O cobrador apenas olhou pelo espelho, acenou com cabeça concordando com sua feição de raiva, angústia ou sei lá... era como se não me quisesse. Logo, prosseguiu:
- Esse ônibus vai a um local onde não há retorno, não há arrependimentos, não há alegria nem tristeza. Nada e tudo ele é e esse lugar não é para você..., ainda.
Apenas me calei e passei impacientemente pela catraca, sentei-me e suspirei. Fechei os olhos e pensei “se for o fim, talvez deva me conformar, se for um sonho; devo acordar. O que eu fiz para merecer um inferno desse?”. Impertinentemente, o cobrador bateu em sua mesa e gritou “vamos AGORA levar esse andarilho ingrato! ÚLTIMA PARADA, SEUS ARREMPEDIOS E DESESPERADOS!”. Olhei para frente sério, cocei algumas vezes meus olhos, minha cabeça. Notei que todos no ônibus me olhavam como se nunca tivesse me visto ou como se fosse alguma comida. Olhavam completamente sedentos, curiosos e tristes; era como se quisesse me devorar sem poder. Eles e seus olhos mortos cobiçavam a vida insubstituível que tivera. Desviei o olhar para baixo e pensei em outra coisa além daquele local.
Por mais estranho que pareça, só lembrei da Cecília e sua dança reconhecida como seduzente presenciada e deleitada com meus olhos..., eu enxerguei..., aquilo trouxe tranquilidade, acalentando aquele horror. Depois, como uma cortina que desaba de um teatro, uma voz carregada de amargura diz na menor intensidade possível:
- Deveria pensar duas vezes antes de acabar com tudo, esse caminho talvez não tenha volta...
Continuei calado, fechei meus olhos e meus punhos já domado de fúria, mas a voz era familiar e ele continuou:
- Sabe... Não sei como explicar, mas a vida pode desaparecer e nem podemos fazer nada quando algo assim acontece. Quero tanto ver minha esposa e dizer o quanto sinto. O mundo é injusto com aqueles que querem viver. Só se aproveitam do nosso animo e se nutrem até não sobrar os ossos. Quantas vezes me questionei o que eu realmente queria, talvez até assaltar um banco seria mais aventureiro..., odeio tudo, odeio o homem que fui, odeio, odeio, odeio... – disse enquanto chorava discretamente.
Virei meu rosto lentamente e imediatamente identifiquei-o: era você...João!
Fiquei em silencio e busquei tantas palavras para ganhar alguma migalha de misericórdia ou perdão que nem deus pôde-nos dar ao crucificar e m***r seu único filho, nem quando ficou angustiado ao destruir seu mundo perfeito. Apenas encarava-o murmurando buscando todas as palavras em tudo e no nada, mas minha alma pesava de tanta angústia, tanta amargura..., porém pensei “essa pode ser a chance de libertar-me?” e falei titubeante, gaguejando:
- Sinto muito, João... – logo meus olhos lacrimejaram.
- Marcos?? Você aqui? Você é uma das últimas pessoas que pensei em ver nesse fim de mundo. O que houve? – indagou um pouco mais animado.
- Eu matei você e sua esposa, isso tudo podia ser evitado!
João emudeceu, porém logo desdenhou da minha ideia com um sorriso e voltou ao seu silencio. Então prossegui:
- Na verdade..., sei quem realmente roubou tudo de vocês e isso posso provar!
- Diga então, estamos ficando sem tempo. – Retrucou desdenhando.
- Victor! Ele trouxe-me até aqui!
- Victor? Pelo amor...
- Parece i****a, eu sei! Mas pensa comigo: nós estávamos com ele e agora estamos aqui! Ele deu a palavra que nos condenou. Na mesma noite... – antes que eu terminasse, João me interrompeu e retrucou aborrecido:
- Peraí, você tem noção do que tá falando?! Não fode! Por que agora isso?!
Elevei a intensidade da minha voz e retruquei enfurecido:
- m***a! Olha como estamos! Acha que estou brincando?! VOCÊ PODE TER UMA VIDA INTEIRA AINDA PARA LEMBRA OU SE ARREPENDER SE ME DER UMA CHANCE!!
João se calou e sinalizou com a cabeça para eu prosseguir, então o fiz:
- Desculpa, não queria ser grosso.
- Nada..., só deu um choque que eu precisava. Prossiga.
- Victor invadiu minha casa com os mesmos truques sobrenaturais e exigiu que eu escolhesse. Ele me deixou sem opção e eu não sabia que realmente custaria a vida de alguém. Escolhi a mim e tirou vocês por eu não dar minha vida. Ele matou sua esposa e brinca de vida e morte.
