capítulo 03 Calíope

1753 Words
Calíope Narrando Hoje o dia pra mim amanheceu um pouquinho diferente. Não que eu tenha fugido da minha rotina — até porque, na minha rotina, sempre teve o hábito de acordar cedo e correr atrás do que é meu. Só que hoje… hoje eu tô correndo atrás do que é meu com as malas na mão. Na verdade, com o que eu tenho de mais importante: minha vida… e meus equipamentos de trabalho. Meu caderno surrado, meus livros riscados, meu notebook, minha caneta preferida. Porque antes de qualquer coisa, eu sou isso: uma autora. Uma sonhadora que se alimenta de palavras, que respira histórias, que sente mais do que fala. Minha alma tem tinta, minha mente é papel. Praticamente tive que sair fugida. Só deu tempo de jogar na bolsa tudo que me mantinha viva — não só por fora, mas por dentro. A primeira coisa que pensei foi na Érika. Ela vivia dizendo: “sobe o Turano um dia, mas só pra conhecer, hein?!” m*l sabe ela que eu tô aqui agora. E quando ela me vê, sei que vai ser um susto daqueles. Mas é isso. A vida nem sempre avisa quando muda de capítulo. Engoli seco quando vi aqueles homens de fuzil na mão. Um coçava a cabeça, o outro me olhava de cima a baixo como se estivesse tentando decifrar minha alma. Me aproximei com o coração disparado e a coragem empurrando as pernas. — Eu sou Carolina, mas pode me chamar de Carol... tô precisando de um lugar pra ficar — falei com a voz trêmula, mas sem desviar o olhar. — Fala tu, Carolina. O que te traz pro Complexo do Turano? — um deles perguntou. — Preciso de um canto simples, pequeno, barato… um lugar onde eu possa dormir e acordar em paz — falei, e ele balançou a cabeça. Eu só preciso de um lugar onde minha mente pudesse continue viajando entre palavras sem medo da realidade me engolir. Chamaram no rádio. Chegou outro. E eu já tava ficando assustada de verdade. A forma como me analisavam me fez entender que, pra eles, eu podia ser qualquer coisa. Uma ameaça, uma isca, uma armadilha. — Vocês não precisam ficar com medo de mim... eu tenho uma amiga que mora aqui — falei, sentindo a carne tremer. — Fala tu, menor... então tu tem uma amiga aqui? — o cara de cabelo vermelho, que mais parecia o Curupira, me encarou. — Tenho sim. É uma toda tatuada... — preferi não citar o nome da Érica de cara. — Ah, tu tá falando da Kinha? — o outro perguntou. Levantei uma sobrancelha. — A Érika, a tatuadora? — confirmou. Aí eu sorri. Eles tavam de cara fechada, então engoli o riso e travei os lábios. — Essa mesma — falei, abraçando uma das malas contra o peito — Nos conhecemos na faculdade, apesar de cursarmos coisas diferentes. Eles se entreolharam. Um deles me analisou mais uma vez dos pés à cabeça. — Tudo que tu falou pra gente no início... que tá aqui porque tá entre a vida e a morte... a gente pescou. Tu não tem cara de X9, nem de traíra, muito menos de inimiga. Mas se tu aprontar, eu vou ser o primeiro a puxar o gatilho e estourar teus miolo. — O do cabelo vermelho mandou, e eu só balancei a cabeça em sinal de respeito. Sem nem respirar direito. — Boquinha, faz o seguinte... ali na rua do estúdio de tatuagem da Kinha tem um barraco que é nosso, da firma. Acho que a chave tá com um dos cria que cuida lá. Tu pega e leva a mina pra lá. Depois a gente vê o que vai fazer. — falou o outro, que parecia ser o chefe. E aqui, entre o peso dos olhares e o silêncio tenso das vielas, eu segurei minha alma de escritora com mais força do que nunca. Porque se o mundo me empurra pro caos... é nele que eu vou escrever minha próxima história. — Pode deixar, Perü, deixa comigo que eu vou instalar a mina. — ele falou com aquele jeitão marrento, fazendo um sinal com a cabeça. O do cabelo vermelho encostou a mão na alça da minha mala. Quando puxou… A bendita abriu. — Ah, não… — soltei meio revoltada, já me abaixando pra juntar meu material de trabalho que se espalhou no chão. — Tem certeza que cê é só uma estudante? — ele perguntou, abaixando junto comigo. O rosto dele ficou rente ao meu, tipo cena de novela, só que com adrenalina de morro. — Tenho sim, tá? Eu sou estudante de Letras. — respondi pegando o notebook. Mas ele foi mais rápido, botou a mão em cima da minha, pegou o notebook e levantou. Ai, meu Deus do céu, meu pai eterno! Só faltava agora ele pedir pra eu desbloquear essa máquina… Saí correndo de casa no desespero, nem deu tempo de salvar o último capítulo. A minha alma de escritora chorava só de imaginar. — Ah, então quer dizer que tu vai ser uma professorinha? — ele debochou, sorrindo, me entregando o notebook. Respirei aliviada e guardei tudo rapidinho na bolsa — notebook, tablet, livros, tudo junto e misturado. — Eu não sei se quero ser professora, não. Eu amo tudo que tem a ver com