábito, foi até a janela de sua sala para apreciar a simplicidade do lugar e ver o motivo de tanta correria e algazarra das crianças. Estava quente, mas a visão ensolarada compensava o calor. Com um copo de limonada na mão, contemplou a rua, bebericando o suco e refletindo sobre a vida. Valéria era uma mulher decidida e comprometida. Amava a simplicidade, embora anos antes não ligasse para isso tanto assim. Teve, e os aproveitou muito bem, seus momentos aventureiros e radicais, mas quando fez trinta anos, decidiu optar pela "paz", pelo sossego, e tirar um tempo só para ela. Foi quando se formou em Pedagogia e se aventurou na vida ao lados das crianças. Quase todo mundo em Vila Pequena a conhecia e gostava dela, pois era uma pessoa do bem. Sempre ajudava os próximos, era ótima companhia para conversas e boa conselheira. Desde nova, honrava sua independência. Havia se afastado dos irmãos em busca de algo novo. Não havia rixa ou qualquer tipo de rivalidade entre eles, mas as vidas que almejavam eram díspares demais. Eram sonhos diferentes. E nas andanças cheias de jovialidade, foi fazer de Vila Pequena a sua morada. Mesmo aos trinta e quatro anos, nunca havia se casado, pois seus poucos romances não duravam muito. Ela não gostava de homens machistas e autoritários mas, talvez por azar, só conheceu homens assim. Sou apaixonada pela minha profissão, e isso já me basta. Mas ela sabia que não era bem por aí. * * * * * Num determinado dia, Valéria caminhava pela praça central da cidade, com um vestido longo e florido que combinava com a paisagem primaveril. Sempre dava esses passeios para relaxar, e a praça oferecia um ambiente calmo e relaxante. Naquele dia, a pista de caminhada estava lotada. Do outro lado, ciclistas suados passavam, alguns arriscando pequenas manobras, executadas com perfeição. Ela ficou ali contemplando a paisagem mais um pouco. O vento surrava seus cabelos, que brilhavam com a luz do Sol. Levantou-se de seu banco favorito, e distraída, chocou-se com alguém. Seu corpo pendeu para trás, mas o homem agarrou sua cintura gentilmente e a ajeitou na posição correta. Quando ela fitou seus olhos, ficou admirada - esbarrara num homem alto, forte e bem vestido, quase um galã de televisão. Foi dessa maneira desastrosa que conheceu o seu grande amor. Ricardo Talles, que passou a ser chamado de Rick. De um esbarrão numa praça, a uma conversa na sorveteria (como pedido de desculpas), a jantares, ao compromisso de namoro e à concretização de um romance doce. Ricardo se mostrou boa pessoa, além de conversar bem, pois, como era coach em administração de empresas, tinha muita desenvoltura em comunicação. Sua companhia era agradável. Ele era o tipo de pessoa fácil de lidar... porém, também era um apaixonado por seu trabalho e, como Valéria havia percebido, ambos davam mais importância à profissão do que à r*****o. Foi quando o romance esfriou, chegando até a ser considerado um empecilho na vida dos dois. Decidiram se separar antes de dar o "passo do casamento" e interromper o plano de aumentar a suposta família. Sim, chegaram a pensar em ter um filho, mas ainda bem que desistiram, não é mesmo? Sabiam que não daria certo levar o noivado adiante. Nossa paixão profissional é maior que a paixão entre a gente - foi o pensamento e a fala dela antes de tomarem a decisão final. Depois disso, Ricardo foi para Lisboa a negócios. Tudo é "negócios". Tudo é dinheiro. Mandou notícias uma única vez. Tenho que me conformar, afinal, também amo o que faço, e ambos nos respeitamos quanto a isso. Foi melhor assim. Porém, uma emoção diferente sempre o trazia de volta. De noite em sua cama, ele era o único homem que, de vez em quando, a visitava nos sonhos. * * * * * 08 de agosto de 1992, sábado Quando despertou de mais um sonho com Ricardo, Valéria se olhou no espelho do banheiro demoradamente. Ficou se encarando. Sua mente estava longe, recheada de pensamentos longínquos. De tão dispersa, só foi ouvir seu telefone tocar na segunda chamada. Saiu do banheiro. Atendeu. — Alô? Valéria pôde perceber a hesitação do outro lado da linha. — Valéria? Você... Tá tudo bem? O coração dela acelerou num segundo. Conhecia aquela voz de longe. Linda, perfeita. O silêncio continuou no ambiente. Valéria se jogou no sofá, muda. — Oi... Valéria? Pode falar...? — É você? — Claro que era ele! E ela sabia disso mais que ninguém. Sua cabeça pesou, estava com os pensamentos mais desorganizados que as tralhas no quarto de um adolescente rebelde. Ela não poderia negar, já havia sonhado com o dia em que receberia uma ligação dele, mas isso estava longe da realidade. Mas... Caramba! Esse dia chegou! — Rick, é você? — Sim... me