João novamente tragou um breve silêncio, respirou fundo não como se estivesse incrédulo (dada circunstância), mas como se estivesse indignado. Logo redarguiu com a testa franzida e seus olhos pretos:
- Então o tal moço gentil tirou minha Stefanny, quem diria...
- Sim, inclusive; o próprio barista disse que ele e Cecília não se davam bem. Ela sabe alguma coisa sobre o que ele é e o evita.
- Cecília é vivida, sabe das coisas.
- Sim..., talvez se for comigo aonde quero ir e o que pretendo encontrar, podemos; pela primeira vez, triunfar sobre esse mundo injusto.
João olhou-me com um semblante sereno e um sorriso perspicaz esperançoso. Retrucou, em seguida:
- O que estamos esperando? A justiça acontece quando agimos, não é? Vamos descer dessa p***a!
- É assim que se diz! Vamos!!
Caminhos juntos, como irmão de guerra até a saída, entretanto; o motorista gritou “psiu” para chamar minha atenção e encarou-me enfurecido:
- Victor sabe o que faz e isso é fato..., você e essa usa mania de querer estar em tudo. Meteu o nariz onde não foi chamado. – Logo buzinou e bradou: O ANDARILHO VAI DESCER COM O UM VINGATIVO, VAMOS LOOOOGO, SEM PARADAS E VELOCIDADE TOTAL!
Antes que eu dissesse qualquer coisa, apenas saíram às pressas com os passageiros que pareciam rir para caçoar de mim e minha atitude, mas não me importe. Sorri esperançoso e logo olhei para João. Assim que o vi, seus olhos sangravam e ele encarava o chão. Depois sorriu e olhou-me estranhamente, como se soubesse de meus pecados, com um sorriso maquiavélico ou malicioso e disse:
- Ele vai pagar caro, né?! Ele errou f**o, muito f**o.
- É... – disse um pouco desconfortável.
Ele veio até onde eu estava, abraçou-me desesperadamente apertado, e disse:
- JUNTOS!
Tentei desfazer-me do abraço, mas logo ele puxou meu rosto, segurou minha face com muita força e soltou um rugido enorme enquanto penetrara meus olhos com seus olhos mortos. Senti a vida esvair-se brevemente, só que João apenas soltou seu rugido de fúria e sumiu. Fechei meus olhos e quando abri, vi Caio falando sobre o trabalho naturalmente. Eu estava perdido e confuso de como estava na mesma parada, longe do trabalho e exatamente no horário de saída. Mais estranho ainda é não lembrar de absolutamente nada além do terror que vivenciei. Caio notou quão atônito eu estava e mexeu no meu ombro a fim de chamar minha atenção:
- Tudo bem? Prestou atenção no que eu disse, cara?
- Não sei..., é que...
- Ah, fala sério! Tenho que falar tudo de novo?
- Pode ser estranho, peço até perdão..., mas não lembro de nada desde a minha segunda ligação.
- Não sei qual foi a sua segunda ligação. Tá falando do cara que ligou pra você pedindo uma GRANDE contrato?
- Não sei... Como agi?
- Ficou feliz, eu acho. Não parou de falar dele.
- Eu fiquei conversando com você?
- Sim, sim, até chamaram sua atenção, mas você foi muito irritante.
- Por quê?
- Perguntei toda hora sobre o lance do Victor, mas você só ria e acabava desviando do assunto. Quando reclamei, você nem ligou. Seu olhar tava estranho...
- Não lembro de nada. Diga-me tudo quando entrarmos no ônibus. Melhor... Acho que devíamos ir até Cecilia.
- A bruxa?
- QUE SEJA!
- Ok, ok! Vamos entrar no ônibus.
Expliquei a Caio toda minha situação assim que entramos no ônibus e onde estive, até acrescentei a preciosidade de Cecilia saber de algo que não sabemos. Caio estava incrédulo e apenas se calava, escutando atentamente. Caio falou de como eu agia naturalmente, exceto quando mencionava Victor e o que aconteceu. Expliquei tudo que pude, assim como ele. Apenas agi naturalmente todo o tempo, com todo esse mesmo tempo, naquele lugar passaram-se aparentemente poucos minutos ou no máximo 1 hora, mas às 6hs passaram-se da minha jornada. Após este longo diálogo, acrescentei ainda:
- Vamos até o bar.
- Agora? Talvez não seja uma boa, amanhã é trabalho.
- Isso é importante, por favor, talvez minha vida dependa disso.
Caio silenciou, suspirou e redarguiu:
- Ok... Se é importante pra você, então vamos. Encontraremos a Cecília?
- Isso. Não pode ser madrugada, tem que ser agora!
