3. Luna

1139 Words
O sol nem tá tão forte, mas o calor parece grudar na pele, pesado, incômodo, como se o ar tivesse espesso demais pra respirar. A rua principal do morro já ferve logo cedo: crianças correm descalças, rindo alto, vizinhas penduram roupa no varal e conversam em voz arrastado, o funk estoura de algum barraco, o cheiro de café e de fritura se mistura à poeira e à fumaça das motos. Clara anda ao meu lado, com o cabelo preso num r**o de cavalo torto que eu fiz às pressas. Ela segura minha mão com força, pulando de um pé pro outro, inquieta como só criança sabe ser. — Mana, a gente vai comprar o caderno hoje? — pergunta, os olhos brilhando de expectativa. — Se der, dá sim — respondo, forçando um sorriso, mesmo sabendo que o dinheiro m*l vai dar pro básico. Ela não precisa saber disso. Ela só precisa acreditar que eu sempre dou um jeito. Descemos a ladeira com cuidado, desviando de buracos, do lixo espalhado, dos cachorros de rua dormindo no meio do caminho. Cada rosto que passa me observa. Alguns com pena, outros com deboche. A maioria com aquele olhar de quem conhece demais a minha vida. As mulheres cochicham entre si. Os homens... riem. Mas eu sigo de cabeça erguida. — Olha lá, a Luna, indo gastar o dinheiro da profissão dela — ouço um moleque dizer, gargalhando. Outro completa, alto o bastante pra todo mundo ouvir: — Deve tá indo comprar leite com gosto de p***a. O riso deles me atravessa. Meus dentes se apertam até doer. Por dentro, uma vontade cega de virar e quebrar a cara dos dois. Mas aí sinto a mãozinha da Clara apertar a minha, firme. — Não liga pra eles, mana... — murmura, sem me olhar. Meu peito dói. Porque ela já aprendeu a conviver com isso. Porque, com só sete anos, ela já entende o peso do que eu faço. Respiro fundo. Sigo. O mercadinho da esquina tem o mesmo cheiro de sempre: arroz velho e desinfetante barato. As prateleiras apertadas, o chão manchado, o ventilador girando preguiçoso no teto. — Bom dia, Luna... — Seu Walter fala, sem levantar o olhar. Respondo com um aceno rápido e pego a cesta. — Pode pegar o leite, Clara. — digo, olhando o preço do arroz. Ela corre até a geladeira e volta radiante com a caixinha nas mãos, como se fosse um tesouro. — Pega uns cinco pães também, tá? — digo. Enquanto ela vai, eu escolho o arroz mais barato, um pacote de margarina pequena, um sachê de molho, meia dúzia de ovos, óleo, macarrão e uma farinha de trigo. Quando passo diante da prateleira dos cadernos, vejo o de capa de borboletas. O mesmo que ela queria. Pego. Olho o preço. Quase devolvo. Mas lembro do sorriso dela. Coloco no fundo da cesta e sigo pro caixa. — Cento e quarenta e oito e cinquenta — diz o velho, sem me encarar. Conto o dinheiro devagar. Sobra só uns trocados. Do lado de fora, Clara abraça o caderno contra o peito, feliz. — Obrigada, mãe! — fala, me dando um beijo no braço. Sorrio. Um sorriso sincero. — Cê merece, pequena. Agora vamos pra casa antes da chuva cair. Porque aqui, o tempo muda sem avisar. Como tudo nesse morro. (…) O botijão novo tá no canto da cozinha, azul, imponente. O cheiro de gás e metal parece, pela primeira vez em dias, um alívio. Carreguei ele sozinha escada acima, bufando, xingando, mas com o peito cheio de orgulho. — Cuidado, Clara, fica aí sentada! — falo, enquanto ela tenta subir na cadeira pra me ajudar. — Mas eu quero mexer o arroz, mana! — Ela ri. — Depois. Deixa eu fazer primeiro. Ela faz bico, mas obedece. Senta no banquinho e começa a desenhar no caderno novo com um lápis de cor gasto. O cheiro de alho refogado enche o barraco. É só arroz, feijão com macarrão e carne moída, mas pra mim parece banquete. Faço uma farofinha, monto dois pratos e coloco o restinho de Tang na mesa. — Vem, pequena, tá pronto. Ela se senta, esfrega as mãos, cheira o prato como se fosse um banquete de princesa. — Que cheiro bom! — Hoje a gente janta que nem rainha. — digo, brincando. A gente come devagar, saboreando. Eu observo cada gesto dela, o jeito que mastiga, o brilho do olhar. Por um instante, tudo parece leve. — Amanhã posso levar o caderno pra escola? — pergunta. — Pode. Mas toma cuidado pra não amassar. — Prometo! — responde, animada. Sorrio. Depois do jantar, ela me ajuda a lavar a louça. Fica toda orgulhosa secando os pratos. Põe o pijama, deita, e eu faço cafuné até ela adormecer. Quando o quarto fica silencioso, volto pra cozinha. Encosto na pia e olho pela janelinha. O morro continua o mesmo: barulho, moto, cheiro de maconha, o vento carregando a poeira da noite. Mas aqui dentro, por agora, há paz. Pelo menos hoje. O cheiro do alho ainda paira no ar quando começo a me arrumar. A casa limpa, a criança dormindo e eu... voltando a vestir a armadura. Escolho o vestido preto, curto e justo. O batom escuro. O salto. Prendo o cabelo num coque displicente. Cada detalhe calculado pra chamar atenção. Olho pro espelho. O reflexo me encara de volta: mulher dura por fora, cansada por dentro. — Vamos lá — murmuro. Dou um beijo na testa da Clara, tranco a porta e desço a ladeira. O calor do dia virou vento frio. Os becos estão úmidos, o chão escorregadio. Meninos encostados nos muros fumam e riem. Mulheres conversam baixinho nas calçadas. — E aí, Luna, quanto tá hoje? — grita um. — Me dá um desconto, gostosa! — outro ri, estalando a língua. Ignoro. Cabeça erguida. Olhar firme. Na esquina do bar do Jorge, encontro a Natália. Vestido azul, batom vermelho, salto gasto. — Boa noite, gata. — diz ela, com aquele sorriso cansado. — Boa é quando tem cliente que paga. — respondo. — Hoje tá fraco, mas ouvi dizer que uns caras do asfalto vão subir. — Melhor pra gente. — minto, sabendo que "cara de fora" quase sempre significa problema. Ficamos no ponto de sempre, um canto com visibilidade boa. Daqui dá pra ver tudo: quem sobe, quem desce, quem para. O celular vibra. Rogério. "Hoje de novo. Tô subindo." Reviro os olhos. — Cliente? — pergunta Natália. — O mesmo de sempre. — digo. — Pelo menos paga bem. — Dinheiro é dinheiro. Encosto no poste, ajeito a alça do vestido, olho em volta. O morro pulsa, vivo e c***l. Meu estômago aperta. Um pressentimento estranho cresce dentro do peito. Mais uma noite. Mais um programa. Mais uma vez vendendo o corpo enquanto a alma tenta sobreviver.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD