No sábado, parece que um trator passou em cima de mim. Dormi muito m*l, e a sensação de estar sendo vigiada apenas aumentou. Após tomar um banho quentinho, visto o meu uniforme e encaro-me no espelho que descansa na parte de fora da porta do meu armário. A mulher ruiva e de olhos verdes me encara de volta, e franzo a testa. Uma espécie de déjà-vu acontece e, do nada, me vejo no mesmo ambiente, porém, à noite. Batidinhas na porta me trazem de volta à realidade, e assisto Dami entrar.
— Oi, Laura, vim ver se... — ela faz uma pausa ao olhar para mim. — Nossa! Que uniforme é esse, menina? Está igual a um saco de batatas.
— Foi o que me deixaram no armário, mas não esquenta não, a roupa está apenas alguns números maior que eu. — Gesticulo com a mão direta de uma forma que ela entenda que não precisa se preocupar com isso, e complemento: — Só uns dez números, nada demais! — solto uma risadinha sarcástica, e ela ri alto.
— Nossa, vamos corrigir isso logo, porque está péssimo.
— “Cluzes cledo!” — Felipe grita ao se deparar comigo. — O que “fizelam” com você, Cabelos de Fogo? Tá igual ao seu “Madluga” quando ele ganhou um “telno” do tio “molido”.
— Morto, Felipe — Dami corrige-o enquanto o menino ri. Faço uma careta, e o pestinha emenda:
— “Dola”, vem ver a Cabelos de Fogo com “loupa” de “difunto”! — Arregalo os olhos e encaro-o incrédula.
Eu vou matar esse menino!
— O que foi, garoto? — Dora aparece na porta do quarto e xinga baixinho. Ótimo, virei ponto de referência agora!
— Que modos são esses, menina?! — Dami a corrige.
— O que está acontecendo? Vocês estão fazendo um escânda... — Alice para de falar ao me ver, e acabo relaxando o corpo e inclinando a cabeça para o lado. Vamos esperar a crise deles passar, que é melhor! — Putz — ela ri. E parece uma risada sincera. — Você tá horrível! Parece um saco de batatas do tamanho família, só que sem as batatinhas dentro. — A garota segura o tecido com os dedos, puxando-o para o lado, evidenciando ainda mais a falta de carne. — Tá igual aqueles sacos de salgadinhos quando está no fim, sabe?
Mordo os lábios, tentando ter paciência.
— Tá bom! Vocês têm certeza que não tem mais ninguém para entrar, não? — pergunto ao olhar na direção da porta. — Todo mundo tirou o dia para me azucrinar, foi isso? — Tento segurar a risada, observando-os gargalharem. — Gente, de boa... não riam, porque a coisa tá feia aqui! — Não consigo mais me conter e acabo acompanhando-os na risada, puxando o uniforme com uma das mãos, evidenciando ainda mais as sobras de tecido.
Há um conjunto de risadas, e Dami me faz trocar de roupa a fim de solicitar novos uniformes à costureira. A governanta me pede uma blusa e uma calça emprestada e informa que em alguns dias eu já estarei em posse do uniforme correto.
Após terminar de me arrumar, desço até a cozinha, de modo a tomar minha dose diária de café. Olho em volta, e não o encontro pronto, então, decido por mim mesma o fazer. Procuro por um pacote nos armários e gavetas, e encontro apenas um no meio dos outros itens de mercado. Percebo que os demais itens possuem uma boa quantidade de cada, então, presumo que o café já esteja no final. Preciso lembrar de avisar a Nana sobre isso.
— Nossa, isso que eu chamo de uma visão sensacional logo pela manhã!
O rapaz alto e robusto à minha frente sorri faceiro, evidenciando sua barba cerrada. Ele passeia os dedos pelos cabelos cortados em estilo militar e comprime os lábios ao me inspecionar da cabeça aos pés. Seus olhos negros me lembram os de Izabela, e concluo que ele deve ser o Gustavo, filho de Damiana e Josefo.
— Prazer, Gustavo — ele me estende a mão — motorista e jardineiro.
— Laura, a nova babá. — Nos cumprimentamos enquanto tento achar uma cafeteira. Não é possível que nessa casa não tenha uma.
— Interessante... — escuto-o assobiar baixinho, e reviro os olhos.
— Pode sair da minha cozinha, moleque. — Nana entra no cômodo, segurando uma bandeja com as mãos. — Ele já está te perturbando, filha? — A careta feia que forma-se em seu rosto me diverte.
— Na verdade, só estava conhecendo a nova funcionária. — Ele pisca um dos olhos e, ao vê-lo se encaminhar para sair do cômodo, não consigo deixar de olhar para sua b***a empinada, marcada pela calça jeans que está usando. — Aprovada! — grita. — Diz ao Nick que ele se superou, já sou fã das ruivinhas!
— Ok! Devo me preocupar? — caçoo ao olhar para a mulher que possui as bochechas mais rosadas que já vi na vida.
— Ele é assim mesmo, menina, você ainda não viu nada. — Ela olha para o pacote de café em minhas mãos, e observo que seus olhos se arregalam. — Faço rapidinho para você! — A mulher pega o objeto de minhas mãos rapidamente e abre um compartimento na parte de trás do armário, onde os copos e os pratos descansam. Ela retira um coador de pano e um suporte antiquado de lá de dentro e deixa um copo de vidro descansando na parte de baixo do suporte, enquanto coloca a água para ferver.
Acho graça da situação. É estranho que moradores de uma casa enorme como essa, com carros luxuosos na garagem e praia própria, não tenham pensado em comprar uma máquina de café mais atualizada, porém, não digo nada, apenas aprecio o gosto amargo da cafeína assim que fica pronto.
Conforme a agenda, os meninos vão para o Aras e eu fico em casa. Eles não quiseram minha companhia, então me limito a não fazer nada. Envio uma mensagem para Pedro, e ele diz que está entediado. Sugiro que saia um pouco, e meu namorado parece gostar da ideia.
Encontro uma biblioteca no andar de baixo e passo a manhã inteira lendo. Quando se aproxima da hora do almoço, as crianças chegam da rua e estão bem sujinhas. Dora, então, parece que dormiu dentro de um chiqueiro; literalmente falando.
— Eita, acho que foram os cavalos que andaram em vocês, pelo visto! — começo enquanto Izabela os ajuda a tirar os calçados.
— O Lipe me empurrou na lama e ainda ficou rindo da minha cara! — diz uma Dora indignada conforme o menino ri junto com Izabela.
— Ah, deixa de ser “cholona”, nem tá tão sujo assim. — ele comenta gargalhando enquanto observo quieta. Os olhos de Dora estão marejados, e sei que está prestes a chorar.
— É chorona, Felipe! — Alice deixa escapar, e ele dá de ombros.
— Você não deveria ter feito isso, sua irmã poderia ter se machucado feio! — retruco em voz alta, mas meus olhos estão fixos na filha de Damiana. A garota me encara de volta e parece me desafiar. Volto a observar o menino e noto que há dúvidas em seus olhos, talvez se perguntando se o que fez não foi errado.
— Vou para o meu quarto! — Alice emenda secamente. Ela parece indignada, e noto isso quando seus pezinhos se fixam nos degraus da escada de forma dura.
— Não foi nada demais, né, Lipe? — pergunta Izabela.
O menino encara sua irmã gêmea de cima a baixo, e percebo os seus olhos titubearem. Ele parece analisar a situação. Um vestígio de culpa passa pelo seu rosto, porém, ao virar-se para Izabela, muda completamente.
— Não mesmo! — Ele corre para o segundo andar.
Pisco os olhos, algumas vezes, tentando entender o que aconteceu aqui. É óbvio que essa menina manipula as crianças, mas a troco de quê?
— Ah, pare de chorar, Dora, bora focar numa revanche contra o Lipe! — Izabela comenta baixinho, porém, consigo ouvi-la. Elas seguem para o que presumo ser o banheiro, e minha reação é tão alarmante que não consigo dizer nada, por isso, prefiro falar primeiro com Felipe.
Direciono-me até o quarto dos gêmeos e, quando estou prestes a abrir a porta, ouço o choro do garoto. Respiro fundo e bato na porta antes de entrar.