português, sabe? Quem sabe um dia… ou quem sabe outra area. Vai que… — dei de ombros, meio tímida, mas firme no que dizia. Ele deu um meio sorriso, foi até uma moto ali no canto, pegou minhas duas bolsas e pendurou uma de cada lado. — Tu tá subindo o Turano na nossa responsa. Cérbero não aceita erro. Uma palavra errada, tu nem respira no minuto seguinte. — soltou a frase daquele jeito que a gente engole seco e finge costume. Engoli em seco mesmo, travei o maxilar, mas segurei o olhar. — Fica tranquilo, eu não sou problema. E também não vou dar muito trabalho entrando e sai do morro, não. Faço faculdade à distância. Por isso o notebook, por isso tanto trambolho. Tudo é equipamento de estudo. — falei com firmeza, ajeitando a alça da mochila. Ele não disse mais nada. Só me ajudou a subir na garupa e acelerou. Enquanto a gente subia o Turano, eu respirei fundo, tentando afastar da mente a lembrança do desgraçado do seu João. Mas enfim... vamos recomeçar, né? Deixa eu aproveitar e contar um pouquinho de mim pra vocês: tô no sexto semestre da faculdade de Letras. Apaixonada por palavras. Por tudo que faz o mundo ter sentido. Porque, convenhamos, sem a letra, nada faz sentido. Pra tudo nessa vida, a gente precisa saber interpretar, comunicar, escrever. Pode amar matemática, química, física… mas até essas precisam da nossa velha e boa Língua Portuguesa. Sou dessas que ama um poema bem escrito, um recital bem feito, uma redação redondinha. Escrever é meu refúgio, minha terapia, meu protesto e minha liberdade. Lembro como se fosse hoje: no meu aniversário de cinco anos, pedi pro meu pai contratar uma professora pra me ensinar a ler. Não aguentava mais ter um monte de gibis em casa e não entender nada. Minha tia viu minha aflição e foi ela mesma quem me ensinou. Entrei na alfabetização já sabendo ler e escrever. Desde então, nunca larguei papel e caneta. E tem uma coisa que me tira do sério: gente que diz amar outras matérias e diz “odiar” português. Como assim, Brasil?! Você precisa interpretar até pra resolver uma equação! Português é base. É raiz. É vida. Tenho 20 anos, 1,55m de pura vontade, pele bronzeada de quem nasceu no Rio e carrega o calor da cidade no peito. E por onde eu ando, carrego sempre meu celular, meu tablet, meu notebook, um caderno e uma caneta. Porque se faltar energia, se cair a internet, se o mundo virar de cabeça pra baixo… eu ainda vou ter onde escrever. Porque minhas ideias não param. E minha alma? Vive de letra. Ele subiu mais um pouco, dobrou uma viela estreita e parou a moto em frente a uma casa branca de portão e grades vermelhas. O motor ainda roncava quando escutei, lá do outro lado da rua. — Carollllll! — a voz da Érika cortou o ar feito rajada. No segundo seguinte, ela já tava na porta, descalça e descabelada, correndo na minha direção como se fosse me atropelar. Eu m*l tinha botado o pé no chão, e ela já tava me abraçando com força. — Então tu realmente conhece a Érika? — perguntou o tal do Boquinha, olhando com a sobrancelha arqueada. — Você achou que eu tava mentindo, é? — rebati com marra, descendo pegando as minhas coisas. — Amiga, o que que você tá fazendo aqui essa hora? — Érika perguntou, me segurando pelos ombros, me olhando da cabeça aos pés, com aquele olhar de quem já entendeu metade sem ouvir nada. — Essa hora nada. Ela tá na entrada desde 6h da manhã. Ficou quase duas horas plantada lá. — Boquinha completou com deboche. — Sério? — Érika arregalou os olhos. — Então desembucha! Que que te trouxe aqui 6 da manhã, mulher? — Suspirei fundo, meio sem saber se chorava ou ria. — Uma longa história, amiga… uma longa história. — Ah, fala sério. Tu deixou essa parte passar. — Boquinha cruzou os braços. — Então tu tem uma longa história? Espero que não seja encrenca. — Revirei os olhos. — Ah pronto! Virei de vez pra Érika, desviando o olhar do Boquinha. — O seu João apareceu com a ordem de despejo às 4h da manhã… — falei com o peito meio sufocado. — QUÊ?! — ela me cortou. — Às 4 da manhã? — Às 4 da manhã? Pørra. A única coisa que um homem quer na casa de uma mulher a essa hora é... — ele pausou e eu respirei fundo balançando a cabeça devagar. Boquinha passou a mão no rosto apertando a arma. Percebi que ele ficou de boca aberta. Literalmente. A boca entreaberta e o olhar perdido entre eu e ela. Eu só balancei a cabeça, abaixei o olhar. Falei nada. Érika, com os olhos vermelhos de raiva, apertou minha mão com força: — Desgraçado. O silêncio, reino por alguns segundos. A rua quieta, o céu ainda nublado, e a minha mala no chão — de novo. Mas dessa vez, eu tava no lugar certo. Pelo menos eu acho. E do meu lado, tinha gente de verdade. Continua....
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