Capítulo 04 Calíope

1199 Words
Calíope Narrando Érika me olhou com um olhar de revolta. Boquinha não foi diferente. Respirei fundo, sem querer preocupar eles com os meus problemas. — Podem ficar tranquilos... eu tô bem — falei, juntando o cabelo no alto da cabeça. — Você, como sempre, achando que pode resolver todos os problemas sozinha, né, dona Carolina? — Érika falou, e eu apenas balancei a cabeça em concordância antes de me virar pro Boquinha. — É Boquinha mesmo, né? — perguntei, com um leve sorriso de canto, tentando quebrar um pouco a tensão que ainda pesava no peito. — É sim... Boquinha. Tô à disposição, qualquer parada. — Ele respondeu com aquele tom tranquilo, olhando nos meus olhos e dando um leve aceno com a cabeça. — Obrigada por ter me trazido até aqui... de verdade. Nem sei como te agradecer — falei sincera, sentindo a garganta embargar. Ele só deu um sorriso discreto, como quem já tinha ouvido aquilo antes. — Relaxa, Carol. Agora tu tá em casa. A Érika tirou a mão dos bolsos cruzando os braços. — Boquinha, e como é que vai ficar o lance do aluguel e a chave da casa? — Érika lançou logo a pergunta prática. Ele levantou a mão num gesto pra ela esperar, tirou o celular do bolso e assoviou alto na direção dos caras armados. Um dos moleques, que tava mais à frente, virou o rosto rápido, e Boquinha só apontou pra casa com o queixo. O menino entendeu na hora, fez sinal com a mão e entrou pela lateral de um barraco, bem do lado do e Studio da Érika. Poucos segundos depois, ele voltou com um molho de chaves na mão, correndo. Jogou no ar e Boquinha pegou no reflexo. Tirou uma do chaveiro, olhou pra mim e entregou. — Tá aí. A casa até que não tá suja, não. Tem uma tiazinha que faz a vistoria das casas que tão fechadas, caso o Cérbero precise botar alguém. Mas essa aí já tá limpa, sob controle — explicou, sem pressa. Peguei a chave, sentindo o metal frio na palma da mão. Era só uma chave simples, mas nesse momento parecia uma joia. — Pode deixar, agora eu faço as honras da casa da Carol — disse Érika, pegando a frente com aquele jeito dela, firme e protetora. — Então é isso. Vou resolver uns corres agora, qualquer parada, vocês sabem onde me achar — falou Boquinha, já se virando, ajeitando a camisa e seguindo no passinho dele, firme e leve ao mesmo tempo. Fiquei parada, olhando ele se afastar, e senti uma paz estranha. Como se, pela primeira vez em muito tempo, eu tivesse um canto só meu. — Vem, Carol... Vamos entrar. Tá começando tua nova história — falou Érika, com aquele olhar que mistura força e acolhimento. E eu fui. Entramos na casa, e eu fui logo dando uma olhada em tudo. Simples, mas ajeitadinha. Tinha cheiro de coisa parada, mas dava pra ver que alguém andava mantendo tudo limpo. — Tu não tem cliente agora de manhã, não? — perguntei, tirando o casaco e jogando por cima de uma cadeira. — Ainda não, graças a Deus. Só mais tarde mesmo — Érika respondeu, me seguindo com o olhar afiado. — Mas me diz uma coisa... por que a bonita não avisou que tava subindo? Soltei um suspiro e sentei no sofá, cansada. — Amiga... nem deu tempo. Saí num desespero tão grande que só pensava em sumir. Fiquei até com medo da polícia vir atrás de mim. — Que isso, mulher? — Ela se aproximou, já com a sobrancelha arqueada. — É sério. Eu empurrei o cara da escada... sabe o que é tá com um olho nele, vigiando pra ver se ia acordar, e com o outro juntando minhas coisas pra meter o pé? — Sei como é, amiga. Já vivi parada parecida. Mas ainda bem que tu veio. E veio pro lugar certo. — Só demorou demais pra me deixarem subir. Cheguei aqui ainda tava escuro. E ninguém dava sinal. — Falei olhando em volta, ainda me adaptando ao ambiente. — O estranho foi a demora deles. Érika riu e se jogou do meu lado no sofá. — É porque ninguém sobe ou desce o Turano sem que o Cérbero saiba quem é. Assim mesmo... tua entrada só foi liberada porque Cérbero com certeza liberou. Então levanta as mãos pro céu e dá graças a Deus, viu? — Vai me dizer que esse tal de Cérbero é sombrio? — brinquei, rindo também, lembrando das histórias que eu mesma escrevo. — Tu ainda tá com aquelas neuras de escrever? — Érika me olhou de lado, com aquele sorrisinho debochado de quem já conhecia minhas viagens. — Mais ou menos, amiga. Às vezes me pega de jeito, aí eu escrevo pra aliviar a mente. — Falo e ela levanta a sobrancelha e me encarando, sabendo que eu tô mentindo. — Tu é doida, mas eu gosto. E sobre o Cérbero... ele é o tipo de cara que tu não vai querer arrumar confusão. Fechado, calado, vive no corre. Mas se ele bate o olho e diz que é pra confiar, a favela inteira baixa a cabeça. Ele é o terror dos inimigos, mas o escudo de quem é certo. — Vixe... então tô no lugar certo mesmo. E rimos juntas. Pela primeira vez em dias, eu senti que tava segura. — Bora tomar um café lá na padaria, amiga? — Érika falou, se levantando do sofá e esticando os braços. — Pelo jeito que tu falou, saiu cedo de casa e não comeu nada, né? Eu também ainda não comi... e não tem nem um pacote de biscoito aqui. — Ih, eu não vou recusar, não! Tô morrendo de fome — falei rindo, colocando a mão na barriga. — E já aproveito pra comprar umas coisinhas, tô sem nada mesmo. — A faculdade vai ser à distância? — ela perguntou, pegando a chave e abrindo a porta. Balancei a cabeça, confirmando. — Vai sim. Pelo menos nesse começo. Depois eu vejo se consigo transferir. Descemos conversando, e o clima parecia até leve. O céu tava limpo, o som estava alto o morro já acordado, com cheiro de pão e barulho de rádio tocando em alguma laje. A gente tava rindo de uma história antiga quando fomos atravessar a rua que dava acesso à padaria. Foi aí que aconteceu. Eu fiquei um passo atrás, ajeitando o cabelo no elástico, e do nada uma moto desceu no grau, com o barulho do motor rasgando o silêncio do início da manhã. O freio cantou alto, e o pneu quase lambeu meu tênis. Senti um arrepio estranho percorrer meu corpo inteiro. O motoqueiro me encarou por trás da viseira escura. Érika, que já tinha atravessado, voltou correndo. — Vambora, mulher! Não encara, não... esse aí é o Cérbero! Me puxou pelo braço com força, e eu fui, meio em choque ainda. O coração batia tão rápido que parecia que tinha corrido uma maratona. Não sei se foi o susto ou o jeito que ele me olhou... mas alguma coisa me dizia que aquele homem ia mexer com meu destino. Continua....
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