- Então vamos.
Por mais que a dúvida rondasse sua cabeça, Caio entendia meu desespero e agia do seu jeito para ajudar-me – o que confortava.
Cecilia sabia de algo e ela é minha última aposta. Só precisava entender o conto dos Olhos Mortos e o que era tudo e como ter minha vida de volta..., de qualquer forma, nada poderia melhorar se eu somente fingisse que nada aconteceu, porque tudo estava simplesmente acontecendo.
Ao entrarmos no ônibus, conversamos mais sobre o que fazer. Caio tentava esconder sua cara de desdenho quando mencionava Cecilia e o “lance de misticismo”, emudecia e apenas concordava como algo simbólico, mas como um pesar na consciência e reconhecimento de sua apatia, tentava complementar minhas informações com algumas perguntas:
- Acha que isso ou esse tal de Olhos Mortos tem algum problema com Cecilia?
- Não sei, só podemos saber com ela.
- E se for só um problema casual...?
- Tipo...?
- Podem ter sido um casal, como disse naquela noite. – Retrucou um pouco hesitante.
- Sei lá..., isso parece meio vago, dada informação que mencionamos. Não temos outra opção e você sabe.
Caio deu de ombros ainda, mesmo em seu silêncio perturbador sondado por dúvidas sobre tudo, então resolvi silenciar-me até chegar o mais próximo possível do bar para descermos até lá e encontrarmos Cecília.
Ficamos em silêncio durante todo nosso percurso, até chegar ao bar aliviados. Avistei imediatamente Cecília com seu humor simplesmente vislumbrante e infestando todo o bar com alegria. Ela se expressara tão bem ao dançar com sua cintura solta e sorriso com aquelas covinhas lindas, seu corpo magro e sua pele morena coberto de suor deixando-a brilhar ainda mais, ela era tão contagiante que fazia todos desprenderem-se da ideia de não saber dançar e só ir até lá para se divertir. Todos embriagados, batendo palmas, tocando, dançando, cantando sem parar, cada vez mais contagiados pelo clima. Era difícil chegar até Cecília com tanto movimento em sua volta, por mais que eu estivesse com pressa, esperei até que tudo se acalmasse – que seria esperar Cecília sentar e pedir a mesma bebida, o que não demorou tanto.
Ela respirou fundo e se sentou na cadeira mais próxima que foi dada por um homem qualquer. Em seguida, sinalizou para Fabrício trazer sua bebida. Foi quase nesse exato momento que fui com Caio até ela para conversarmos, ainda um pouco nervoso por não saber qual seria sua reação. Tossi para descontrair um pouco enquanto encarava seus olhos esverdeados cristalinos:
- Cecília...
- A própria, meu amor – respondeu enquanto sorria.
- Não sei como falar, mas já que está saindo... sei lá...
- Lamento, mas não busco agora e nem depois um amor.
- Não, não, não é isso, é mais delicado.
Cecília apenas encarava e fazia gestos exigindo minhas especificações, o que me deixava ainda mais nervoso para falar. Caio intrometeu-se e falou sem titubear:
- Queremos saber sobre Os Olhos Mortos.
Cecília mudou sua expressão imediatamente, olhou para os lados desconfiada, incomodada e em busca de saída, mas logo encarou-me e disse da forma mais seca possível:
- É um conto i****a, não é para vocês..., pessoas como vocês. Melhor pensarem em outra coisa, principalmente se for falar sobre isso com a pessoa errada, repórter.
- Não, é que...!
- O quê? Curioso? Isso pode m***r você, isso se já não mencionou o nome dele.
Engoli a seco e a fitei com meus olhos de cachorro pedindo ao dono, suplicando ajuda desesperadamente sem mesmo ser específico:
- Olha..., estou passando pelo verdadeiro inferno desde ontem. Primeiro foi enquanto ia pra casa, agora é até no trabalho. Sei que não quer falar disso, mas não sei onde posso retirar informações sobre tudo sei lá o que...
Cecília me olhava com pena, o que me deixava desconfortável e me sentindo ainda mais desesperado, mas o que piorava era seu silêncio com seus longos suspiros mergulhados com pensamentos profanado pela minha afobação. Ela encarou-me novamente, se levantou e disse:
- Falaremos disso em outro lugar e resolveremos do meu jeito, mas aqui não é o local. Irei beber só o que pedi e iremos pra minha casa.
Assim que Cecília disse isso, Fabrício chega com seu copo de caipirinha. Cecília bebe rapidamente e me puxa para fora impacientemente, enquanto Caio me acompanhava. Todos que estavam no bar vislumbravam surpresos e iniciaram os boatos imediatamente.