Hoje estou em um dia bom. Distraída demais com a rachadura no teto para ouvir o som de portas automáticas sendo abertas. Só que não tão distraída para conseguir ignorar os gritos dos meus amigos malucos nas salas de isolamento no andar acima do meu.
Eles estão sempre gritando.
No começo eu achava uma reação completamente exagerada, mas depois de passar dois dias inteiros presa naquele lugar, além de adquirir o pânico de lugares fechados e muito escuros, passei a sentir uma enorme empatia pelos que cometiam alguma burrice e eram levados para lá. Uma coisa é ser maluco sabendo que você está rodeado por tantos outros, outra é ser jogado em uma jaula com seus próprios demônios rosnando para você.
A porta do meu quarto desliza suavemente para a esquerda assim que um apito ressoa pela a******a quase imperceptível na lateral. Uma mão rechonchuda segura a porta e carrega uma bandeja com a outra. A cabeleira ruiva e desgrenhada da enfermeira chefe do turno da manhã aparece antes de seu corpo roliço atravessar a porta.
Maisee é uma verdadeira vaca, tanto na aparência quanto nos costumes. Seguindo os protocolos da clínica, desde que nos comportemos bem, ela não pega no nosso pé. Eu até mesmo tento compreender a rabugice de Maisee ao pensar que deve ser h******l trabalhar com tantos loucos à sua volta. Mas a simples idéia de sentir qualquer tipo de afeição por ela é tão absurda que chego a rir alto.
— Já vi que estamos em um ótimo dia. — Maisee comenta amargamente, empurrando a porta com o pé.
Tenho quase certeza de que todos os enfermeiros odeiam quando estamos de bom humor. Eles gostam quando estamos irritados e insanos, assim podem nos aplicar seus sedativos. É tão bizarra a satisfação que eles sentem nos sedando que acho muito provável que sejam capazes de atingir um nível de prazer nunca antes experimentado pela humanidade, apenas imaginando suas agulhas entrando em nossos traseiros. Sinto cócegas na parte maldosa que existe em meu cérebro e dou mais uma risada amarga.
Maisee se aproxima do meu lado da cama, colocando suavemente a bandeja no meu criado mudo — que também é pregado ao chão para evitar que eu o arremesse em um ataque de fúria —, puxa um molho de chaves em seu bolso e abre a tela escura que cobre a pequena janela. O ar fresco da manhã invade o meu quarto, espalhando a luz do sol e o cheiro cítrico de eucalipto.
Descobri há pouco tempo que a única forma de reter algumas lembranças é me apegar aos detalhes que a maioria das pessoas deixa passar. Eu sou capaz de me lembrar de alguma situação se sentir um perfume uma segunda vez, embora muitos cheiros me deem dor de cabeça por serem fortes demais para a minha sensibilidade. Posso também lembrar-me de sensações se associá-las a alguma música ou som característico.
— Hoje é Segunda-feira — anuncia Maisee, cruzando à frente do corpo os braços roliços que sobressaem o jaleco branco. As duas pequenas fendas que são seus olhos verdes estão levemente estreitas, fitando-me com a sua habitual expressão de tédio.
Segunda. Eu odeio as Segundas. Não que isso seja uma novidade. Já ouvi quando alguns enfermeiros disseram que as Segundas-feiras são conhecidas como os dias mundiais do ódio. Mas eu tenho uma razão à mais para odiá-la. Segundas são os dias em que minhas consultas com o psiquiatra estão marcadas. Embora sinta saudades de conversar com alguém, não posso dar o braço a torcer e admitir que as Segundas sejam os únicos dias em que tenho algo útil para fazer.
Não há nenhuma brecha entre a rotina padrão da clínica. Os pacientes — com exceção das crianças — são acordados das oito horas às nove da manhã, horário em que todos devem tomar os seus remédios, descer para o térreo e seguir em direção aos banheiros sempre supervisionados por enfermeiros. Tomamos o café da manhã às dez e meia até as onze e meia. Somos escoltados até alguma sala de recreação ou até o pátio, onde ficamos sem fazer nada além de tomar os remédios mais uma vez e esperar até que o relógio marque uma hora, e temos até as duas e meia para terminar o almoço.
O chá da tarde é servido às quatro e meia e vai até às cinco e meia. O horário de visita é das seis até as sete. Nosso segundo banho é às sete e meia. O jantar é servido as oito logo após tomarmos o nosso remédio pela terceira vez, e às nove e meia seguimos de volta aos nossos quartos.
As segundas estragam a minha rotina. Eu nunca sei qual será o plano do meu psiquiatra para o dia. Ele já me estimulou a conversar com outros loucos e foi graças a ele que conheci um garoto da ala três e uma garota do mesmo andar que eu. Aliás, desde que os professores terminaram a sua tarefa de vir a clínica me ensinar o que eu não podia aprender em uma escola normal, ele ficou obcecado em me dar tarefas com a desculpa de que preciso exercitar meu cérebro para manter as vozes disciplinadas.
Engulo os dois pequenos comprimidos coloridos com o auxílio do copo de água e mostro a língua para Maisee. Os enfermeiros sempre ficam esperando para ver se realmente vamos beber o remédio. Maisee fica insatisfeita em só ver a minha língua e segura com força o meu queixo para que eu a recolha e mostre embaixo dela. Tento ficar séria enquanto Maisee aproxima o rosto redondo e cheio de rugas em direção ao meu, mas quando seus cabelos avermelhados meio presos e meio soltos caem em seu rosto, aquela sombra de insanidade me envolve novamente e eu começo a rir feito uma garotinha de cinco anos. Maisee odeia quando faço isso.
— Vamos ver se as risadinhas vão continuar quando o papai aprovar a Terapia Eletroconvulsiva. — Sorrindo ironicamente, ela solta o meu queixo com um arranque.
Dou uma risada ainda mais alta. Não admito deixar que ela saiba o meu medo do Eletrochoque. Penso naqueles que já passaram por este tipo de tratamento que tiveram a cabeça raspada e distraidamente afago os meus fios loiros que se contorcem em grandes cachos. Meu maior medo, na verdade, é trazer à vida outras personalidades que não serei capaz de controlar.
Eu aceitei a minha loucura de braços abertos porque ela foi a única coisa que ninguém foi capaz de tirar de mim, mas não quero que ela domine totalmente o meu eu. Ainda tenho uma falsa sensação de estar sob controle. Embora saiba que estou me enganando, é mais fácil do que aceitar a minha c***l realidade.
Paro de rir e enxugo as lágrimas que se acumulam nos cantos de meus olhos. Empurro minha coberta e levanto num pulo, esticando os braços como se eu quisesse imitar as asas de um avião. Sorrindo do jeito mais insano que consigo, me espreguiço. Maisee revira os olhos.
— Bom dia, Mai... — Cumprimento manhosamente. — Você está incrível hoje!
— Abigail, quer parar de gracinhas e vir logo? — Ela retruca.
Finjo estar amuada. — Poxa.
Maisee se afasta em direção a porta e me espera, segurando-a com um dos braços. Fico parada e olho ao redor do quarto só para irritá-la ainda mais. As paredes do meu quarto são creme, o que dá um certo conforto em um lugar onde tudo é branco e acolchoado. O piso liso escorrega através das minhas meias. Com exceção da cama de solteiro, do criado mudo, do ventilador de teto e da câmera, não há nada neste quarto. Quando Maisee bufa de frustração, olho em sua direção e sorrio, caminhando sem a mínima pressa para fora do quarto.
Maisee fecha a porta com um baque s***o e passa o seu cartão para travá-la. Há uma fila de pacientes sendo acompanhados por enfermeiros para o saguão, onde é a nossa primeira parada aos banheiros. Maisee segura firme em meu braço e por um momento sinto a sua raiva sendo descontada neste gesto. Ela me coloca no último lugar da fila, atrás de uma garota de cabelos castanhos repartidos no meio e de olhos esbugalhados. A garota gira lentamente a cabeça e me lança um sorriso débil.
— A-Bee... — Ela murmura. — Bom... Dia...
— Bom dia, Noelle. — Respondo, mostrando um sorriso largo.
A extensa fila de pacientes barulhentos e risonhos segue seu caminho com pequenos passos e eu permito-me flutuar em direção a uma névoa de memória, tendo o perfume da garota à minha frente como um gatilho.
Noelle é a garota Esquizofrênica que o meu Psiquiatra me induziu a conversar. Ela não falava com ninguém, estava sempre encolhida em um canto e abraçando o próprio corpo. Não me deu confiança quando perguntei se estava tudo bem, nem quando disse que me chamava Abby, embora ela tenha sorrido brevemente e me chamado de "A-Bee", dizendo que nunca ouvira falar de uma só pessoa que se chamava "Abelha".
Demorou algum tempo até Noelle saber que eu era tão — ou ainda mais — louca quanto ela. Foi em um dos meus piores dias. Emily não parava de chorar em meus ouvidos e murmurava algo que eu não conseguia escutar direito. Eu sentia uma necessidade cada vez crescente de bater com a cabeça no chão até que ela rachasse. Hoje tenho uma leve suspeita de que era isso o que Emily me mandava fazer.
Foi no momento em que me joguei no chão da sala de recreação e apoiei as duas mãos para arremessar a cabeça contra a cerâmica dura e fria que senti uma mão em meus ombros. Girei a cabeça só até que eu pudesse ver quem estava por perto e me deparei com a garota de cabelos repartidos e olhos esbugalhados. Ela estava ajoelhada ao meu lado e me segurava com tanta força que eu m*l acreditei que alguém como ela podia ter um aperto tão forte.
— O truque é... Ocupar a sua mente... Com detalhes banais... — Ela disse lentamente, ainda com uma expressão assustada no rosto. — É o que... Eu faço... Com as vozes que escuto.
A surpresa que senti foi tão grande que afastei as mãos das laterais da cabeça e me sentei. Noelle ainda segurava meu ombro com muita força, sua expressão se suavizando aos poucos. Emily parecera tão surpresa quanto eu, pois seu choro diminuiu até se perder completamente em um canto escuro da minha cabeça.
— Você... Vê... Aquela cadeira? — Noelle apontou com o queixo uma cadeira esquecida no canto do enorme salão. — Você... Já se perguntou... por que... Ninguém se senta nela?
Olhei na direção da cadeira e franzi o cenho, realmente tentando entender o que Noelle queria dizer. Depois de quase uma eternidade encarando a cadeira, achei que encarar objetos que não tinham nada de errado era só mais uma conseqüência de ser esquizofrênica. Noelle segurou meu rosto antes que eu desviasse a atenção.
— Gosto de imaginar... O que pode... Ter acontecido... Para que as pessoas... Rejeitem... As coisas... Ou... — Ela parou, olhando fixamente para a cadeira. Engoliu em seco e tomou fôlego para continuar. — Gosto... De ocupar a minha mente... Fingindo que posso... Descobrir um jeito... De consertar as falhas.
Nada daquilo fazia sentido. Por compaixão, fixei meus olhos na cadeira e quase que automaticamente encontrei uma deformidade em uma das pernas de metal. As pernas da cadeira pareciam ter se aberto quando alguém que pesava mais do que ela era capaz de suportar, se sentou. Fora consertada precariamente e uma marca disso era que uma das pernas esquerdas estava ainda dobrada, deixando a cadeira mais inclinada para a esquerda, como uma pessoa cansada que se apóia em um dos pés.
— A perna esquerda. — Constatei, olhando de relance para a expressão perdida no rosto de Noelle. — Parece dobrada como se a cadeira tivesse cedido sob o peso de alguém.
Noelle desviou a atenção da cadeira e analisou meu rosto. Seus lábios se esticaram em um sorrisinho e ela soltou o meu ombro.
— Ouvi dizer... Que a cadeira... Estava na sala... Da senhora Willie.
Senhora Willie era como os outros pacientes chamavam Maisee. Eu nunca a chamava pelo sobrenome, só porque ela odiava qualquer i********e com os pacientes e eu adorava complicar a sua vida.
— Quer dizer que a vaca pesa mesmo tanto quanto uma vaca? — Perguntei com uma naturalidade forçada. Noelle riu quando eu também ri. Percebi naquele dia que se tinha uma coisa que os loucos adoravam fazer, era rir de piadas sem graça.
— Se... Ela... Te ouvisse... — Noelle balançou a cabeça e respirou fundo para controlar o riso. Sua risada era um som engraçado, como a mistura entre a risada de uma criança e o ronronar de um gato.
Noelle começou a se levantar lentamente, apoiando uma das mãos no chão e fazendo força para que o seu corpo se endireitasse.
— A-Bee...Você... Já... Foi... Ao... jardim de margaridas?
Eu neguei com a cabeça. Ela deu um pulinho e me esticou a mão direita. Sorri e segurei sua mão estendida sem qualquer hesitação. Fomos juntas ao jardim de margaridas e, até hoje, o perfume de flores que ela usa me faz lembrar daquela tarde.
Lembro-me que após vários dias compartilhando nossos horários vagos com relatórios inúteis feitos no jardim de flores coloridas ou conversando sobre a vida, soube que Noelle tinha vinte e dois anos e que enlouquecera aos treze, após anos de abusos cometidos pela mulher que ela chamava de avó. Seus pais e irmão morreram quando ela ainda era uma criança, deixando-a sozinha com uma mulher infeliz e amargurada.
Naquela época, cerca de dois anos atrás, Noelle era uma das poucas pessoas que já ouvi falar não temerem a sua doença.
Cheguei a pensar que quando estamos no mais fundo do poço qualquer resquício de esperança se torna o suficiente para nos sentirmos bem. Pensava que Noelle se sentia bem por ter a loucura como uma salvação, quando na verdade foi uma conseqüência pelos horrores que seus grandes olhos azul-acinzentados tentavam esconder.
Mas era durante a noite, quando todos iam para os seus quartos e o silêncio caía sobre a clínica como um grande lençol empoeirado, em que eu ouvia o seu grito pungente e cheio de rancor ecoar e atravessar as paredes do meu quarto. Noelle gritava porque tinha memórias vívidas sobre todo o seu trauma, quando eu não podia dizer com certeza nem mesmo quem eu era.
Quando fecho os meus olhos e sinto as peças em minha cabeça mudando, associo isso às engrenagens de um enorme relógio. Ninguém pode vê-las se não o abrir, assim como ninguém pode saber o que há de errado comigo se não tentar se aproximar.
As engrenagens giram e são os ponteiros de horas e minutos que apontam para a personalidade que virá em seguida. Eu posso ser o garotinho alegre que desliza pelo chão, unindo os lábios e imitando o som de um motor de carro: "vrum!". A adolescente sarcástica que joga seus longos cabelos para trás enquanto dança uma música que apenas ela pode escutar. Posso ser aquela que está sempre se gabando por sua inteligência e murmura o quanto sente a falta de folhear as páginas de um livro. Posso levantar-me às pressas e correr para o canto mais escuro do quarto, envolvendo-me em uma bola e chorando alto enquanto cubro o meu rosto com os meus braços.
O ponteiro pode cair sobre a menina de olhos rancorosos e lábios ressecados que ruge com a dor avassaladora que atinge os seus ossos frágeis, ou então, eu posso caminhar de um lado para o outro e murmurar os meus planos para o futuro, sentir uma falsa sensação de alegria e me apegar a ela.
Nas vezes em que não sou outra pessoa, sou uma espécie de casca, vazia e dispensável. Persigo meus sonhos como se fossem migalhas do meu passado e guardo todas as dores da perda dentro de mim. Mesmo quando as vozes aparecem e menosprezam a minha boa convivência com as outras pessoas, seguro o meu grito e finjo uma estabilidade emocional que nunca tive.
Todas as noites a minha mente fica perturbada demais pelo silêncio do lado de fora e pela festa barulhenta que acontece por dentro. Então, eu fecho meus olhos com força e imagino que vai chegar o dia em que, assim como Noelle, meus demônios internos se tornarão em memórias e eu finalmente soltarei o grito que servirá como escudo para enfrentar e entender o meu lado insano. Mesmo que isso signifique a minha queda.