O cheiro de pólvora não sai da minha cabeça.
Já tomei dois banhos desde que voltei, mas parece que tá grudado na pele, no pulmão, na alma inteira. Abro a janela do quarto achando que o ar fresco vai ajudar, mas é tudo abafado, pesado.
A vista do morro é sempre a mesma: vielas apertadas, telhado torto, gente acordando cedo pra trabalhar ou pra fofocar da vida dos outros. A diferença é que, hoje, tudo parece mais sufocante.
Meu cigarro queima entre os dedos. Nem sinto o gosto. Fumo só pra ocupar as mãos.
O sono não vem faz dias. O corpo tá cansado, mas a cabeça não para um segundo. Fica girando como um disco riscado, voltando sempre pro mesmo lugar.
Nela.
Na Luna.
Na menina que entrou na minha vida de um jeito que eu não tava preparado.
Não é amor. Sei que não é. Amor eu nunca tive, nem quero ter. Isso aqui é outra coisa. Um tipo de obsessão, de doença. Não sei dar nome.
Só sei que, quando fecho o olho, é o corpo dela que vem na minha memória. O jeito que ela treme quando eu encosto. O olhar dela entre o medo e o ódio, e aquela maldita parte que ainda me deseja.
E eu vejo. Sei ler o corpo dela.
Ela me odeia, mas goza por minha causa.
Ela me xinga, mas geme no meu ouvido.
Isso me mata e me alimenta ao mesmo tempo. Sento na beira da cama e encaro a parede como se tivesse alguma resposta escondida ali.
Essa situação tá me tirando do eixo. Não sou de me apegar. Nunca fui. Mulher, pra mim, sempre foi passatempo. Algumas horas, um alívio rápido, e depois cada um pro seu canto. Mas ela, a Luna, me quebra de um jeito que ninguém nunca conseguiu.
Nem ela sabe o quanto. Nem imagina o poder que tem sobre mim e eu odeio isso. Odeio mais do que tudo.
Só que não consigo parar.
Por mais que ela me evite, por mais que ela fuja, meu corpo sempre acaba voltando pra ela.
Como agora.
Passei a noite inteira pensando. Pensando nela com aquela menininha, as duas trancadas naquela casa pequena, comendo o quê? Restos? Pão velho?
A raiva me bate só de imaginar.
Ela não cuida de si mesma, não come direito, não dorme, e ainda acha que pode me manter longe.
Mandei a cesta logo cedo. Pão, bolo, café, leite pra menina.
Não é gentileza. Não é carinho. É porque, se ela cair, eu perco o que é meu. Simples assim.
Ela vai odiar. Vai me xingar na cabeça dela. Vai fechar a porta com força. Vai fingir que não quer, mas vai comer. Vai dar comida pra menina. Vai saber que fui eu.
E vai entender, de uma vez por todas, que eu tô em volta dela em cada passo, em cada esquina, em cada escolha.
Por mais que ela lute, ela já é minha e eu sou o pior tipo de homem pra ela. Mas também sou o único que ela tem agora.
Apago o cigarro com força, levanto, pego a chave da moto.
Se eu fosse inteligente, ficava longe. Se eu tivesse algum juízo, esquecia ela. Mas é só colocar o pé fora de casa que eu já sei onde vou acabar no fim do dia.
Na porta dela.
De novo.
(…)
A manhã já tava quente quando cheguei na boca.
Os moleques se ajeitaram quando me viram vindo de moto. Alguns largaram o celular na hora, outros fingiram que tavam trabalhando como deviam.
Fiz questão de olhar cada um, de cima a baixo.
— Quem tá segurando o dinheiro do turno da noite? — perguntei, descendo da moto, com a mão dentro da jaqueta.
O Vinícius, um dos mais novos, se adiantou todo suado.
— Tá aqui, chefia. Tudo contado.
Peguei o saco plástico que ele me entregou, pesei na mão, conferi por cima. Tava certo.
— E os caras do outro morro? Ainda tão rondando? — perguntei, andando em direção à viela onde ficavam os depósitos.
— Sumiram depois da última recuada. Mas tão falando que vão tentar de novo esse fim de semana.
Suspirei fundo. Aquela merda não tinha fim.
Entrei no barraco de fundo que a gente usava como escritório. Papelada em cima da mesa. Dinheiro contado. Lista de fornecedor. Movimento da semana. Tudo nas minhas costas.
Sentei e passei as mãos no rosto.
Mais uma manhã resolvendo problema de gente que não sabe se segurar.
Em menos de dez minutos, o Igor apareceu dizendo que teve um desentendimento com um dos moradores.
— O véio da padaria ficou gritando com o Jota porque o moleque foi comprar pão com dinheiro miúdo. Disse que era troco de droga e começou a falar alto na rua.
Revirei os olhos. mas levantei e fui até lá eu mesmo.
O véio já me conhecia. Quando me viu chegando, ficou branco.