perdoe... Eu... Como você está? — Rick, não estou acreditando! — A voz de Valéria ficou mais alta, seu sono havia ido embora de forma repentina. — Rick, você não sabe quanto tempo eu... Onde você está? — Valéria, estou aqui em Lisboa ainda... — Por que você não me ligou mais? — Ela não se controlou e interrompeu. Seu coração pulsava rápido, sentiu a alegria crescer dentro de si. — Bem —começou ele com a voz tremida. — Você terminou comigo. Tomou uma decisão na sua vida. Eu já não fazia mais parte dela. Então, como um bom fracassado, eu aceitei a derrota. Não dei notícias porque pensei que não me amasse mais... Nunca deixei de te amar, Rick! Nunca estive tão arrependida na minha vida! Fui radical, fomos radicais... — Valéria... — Rick, meu Deus! Por quê...? — Parou de falar, abruptamente. — Percebo que está nervosa... bem, eu também estou, mas acalme-se. Com ambos nervosos o diálogo fica difícil. Ela o ouviu dar aquele risinho nervoso que sempre dava quando justificava suas horas extras no trabalho. — Eu não sei responder o porquê, aliás, "por que" o quê? — Tudo, Rick, tudo! Por que aconteceu isso? Por que resolveu me ligar agora? Ela pousou a mão na testa e depois mordeu o polegar. Seus olhos não encontravam nada interessante no que focar, parecia que seus sentidos haviam sido desligados e só a audição permanecia ativa. Como ela amava aquela voz. — Valéria, olha, isso tudo aconteceu por motivos que pareceram reais e sólidos na época, mas hoje, hoje de manhã, quando eu acordei, a primeira coisa que eu pensei foi naquele encontro que tivemos, quando nos conhecemos, lembra? — E teria como esquecer? — Nunca esqueci você... e me perdoe se estou sendo inopor... — Não, Rick! Não está sendo inoportuno... Ele pigarreou. — Bom, o que eu quis dizer foi se eu não estou atrapalhando você, comprometendo você, criando problemas, entende? — Eu sei, já entendi... Eu não estou me relacionando com ninguém, Rick, eu estive esses anos todos, de certa forma, esperando... —Ela se policiou, tinha que respirar, controlar sua empolgação — Você... bom, faz tempo que... enfim, você está...? Sem terminar, deixou a pergunta no ar. Depois do silêncio que se instalou ele disse: — Atualmente, não. Não estou com ninguém, Valéria. Foi uma confusão. Um misto de sentimentos. Era felicidade? Sim. E o que foi aquilo a mais? Uma pontada de ciúme porque a palavra "atualmente" sugerira que ele estivera com outra mulher? Mas o que é que eu poderia querer? Que ele se guardasse por esse tempo todo? No seu íntimo, era exatamente o que ela desejava, que ele estivesse sozinho durante os anos que passaram sem se falar, mas isso seria egoísmo exagerado de sua parte. Uma coisa era certa, homens não se "guardavam" tanto tempo assim. Fez-se mais silêncio. Ambos respiravam tensos. — Bom, atualmente não, então? — Isso, "não, então" — falou com sua voz grave. — Parece que estamos livres de novo. — Eu sempre estive, Rick... Ela deixou a frase morrer no ar, e ele percebeu seu incômodo, embora não devesse senti-lo, afinal, ela que tomou a atitude da separação. — Eu lamento, você... — Sim, fui eu. Não repita, por favor. Sei qual foi minha atitude, e não fique me culpando. — Valéria, nós estamos brigando? — Ah, você acha isso? Acha realmente que é uma briga? — Ele não evitou rir, imaginou seu rosto confuso e hesitante quando passavam por situações nas quais o tema era o ciúme. — Você ainda ri, Rick? — Valéria, me perdoe. Estou nervoso. — E você está me deixando confusa! — Confusa? — Foi isso que entendeu! — Vamos tentar manter a calma, por favor, pode ser? Eu sei que uma mulher não quer saber se seu ex teve algum relacionamento ou aventuras amorosas, mas... — Exatamente. Não quero saber, isso não me interessa, Rick. — Posso terminar? Ela bufou. Fechou os olhos, e com os dedos polegar e indicador, em formato de pinça, pressionou a parte superior do nariz, como quem acabou de ouvir uma baboseira de uma pessoa ignorante. — Termine — cedeu. — Não tive relacionamentos muito sérios — o plural a fez sentir um desconforto. — Confesso que depois de você... Valéria, de certa forma, você foi a mulher mais especial que conheci em toda a minha vida. — Ela segurou a respiração, porque ele também fora o homem mais especial em sua vida. — Pode soar clichê, sim. Mas isso é clichê mesmo, porque é algo verdadeiro. — Rick... — Ela tentava encontrar palavras, mas sua euforia dificultava. — Você também sabe que fui completamente apaixonada por você... — Apaixonada? Pensei ter ouvido alguns "Eu te amo, meu Rick" ao longo de nosso relacionamento. — Você me obrigou a sorrir, sabia? Ele a havia desarmado.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD