05

4930 Words
― Não importa o que me diga..., eu não vou deixar você aqui!             ― Você não escolhe isso, Eliza. Aqueles desgraçados foram presos e não vão sair da prisão. ― Mentiu. A irmã estava gritando na sala, andando de um lado para o outro. ― E eu vou colocar grades e um sistema de segurança na casa. Se não tivesse sido tão rápido, eu teria conseguido pegar minha arma no quarto, mas...             ― Como vou explicar isso pro Logan?             ― Não explique. Não conte nada, Eliza. ― Anne enfiou as mãos nos cabelos, lembrando-se da figura de Charles de olhos fechados enquanto a ajudava, fazendo Eliza levitar. ― Ele não precisa saber de nada, apenas diga que caiu da escada, eu não sei, qualquer coisa...             ― Qualquer coisa. ― Eliza riu. ― É tão fácil pra você dizer.             ― É fácil pra você também. ― Não era fácil. Estava mentindo.             ― Não é fácil coisa nenhuma! ― A mais nova elevou a voz, fincando os olhos em Anne. ― Como vou esconder do meu marido que quase fui estuprada?             ― Do mesmo jeito que você escondeu aquele... Como era mesmo o nome dele?             ― Dale. E isso nunca, nunca mais vai acontecer. Eu estava com raiva, triste e bêbada.             ― O que aconteceu aqui nunca mais vai acontecer também, Eliza. ― Anne se levantou, com um semblante calmo e frio, tentou como sempre estar no controle da situação. ― Mas se isso vai infernizar sua vida, você pode contar. Eu sei que ele vai entender.             ― Nunca mais vai me deixar voltar aqui sozinha. Nunca mais vai me deixar fazer nada sozinha.             ― Você pode trazer ele e as crianças, eu não me importo. ― Anne, acho que você não está entendendo. Merda... ― Eliza puxou a mão da irmã. ―Tudo bem, tudo bem! Prometa que isso vai morrer aqui.... Nada de relatar algo parecido nos seus livros. ― Eu prometo. ― A mais velha sibilou com firmeza e ambas sorriram, dando as mãos como se fechassem um contrato. ― Agora vamos contratar um maldito sistema de segurança. (...) Quando Anne entrou novamente naquela casa, o sol se deitava no horizonte alaranjado. Sozinha. Ela caiu no sofá, olhando a escadaria e a quina que havia sido o objeto de morte de um dos homens. Quando abraçou Eliza para ir embora, ela parecia uma bigorna prestes a afundar numa imensidão oceânica muito mais profunda do que parecia ser. E aquilo a preocupou. Mas deixou que ela entrasse naquele carro e ficou com o celular na mão desde então, por mais que o sinal não fosse tão bom ali. Eliza não deveria ter ido. Não deveria ter aparecido tão rápido. Se ela não tivesse chegado de repente, elas não teriam ido àquele bar, e nada de r**m teria acontecido. Não precisaria ter escondido a existência de um fantasma morando em sua casa. Charles não precisaria ter matado aqueles três, ambas não precisariam ter passado pelo pesadelo que sentia ainda não ter acordado. Respirou profundamente, estirada no sofá, observando as caixas que jaziam por toda a casa. Precisava dar um jeito na vida. Precisava... Dar um jeito em sua mente. E foi com aquele pensamento que se levantou, decidida a tomar banho e depois de fazê-lo, já era noite. Deixou que a xícara de chá vermelho esfriasse na mesa da biblioteca e se sentou, com o corpo limpo, mas se sentindo suja. Toda vez que lembrava, um calafrio subia pela a espinha. Um calafrio r**m. Tinha decidido deixar os cães soltos, e a cerca colocada nos arredores da casa deveria, supostamente, dificultar alguma coisa. Se nada disso funcionasse, o botão de pânico acionaria a polícia. Ela pousou os dedos sobre a mesa, escorrendo-os até embaixo da madeira, passando a ponta do indicador sobre o botão que tinha sido instalado ali naquela tarde, antes de Eliza partir. Anne deixou as mãos descansarem nas pernas, e tentou relaxar na cadeira enquanto os olhos corriam para o teto iluminado pela claridade alaranjada das lâmpadas. O rosto inchado e o pescoço arroxeado doíam imensamente. Estava com medo. Naquela casa. Sozinha. Por mais que soubesse que não estava de certo sozinha, mas era exatamente como se estivesse. Até às três da manhã. Ele não podia vir antes, nem ir embora depois. Ele nunca se atrasaria naqueles dois pontos do relógio. Uma hora ali, e na seguinte, invisível. Como um delírio. O longo e alto suspiro ecoou pelos pulmões femininos. Estava cansada. Mas não queria dormir. Não queria adormecer, sonhar, mergulhar naquele outro mundo para acordar no pesadelo mais uma vez. O som dos cachorros correndo lá fora fazia seu coração acelerar e desacelerar em uma velocidade alarmante. Pensando naquilo, os olhos pousaram na pistola, agora perto o suficiente de seu alcance: em cima da mesa logo ao lado da xícara. E o som do telefone tocando fez a mulher saltar da cadeira, assustada, esbarrando o quadril na mesa e quase fazendo a caneca virar enquanto alcançava o aparelho celular. Atendeu-o, aflita. ― Eliza? ― Senhorita Walch? Meu nome é Peter Donavan, sou da revista Times. Pode falar? ― O que? Times...? Peter...? ― Estava dormindo? Eu posso ligar depois- ― Por que exatamente está me ligando? ― Ela quis saber já que ninguém além de seu verdadeiro editor e Eliza sabiam daquele número. ― Onde conseguiu esse número? ― Faremos uma matéria sobre os melhores escritores da atualidade e eu gostaria de saber se pode nos ceder uma rápida entrevista? Seu editor- ― Entrevista? ― Balbuciou. ― Sim... uma entrevista. Está tudo bem? ― Tudo bem, só fiquei surpresa. ― Ela massageou o cenho, demoradamente. ― Quando podemos marcar? Estamos pensando em tirar uma ou duas fotos para a matéria, pode ser? ― Pensei que você tinha falado rápida entrevista... ― E é! Não vai tomar mais do que três horas do seu dia. ― Eu não pretendo sair daqui... ― Anne já pensava em negar a entrevista. Mas sabia que não podia. Que provavelmente seu editor aprovava a ideia. Não gostava do conceito de ter um empresário então tentava cuidar da própria carreira e sabia que uma entrevista na Times queria dizer vendas. Muitas vendas. ― Não vai precisar. A equipe vai até você. Vou mandar todos os detalhes pro seu e-mail e discutiremos melhor, pode ser? ― Pode ser. ― Suspirou. ― Obrigado e boa noite Srta. Walch. Quando o homem desligou, ela pousou o telefone sobre a mesa e bebeu um grande gole de chá, um pouco angustiada. Mais pessoas viriam ali. Mas seria apenas por três horas, durante o dia, e... Nada de m*l poderia acontecer. Precisava esquecer o rosto daquele desgraçado do bar e voltar a ser a boa e velha destemida Anne. Ela tentou escrever algo, qualquer coisa, mas nada saiu. Ficou encarando a tela por pelo menos uma hora antes de fechá-la com raiva. Bufou irritada, a caneca vazia. As bitucas que tinha apagado conversando com Eliza no dia anterior ainda jaziam em um copo em cima da mesa de centro na biblioteca. Levantou-se, pegando a arma, disposta a fechar os olhos. Se obrigar a dormir. Queria ver Charles. Queria ser levada novamente para uma realidade onde não se sentisse tão sozinha... Onde não sentisse saudade do que parecia nem existir em sua vida. Os pés se arrastaram até o andar de cima, chegando a seu quarto onde trancou a porta e colocou a pistola sobre o criado-mudo, se jogando na cama. As pálpebras fechadas fortemente, ela afundou o rosto no travesseiro, ainda sentindo o cheiro da irmã ali. Será que Eliza estaria bem? Será que conseguiria se ajustar? Será que... tudo ficaria certo? Em meio a centenas de perguntas, inseguranças, e agora um trauma, Anne dormiu. Para onde foi..., não soube. O cenário parecia ter evaporado, ter desaparecido, naquele fechar de olhos quando a primeira gota de chuva gelada atingiu seu ombro desnudo, seguido de outra, e outra, e rapidamente, Anne descobria-se embaixo de uma tempestade. Os poros ficando protuberantes com o vento frio batendo contra as costas a ponto de levantar os cabelos já encharcados. Sentiu o coração falhar uma batida, terrivelmente espaçada até a próxima, e os cílios molhados piscaram pesados. O local era assustador. Onde estava...? Mau agouro; era como cheirava aquele ar. A pouca iluminação dava um aspecto macabro. Parecia uma estrada. Infinita. As fileiras de pinheiros nas laterais indicavam o caminho que se perdia na escuridão da noite. Existente naquele universo sabia não ser a única e engoliu em seco enquanto a chuva torrencial encharcava-a dos pés à cabeça. Os pés descalços começaram a andar, pisando nas poças de lama da estrada. Em um segundo, tudo se intensificou, e o som do vento corria por seus tímpanos como o uivo de um lobo, uma estranha sensação crescendo e reinando. Um calafrio atravessou a espinha e as pernas iniciaram um passo mais rápido, quase chegava a uma corrida. Charles?! Só o que podia fazer era correr. Não podia ficar parada, pressentia que não. Observada, assombrosamente observada, e quando finalmente parou de correr, ofegante, os pés doíam e a chuva fazia aquela camisola branca colar ao corpo como se tivesse sido costurada em sua pele. Há algum tempo, Anne sentiria medo. Mas sabia onde estava. Sabia exatamente onde estava e ela ergueu o corpo, endireitando a coluna e levantando o rosto para deixar a chuva lhe atingir diretamente. Uma rajada forte de vento fez os dentes brancos começarem a bater sem controle e os rangeu, irritada, impaciente, ansiosa. Um furacão de sentimentos se formava bem ali no meio daquela chuva. Cura.  Era como as gotas caiam em sua pele. Em forma de uma sinistra cura de sentimentos ruins. O peito de Anne arfou, deixando os pingos gelados tocarem diretamente o rosto enquanto o coração começava a bater cada vez mais devagar. E muito embora aquela chuva fosse forte, e aquele frio fosse intenso, nada era maior que Charles. Nada era maior do que o sentimento que ele despertava... E agora... presa naquele sonho, contando os segundos até que as mãos fortes lhe surpreendessem em um toque quente o suficiente para tirá-la do chão. Ela quis rir quando as batidas cardíacas estavam prestes a parar. Sabia que estava chegando. Seu espírito dizia que se aproximava, e quanto mais próximo, mais ele era capaz de fazer o coração de Anne parar por completo. Se pudesse controlar um pouco daquele sonho, fazer com que tudo girasse em torno de encontrá-lo e foi exatamente naquele momento em que viu; A cor avermelhada ao longe, vibrante como uma explosão... uma... Chama fulgurando, inesgotável, e contendo uma respiração alta, Anne impulsionou as pernas desnudas e arrepiadas que começaram a correr de novo. O ser, inexpressivo, caminhava com calma em sua direção. Os cabelos masculinos assim como o resto de seu corpo e trajes estavam encharcados. Ela parou de correr para dessa vez, empenhar uma caminhada vagarosa. Os olhos negros fincados nos azuis até cortarem a distância. Anne não esperou para abraçá-lo. Envolveu os braços em volta da cintura do homem. A verdade é que Charles estava assustado com a própria incapacidade de lutar contra aquilo. A verdade é que ele gostava daquele abraço molhado quase tanto quanto havia gostado do toque que tinham trocado na escadaria, fora do mundo dos sonhos.  Tanto quando gostava de seus dedos entrelaçados aos dela. Vagarosamente, como o passar dos dias desde que Anne tinha chegado na casa, a luxuria desaparecia, o sadismo se esvaía. Dava lugar a um desejo sincero, natural, instintivo e que só tinha nutrido por aquela mulher em especial, desde que se lembrava de existir. Ele não entendia por que, ele não entendia o motivo que tinha derrubado todas as forças que nutria, uma por uma. Ainda assim ali estavam, naquele sonho, dentro de uma cena que ambos se lembrariam mais tarde. Respirava contra o peito molhado do homem quando a chuva parou, e ela ergueu a cabeça para constatar que as gotas não tinham cessado, mas não eram mais capazes de atingi-los. Na verdade, Anne observou assustada: elas pareciam ter sido completamente revertidas, subindo para o céu novamente como se fossem eles a estarem de ponta cabeça, do outro lado da chuva. De todos os momentos até ali, aquele certamente era o mais diferente. Não pela chuva, não pela estrada ou pela estranha barreira invisível que Charles provavelmente tinha criado. E sim pelo olhar. Pela expressão. Pelo silêncio. Os orbes negros pareciam completamente diferentes e o fato a fez conter uma série de perguntas. Anne apenas sorriu, sentindo as mãos pesadas pousando em seus ombros, abraçando-a. Desesperadamente angustiado, era como se encontrava agora, observando o sorriso da mulher de olhos azuis, tão terno, direcionado apenas para ele. Aquilo fez o coração que nem sabia porque batia, bater mais rápido, e as mãos começaram a deslizar pelas costas de Anne, lentamente, fazendo o sorriso feminino se tornar uma mordida discreta de lábios. Estonteante com aquela camisola colada ao corpo, Charles tentava não a devorar. A respiração saiu alta pela boca e ele colou o corpo ao dela, apertando os quadris femininos com alguma necessidade. Não queria ter retribuído àquele abraço. Porque agora parecia simplesmente impossível soltar. Inconscientemente, Anne deixou-se ser abraçada. Estava com frio, estava tremendo, mas a chama que ele trazia parecia aquecê-la segundo após segundo. Rastejando pela pele, os dedos masculinos alcançaram o queixo delicado, direcionando o rosto da mulher para cima, o bastante para que fosse necessário apenas um leve envergar do corpo alto para tomar os lábios doces e aveludados. Pela primeira vez, em um beijo tão calmo e delicado. A respiração faltando, o coração quase parado enquanto os joelhos tremiam violentamente. Ela sentiu os dedos de Charles saírem de seu queixo para que as mãos masculinas entrassem nos cabelos molhados, espalmadas, invadindo suas entranhas, se apossando de sua lucidez, apoderando-se do controle. Dentro daquele momento. Dentro daquele abraço. Em toda sua vida... foi quando se sentiu mais segura. O ruivo separou suas bocas a procura de ar, a procura de domínio. Charles queria jogar o corpo de Anne naquele chão enlameado e arrancar sua camisola. Queria beijá-la, beijar seu corpo, seus cabelos, seus olhos, sentir seu cheiro. Mas ele também queria entendê-la, queria ouvi-la, queria apenas ficar ali, naquele beijo lento, por muito mais tempo do que realmente lhe era permitido. Sabia que provavelmente a cena da noite passada ainda a assombrava... Não queria... afastá-la. ― Tudo bem? ― Seu nariz tocava o de Anne e a morena abriu os olhos, surpresa. ― O que? ― Você está melhor? ― Estamos conversando normalmente...? ― Por que não deveria? ― As sobrancelhas ruivas se arquearam. Havia um sorriso surgindo nos lábios femininos, um sorriso pequeno e doce que fez Charles apertar a cintura feminina. ― Não, eu só... não sabia que podia fazer isso. ― Pode fazer o que quiser... ― Respondeu um pouco atônito por aquele sorriso que não parecia ter indícios de morrer. ― Agora você não pode mais negar. ― Como assim? ― Que é você... que era você na floresta, era você na pantera, e no reflexo do espelho... ― Anne murmurou, sem perceber que cada silaba que saía de sua boca deixava Charles um pouco mais perto de perder o controle. ― Tocando Roxanne dentro da minha cabeça... O tempo todo... Era você. ― Eu não faço isso. Eu não interfiro assim na vida das pessoas. ― Mas interferiu... interferiu nos meus sonhos, na minha vida. ― Os orbes turquesas encararam os negros com absoluta firmeza. ― Por que...? Charles olhou para o rosto molhado da mulher. Ela estava séria, aguardando ansiosamente a resposta com orbes fixos. ― Você está olhando pra mim..., mas está realmente me vendo? ― Anne escutou as palavras estranhas. ― O que quer dizer com isso? ― Estreitou os olhos diante do silêncio masculino. ― Não floreie as coisas para mim, Charles. Naquele momento Anne quase pôde ver algo mudando dentro de Charles, pois foi como se uma sombra fúnebre o abraçasse. ― Eu entro nos seus sonhos... assedio você...  Mas mesmo assim ainda é capaz de olhar nos meus olhos. ― O sussurro foi rouco e ameaçador. ― E sabe por quê? Anne tinha paralisado, encarando-o e batalhando contra o medo que começava a crescer em seu âmago. Seu sorriso tinha morrido e agora ela pensava no quão longe ele era capaz de ir para fugir de uma pergunta. ― Por quê? ― Indagou em um fio de voz, os lábios retos em uma linha de apreensão. ― Você olha..., mas não consegue ver... Porque eu manipulei seus sonhos e me transformei na figura que você dorme esperando encontrar... ― Ele hesitou, o queixo feminino começara a tremer. ― O que eu não vejo? ― Sussurrou; os dedos ainda seguravam o tecido molhado da camisa que ele vestia. ― O que você não me deixa ver? O ruivo estava nervoso. O medo de que ela realmente visse o que ele era, tinha começado a assombrá-lo, e Charles pegou-se amaldiçoando as próprias palavras, tentando não prensar mais o corpo dela contra o seu. Por mais que odiasse o caminho que tinha acabado de escolher percorrer... precisava ser sincero.  ― As coisas ruins. Todas... as coisas terríveis. ― Foi o que pôde dizer antes de tudo começar a desaparecer, partícula por partícula, até nada além de uma queda longa restar à Anne e seu coração desenfreado. Ela puxou o ar com toda a força que tinha, arregalando os olhos como se tivesse acabado de retornar a vida. Atônita, sentindo alguma coisa que beirava o desespero, Anne fitou o relógio no criado-mudo e arregalou os olhos. Eram três e quinze da madrugada. Por que não havia tocado? Colocou-se de pé, a dúvida e aquele mar de perguntas vinham lhe deixando completamente incapaz de pensar corretamente. As palavras de Charles ainda ecoavam em sua mente, a forma como ele a tinha olhado, o timbre estranho que a voz rouca de repente carregara. A mulher deu o primeiro passo para atravessar a distância até a porta do quarto, mas parou bem ali. O que ele queria dizer com olhar, mas não ver? Tinha assumido descaradamente ter manipulado seus sonhos e... Anne franziu o cenho irritada e sedenta por respostas. Ele não podia ser capaz de machucá-la. Tinha a salvado antes e desde o princípio, o interesse de Charles era nítido, não na realidade, mas naqueles sonhos sórdidos que ela não ousaria descrever em voz alta.             Abraçou a maçaneta e a girou com uma lentidão silenciosa. Quando abriu a porta seu coração parecia estar preso na garganta, batendo intensamente. Parou no corredor, tentando não emitir nenhum som, mas as luzes estavam apagadas, num silêncio mórbido que lhe inquietava. Anne pousou a mão no interruptor e ligou as luzes do corredor e da escada. Não podia ficar com medo. ― Charles? ― Chamou. A voz ecoou alta e nítida pela casa. ― Charles, pare com isso! ― Ela se apoiou no corrimão e desceu a escada com a sensação de estar sendo observada. Anne sabia que estava tremendo dos pés à cabeça, apesar de vir repetindo mentalmente o mantra da coragem nos últimos três minutos. Ela chegou ao térreo escuro da casa. ― Por que está fazendo isso? ― Sussurrou, acendendo as luzes da sala e da cozinha. Os olhos percorreram ansiosamente todo canto, mas não havia ninguém. Depois de checar a biblioteca e todo o resto do primeiro andar, ela parou de procurar. Ficou parada na escada, respirando profundamente e tentando se acalmar antes de subir os degraus de novo. ― Charles! Que m***a! É melhor parar de brincar comigo... ― Mas não adiantou muito. Subiu o resto dos degraus e foi quando deu por si. Será que tinha acordado? Ou será..., que aquilo tudo era só outro sonho?             Seu cenho se franziu fortemente, as rugas dos vinte e oito anos de idade ficando completamente aparentes.             ― Charles! ― Dessa vez, Anne gritou tão alto que os cães começaram a latir lá fora. ― Charles, apareça! ― Rugiu de novo, começando a marchar em direção ao sótão.             As pernas longas subiram os nove degraus até o andar mais alto da casa e ela ignorou o fato de não haver mais uma porta ali para adentrar o cômodo escuro e silencioso. Sobressaindo-se ao cenário, havia uma janela aberta e mais uma coisa que fez Anne cerrar os punhos. O cheiro de lavanda. O maldito cheiro de lavanda, foi o pensamento, conforme adentrava o quarto. Os dedos pressionaram o interruptor, mas tudo continuou apagado. Os olhos azuis vasculharam o cômodo inteiro até constatar que estava vazio. Anne andou até a janela, afim de fecha-la, quando notou, bem ali, no telhado que se estendia em frente à vidraça. ― Você podia pelo menos responder. ― Teve que dizer, observando o corpo masculino deitado nas telhas sujas. Silêncio. ― Não seja ridículo! ― Anne pulou para fora, pisando no telhado e com um medo secreto, sentou ao lado de Charles.  ― Qual é o seu problema, afinal? Só queria brincar comigo naqueles sonhos? ― Seu rosto estava quente, lembrando-se da sensação que o deslizar dos dedos de Charles sobre sua pele tinham lhe causado. ― Você disse que nunca fez isso. Mas para mim parece que é seu passatempo preferido... ― Os olhos negros estavam fixados no céu conforme Anne falava. ― Você deve brincar assim com to- ― Eu nunca fiz isso. E você não é um brinquedo. ― Não é isso que parece. ― Ela rebateu, tentando controlar o timbre que pouco a pouco se tornava desmedido. ― O que parece é que você é um profissional nesse jogo de invadir os sonhos e atacar as pessoas, no jogo de transformar... Mas ela mordeu a língua. Transformar medo em desejo. Era isso que estava prestes a dizer? Anne engoliu em seco quando obteve a atenção dos olhos negros. ― Sinto muito, Anne. ― Ele sibilou constrangido, voltando os orbes para o céu. ― Eu passei dos limites. ― Muito além dos limites. ― A mulher sussurrou, as bochechas coradas e o corpo quente. ― Não vai mais acontecer. ― Charles disse, fazendo os olhos azuis se arregalarem em surpresa. ― O que? ― Eu não vou mais... invadir ou manipular... seus sonhos. Ela ficou em silêncio. O coração batendo rápido. A matilha de cachorros corria pelo terreno cercado quando se deitou ao lado do corpo masculino, tentando adivinhar qual era a estrela especifica que ele olhava. ― O que você quis dizer com ‘coisas ruins’ e ‘coisas terríveis’, Charles? ― Anne. ― Vamos, me diga... não minta para mim. ― Aquelas palavras fizeram uma onda gelada engolir o corpo de Charles, mas ele continuou ali, paralisado, e ambos continuavam olhando o céu. Havia uma infinidade de estrelas no céu naquela noite e o frio estava começando a ser algo reconfortante. Aquele aroma intenso de lavanda que não ia embora nem com o vento. ― Os minutos estão passando... ― Sem tirar os olhos das estrelas, m*l viu os orbes negros se desviarem para fitar discretamente o rosto de perfil. Ela tinha traços doces e fortes, um queixo pequeno e bochechas delicadas, coradas, que faziam um contraste perfeito com a pele branca como leite. Notou o relevo dos lábios carnudos, e como o nariz parecia uma alucinação, de perfil, ainda mais do que parecia de frente, de tão perfeito. ― Daqui a pouco, os ponteiros vão bater quatro da manhã, e você vai desaparecer sem me dar as respostas que eu preciso. E então, ela o encarou, pegando-o desprevenido. ― É essa a sua intenção? Charles quase desmoronou do telhado quando ouviu aquilo. As palavras tão cheias de honestidade num tom obstinado que talvez nunca tivesse escutado de alguém antes. Porque todos sempre tinham medo, todos achavam que ele deveria ser um demônio destruidor de almas e talvez... ― Uma mentira repetida muitas vezes se torna verdade. ― O homem sussurrou, lembrando-se do passado, onde era apenas um garoto num frasco, hibernando por horas antes de poder, instintivamente, desempenhar o que vinha moldando seus dias e noites ao longo de todos aqueles anos. ― Que mentira virou verdade? ― Muitas. ― Seco como um deserto; estava farto daquela conversa, farto daquela britadeira chamada Anne Walch que insistia em querer adentrar a fortaleza que nem ele mesmo sabia ter construído, até conhecê-la. Charles fechou os olhos, aborrecido, angustiado. Agira por impulso, tomado pela hipnose que aqueles olhos causavam..., mas agora... seus impulsos impensados tinham lhe arrastado até ali, em uma emboscada no telhado, onde Anne e seus malditos olhos azuis se cravavam aos seus como se nunca mais fossem se desprender. Por tantas vezes chamado de monstro. Por tantas vezes foi o fantasma, a assombração, a aberração que precisava ser exterminada, exorcizado dali direto para o inferno... Charles temia que fosse essa a tal verdade. Por mais que insistisse em negar... por mais que fechasse os olhos... Ele era o monstro, a aberração, o fantasma. Talvez até mesmo um demônio errante. Não saberia dizer porquê de nada sabia, além disso. Nada além de acordar naquela vida, como se já vivesse nela antes de acordar. Na floresta, antes da casa ser construída. Chuva ou sol, o frasco sempre esteve enterrado debaixo da terra. Seguro. Então a casa foi feita, e o frasco se moveu sozinho, silenciosamente, para dentro dela. Ele nunca conseguia sair não importava quantas centenas de vezes tentasse, só conseguia fugir até as quatro da manhã. Depois disso, desaparecia, estivesse onde estivesse, simplesmente sumia para voltar a levitar numa imensidão n***a por horas e horas e então, chegava a hora. Depois da meia-noite, onde conseguia, e não sabia explicar como, entrar na mente das pessoas. Ele podia ver suas consciências oscilando como se fossem um aglomerado de pequenas esferas, girando. E bastava desejar para adentrar, viver ou manipular. Havia também o momento ‘pré-mergulho’, que era a maneira cujo se referia aos instantes antes de seu absolutamente mágico aparecimento em forma física naquele mundo real onde Anne habitava. Uma hora antes das três, sua viagem começava e ele mergulhava naquele túnel onde todos os cômodos da casa passavam em uma enorme velocidade, até que chegasse, e bastava querer para fazer acontecer.             Charles não fazia a mínima ideia de como ou por que se tornava um homem de carne e osso com plenos poderes paranormais durante uma hora toda noite. Ele tinha surgido assim, e assim acreditava que um dia acabaria por desaparecer.             ― Charles... ― Anne sussurrou, puxando-o de volta para a realidade. ― Pare de pensar tanto... apenas me diga a verdade.             Não foi necessário reunir muita coragem para olhá-la. O peso era muito mais forte para o lado de Anne.             Não era um olhar comum.             Anne engoliu em seco.             ― Eu fiz um inferno na vida de cada pessoa que morou nessa casa até hoje. Todos, sem exceção... foram infelizes: morreram, enlouqueceram. ― O tom foi firme e frio, embora a voz de Charles estivesse absurdamente rouca. ― Vai acontecer com você também. Eu vou entrar nos seus sonhos, possuir a sua alma... eu vou enlouquecer você.             Os olhos azuis estavam arregalados, e de repente, Anne tinha ficado um pouco mais inquieta e quase que completamente insegura.             ― Todos? ― Indagou, encarando o homem de madeixas vermelhas.             ― Todos.             ― O que aconteceu?             ― Você não tem que sab-             ― Se não falar logo, vou pular desse telhado... E te dar alguma coisa pra se sentir culpado. ― Ela deu de ombros diante da expressão irritada do homem ao seu lado.             ― Você não teria coragem... ― Charles entortou as sobrancelhas, observando a expressão de Anne mudar drasticamente para uma quase infantil feição desafiadora.             ― Não me desafie. ― De repente era como se toda a tensão daquela conversa tivesse se dissipado.  Ele continuou olhando para ela, tentando entender quem de fato era aquela mulher... que parecia tão leve... mesmo estando ao lado de uma aberração assassina.             ― E então? ― Os lábios dela se moveram lentamente, conforme o vento fazia os cabelos castanhos esvoaçarem. Havia o cheiro de lavanda que nem ele sabia por que exalava. Talvez fosse porque vivesse em um frasco de perfume. Mas sabia que o frio que trazia consigo fazia os poros de Anne ficarem protuberantes. Charles fitou os olhos azuis lhe encarando com expectativa e seu estômago revirou, com um formigamento que se espalhava por todo o corpo. Tão... Bonita. E com aquele pensamento secreto, seu coração bateu mais rápido. A verdade é que Charles só acordou quando viu ela se levantar. Ergueu o rosto e franziu o cenho.             ― O que está fazendo?             ― Você será culpado pela minha queda, Charles. ― Podia ver pelo timbre que se tratava de um blefe e estava abrindo a boca para retrucar quando os pés femininos deslizaram no musgo impregnado nas telhas antigas e ela caiu de b***a, levando uma telha consigo. Charles só precisou encarar aquela cena para fazer Anne levitar. Eles se olharam enquanto o corpo feminino flutuava. Ficou de pé e esticou uma das mãos. Os pés de Anne pousaram com delicadeza sobre os sapatos masculinos que ele usava e a mão dela segurou a dele enquanto sentia a cintura ser amparada.             ― Achou mesmo que ia deixar você cair...?             O peito delicado arfava, sendo abraçada naquele telhado e sentindo o frio que a proximidade trazia, ela olhou os olhos negros no mais completo silêncio.             ― Você não vai me dizer, não é? ― Anne sussurrou, fazendo Charles segurá-la um pouco mais apertado. ― Vai me fazer descobrir tudo sozinha... 
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