21. Luna

1013 Words
Ele ficou. Sentado no meu sofá, com as pernas abertas e o olhar largado, como se estivesse na sala da casa dele. A jaqueta dele tava jogada no canto, o cheiro de cigarro e de rua espalhado pela sala. A respiração dele era tão presente que parecia que o ar inteiro tinha mudado de peso. Eu tentava não olhar. Tentava ocupar as mãos, arrumar coisas que nem precisavam ser arrumadas, só pra fingir que eu ainda tinha controle de alguma coisa. Mas meu corpo inteiro tremia. Fui pra cozinha, me encostei na pia e respirei fundo. "Ele vai embora. Ele vai cansar e vai embora." Mentira. Eu sabia que não. Ouvi a porta do quarto ranger e meu estômago virou. A Clara. Ela apareceu com os cabelos todos bagunçados, o pijama torto, aquele olhar de quem tinha acabado de acordar de um cochilo bom. Assim que ela viu ele na sala, parou. Congelou na porta. Os olhos dela foram direto pro Dante, como se tentasse entender o que ele tava fazendo ali. O olhar dela era um pouco assustado, meio curioso, igual quando ela vê um cachorro grande na rua. O Dante nem se mexeu. Só olhou pra ela, daquele jeito dele, calmo, mas com a presença pesada que enchia o ambiente. A Clara desviou o olhar, apertou as mãozinhas e veio correndo até a cozinha. — Mana, posso comer mais um pedaço de bolo? — perguntou baixinho, como se sentisse o clima estranho, mas sem entender o motivo. A pergunta dela quase me fez chorar. Porque no meio de tudo, no meio desse pesadelo, ela só queria mais um pedaço de bolo. Engoli o nó na garganta. — Pode sim, meu amor — falei rápido, pegando o prato com o resto do bolo que ele tinha mandado mais cedo. Coloquei uma fatia generosa, abri a caixinha de achocolatado que ainda tinha na geladeira e entreguei pra ela. — Aqui. Come lá na sala, tá? Ela sorriu daquele jeito inocente que só criança consegue, pegou o prato com as duas mãos e foi. Andou com os pezinhos descalços, passou por ele como se fosse invisível e se sentou no chão, bem na frente da TV. Pegou o controle, ligou no canal dos desenhos e começou a comer o bolo, balançando as perninhas. A cena era tão surreal que eu fiquei parada na porta da cozinha, com a respiração presa. Dante permaneceu no mesmo lugar. Só ficou ali, olhando, como se estivesse analisando cada canto da casa, cada gesto meu, cada movimento da Clara. E eu só queria que aquele dia acabasse logo. Porque, por mais que eu fingisse que tava tudo normal, por dentro, eu tava desmoronando de novo. As panelas batiam de leve enquanto eu mexia o arroz. Meus dedos tremiam tanto que quase deixei o óleo queimar. Mesmo assim, continuei. Fingi que tava tudo bem. Fingi que era só mais uma noite normal, como se ele não estivesse ali, sentado no meu sofá, do jeito dele, como se fosse dono da casa. O cheiro de alho refogado se espalhou pela cozinha. Joguei o arroz, mexi rápido, tentei não pensar nele me observando, mas eu sabia que ele tava. Sabia que, a cada passo meu, a cada vez que eu dobrava as mangas da blusa, ele tava olhando. Eu sentia. Peguei o frango, cortei em pedaços pequenos, temperei no automático, como quem já fez aquilo mil vezes mesmo com a cabeça longe. A Clara continuava na sala, deitada de barriga pra baixo no tapete, com os pés balançando no ar, assistindo desenho, como se a presença dele fosse só um detalhe. Como se fosse normal. Como se fosse sempre assim. Meu estômago se revirava só de pensar. A água da macarronada começou a ferver. Joguei o macarrão dentro com força demais, espirrando um pouco de água quente no meu braço. Ardeu, mas eu nem liguei. Continuei mexendo a comida, tentando ocupar a cabeça. Até que ouvi a voz dela. Pequena. Baixa. Inocente. — Moço, você gosta de desenho também? Fiquei congelada, com a colher de p*u na mão. Meu coração travou. O silêncio que veio depois foi tão pesado que pareceu que o tempo parou. Dei um passo devagar até a porta da cozinha, só pra olhar, só pra ver o que tava acontecendo. Ele ainda tava no sofá, do mesmo jeito, com o braço apoiado na perna e as mãos entrelaçadas, mas agora com os olhos virados pra ela. Por um segundo, achei que ele fosse ignorar. Achei que fosse fazer o que sempre fazia: ficar calado, deixar a presença dele falar por ele. Mas não. Ele respondeu. A voz saiu baixa e arrastada, daquele jeito que ele fala quando tá segurando alguma coisa por dentro. — Quando eu era pequeno, gostava — disse, os olhos escuros encarando ela de um jeito estranho, como se estivesse vendo um bicho raro. A Clara sorriu. — Eu gosto da Peppa... e de um de princesa, mas o da Peppa é mais legal. Ele não respondeu de novo, mas ficou olhando. Por mais tempo do que eu gostaria. Voltei pra cozinha com o coração disparado. Terminei de preparar a comida, montei o prato da Clara e coloquei tudo bonitinho como sempre fazia. — Vem comer, meu amor — falei baixo, tentando manter o tom calmo. Ela veio correndo, pegou o prato e voltou pro mesmo lugar de antes, sentada no chão da sala, comendo com o desenho ligado. Ele continuava ali. Parado. Silencioso. Presente demais e eu, fingindo mais uma vez que não sentia meu mundo inteiro despencando por dentro. Meu corpo já estava exausto. Não era só cansaço físico. Era aquele cansaço mental de quem está o tempo todo alerta, esperando o pior. O Dante continuava no sofá como se fosse parte da mobília. Tão imóvel que, por alguns minutos, até parecia que ele tinha adormecido ali, mas eu sabia que não. Ele tava atento a tudo. O olhar dele acompanhava cada passo meu, cada vez que eu pegava um copo, mexia na panela ou cruzava a sala com um prato nas mãos.
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