O sol nem tá tão forte, mas o calor parece grudar na pele, pesado, incômodo, como se o ar tivesse espesso demais pra respirar. A rua principal do morro já ferve logo cedo: crianças correm descalças, rindo alto, vizinhas penduram roupa no varal e conversam em voz arrastado, o funk estoura de algum barraco, o cheiro de café e de fritura se mistura à poeira e à fumaça das motos.
Clara anda ao meu lado, com o cabelo preso num r**o de cavalo torto que eu fiz às pressas. Ela segura minha mão com força, pulando de um pé pro outro, inquieta como só criança sabe ser.
— Mana, a gente vai comprar o caderno hoje? — pergunta, os olhos brilhando de expectativa.
— Se der, dá sim — respondo, forçando um sorriso, mesmo sabendo que o dinheiro m*l vai dar pro básico.
Ela não precisa saber disso. Ela só precisa acreditar que eu sempre dou um jeito.
Descemos a ladeira com cuidado, desviando de buracos, do lixo espalhado, dos cachorros de rua dormindo no meio do caminho. Cada rosto que passa me observa. Alguns com pena, outros com deboche. A maioria com aquele olhar de quem conhece demais a minha vida.
As mulheres cochicham entre si. Os homens... riem.
Mas eu sigo de cabeça erguida.
— Olha lá, a Luna, indo gastar o dinheiro da profissão dela — ouço um moleque dizer, gargalhando.
Outro completa, alto o bastante pra todo mundo ouvir:
— Deve tá indo comprar leite com gosto de p***a.
O riso deles me atravessa. Meus dentes se apertam até doer. Por dentro, uma vontade cega de virar e quebrar a cara dos dois. Mas aí sinto a mãozinha da Clara apertar a minha, firme.
— Não liga pra eles, mana... — murmura, sem me olhar.
Meu peito dói. Porque ela já aprendeu a conviver com isso. Porque, com só sete anos, ela já entende o peso do que eu faço.
Respiro fundo. Sigo.
O mercadinho da esquina tem o mesmo cheiro de sempre: arroz velho e desinfetante barato. As prateleiras apertadas, o chão manchado, o ventilador girando preguiçoso no teto.
— Bom dia, Luna... — Seu Walter fala, sem levantar o olhar.
Respondo com um aceno rápido e pego a cesta.
— Pode pegar o leite, Clara. — digo, olhando o preço do arroz.
Ela corre até a geladeira e volta radiante com a caixinha nas mãos, como se fosse um tesouro.
— Pega uns cinco pães também, tá? — digo.
Enquanto ela vai, eu escolho o arroz mais barato, um pacote de margarina pequena, um sachê de molho, meia dúzia de ovos, óleo, macarrão e uma farinha de trigo. Quando passo diante da prateleira dos cadernos, vejo o de capa de borboletas. O mesmo que ela queria.
Pego. Olho o preço. Quase devolvo. Mas lembro do sorriso dela. Coloco no fundo da cesta e sigo pro caixa.
— Cento e quarenta e oito e cinquenta — diz o velho, sem me encarar.
Conto o dinheiro devagar. Sobra só uns trocados. Do lado de fora, Clara abraça o caderno contra o peito, feliz.
— Obrigada, mãe! — fala, me dando um beijo no braço. Sorrio. Um sorriso sincero.
— Cê merece, pequena. Agora vamos pra casa antes da chuva cair.
Porque aqui, o tempo muda sem avisar.
Como tudo nesse morro.
(…)
O botijão novo tá no canto da cozinha, azul, imponente. O cheiro de gás e metal parece, pela primeira vez em dias, um alívio. Carreguei ele sozinha escada acima, bufando, xingando, mas com o peito cheio de orgulho.
— Cuidado, Clara, fica aí sentada! — falo, enquanto ela tenta subir na cadeira pra me ajudar.
— Mas eu quero mexer o arroz, mana! — Ela ri.
— Depois. Deixa eu fazer primeiro.
Ela faz bico, mas obedece. Senta no banquinho e começa a desenhar no caderno novo com um lápis de cor gasto.
O cheiro de alho refogado enche o barraco. É só arroz, feijão com macarrão e carne moída, mas pra mim parece banquete. Faço uma farofinha, monto dois pratos e coloco o restinho de Tang na mesa.
— Vem, pequena, tá pronto.
Ela se senta, esfrega as mãos, cheira o prato como se fosse um banquete de princesa.
— Que cheiro bom!
— Hoje a gente janta que nem rainha. — digo, brincando.
A gente come devagar, saboreando. Eu observo cada gesto dela, o jeito que mastiga, o brilho do olhar. Por um instante, tudo parece leve.
— Amanhã posso levar o caderno pra escola? — pergunta.
— Pode. Mas toma cuidado pra não amassar.
— Prometo! — responde, animada.
Sorrio.
Depois do jantar, ela me ajuda a lavar a louça. Fica toda orgulhosa secando os pratos. Põe o pijama, deita, e eu faço cafuné até ela adormecer.
Quando o quarto fica silencioso, volto pra cozinha. Encosto na pia e olho pela janelinha. O morro continua o mesmo: barulho, moto, cheiro de maconha, o vento carregando a poeira da noite.
Mas aqui dentro, por agora, há paz. Pelo menos hoje.
O cheiro do alho ainda paira no ar quando começo a me arrumar. A casa limpa, a criança dormindo e eu... voltando a vestir a armadura.
Escolho o vestido preto, curto e justo. O batom escuro. O salto. Prendo o cabelo num coque displicente. Cada detalhe calculado pra chamar atenção.
Olho pro espelho. O reflexo me encara de volta: mulher dura por fora, cansada por dentro.
— Vamos lá — murmuro.
Dou um beijo na testa da Clara, tranco a porta e desço a ladeira.
O calor do dia virou vento frio. Os becos estão úmidos, o chão escorregadio. Meninos encostados nos muros fumam e riem. Mulheres conversam baixinho nas calçadas.
— E aí, Luna, quanto tá hoje? — grita um.
— Me dá um desconto, gostosa! — outro ri, estalando a língua.
Ignoro. Cabeça erguida. Olhar firme.
Na esquina do bar do Jorge, encontro a Natália. Vestido azul, batom vermelho, salto gasto.
— Boa noite, gata. — diz ela, com aquele sorriso cansado.
— Boa é quando tem cliente que paga. — respondo.
— Hoje tá fraco, mas ouvi dizer que uns caras do asfalto vão subir.
— Melhor pra gente. — minto, sabendo que "cara de fora" quase sempre significa problema.
Ficamos no ponto de sempre, um canto com visibilidade boa. Daqui dá pra ver tudo: quem sobe, quem desce, quem para.
O celular vibra. Rogério.
"Hoje de novo. Tô subindo."
Reviro os olhos.
— Cliente? — pergunta Natália.
— O mesmo de sempre. — digo.
— Pelo menos paga bem.
— Dinheiro é dinheiro.
Encosto no poste, ajeito a alça do vestido, olho em volta. O morro pulsa, vivo e c***l. Meu estômago aperta. Um pressentimento estranho cresce dentro do peito.
Mais uma noite. Mais um programa. Mais uma vez vendendo o corpo enquanto a alma tenta sobreviver.