40. Luna

890 Words
Eu já tinha acordado três vezes com ele se mexendo no sofá. Primeiro reclamando de dor, depois com a respiração ofegante, e agora era a febre subindo de novo. Peguei outro pano molhado, sentei ao lado dele e comecei a trocar a compressa da testa. Ele se mexia inquieto, a pele queimando, o peito subindo e descendo rápido demais. De repente, ele murmurou algo que não entendi. — Hã? — me aproximei mais. — Dante, tá tudo bem? Ele virou o rosto, os olhos meio abertos mas vidrados, como se nem soubesse onde estava. — Não vai... não vai na rua... — a voz saiu fraca e embolada. — Tô aqui, ninguém vai sair, fica quieto! Mas ele continuou falando, como se estivesse preso em outro lugar. — Falei pra ela não ir... falei... Fiquei parada, o pano escorrendo água pela minha mão. — Dante?! — Ela só queria ir na vendinha... — ele engoliu seco, os olhos perdidos, como se enxergasse outra pessoa ali. — Eu disse... falei que era perigoso... que ela ficasse dentro de casa... mas ela saiu... Meu coração apertou. — Quem, Dante? Ele respirou fundo, como se lutasse para falar. — A Gabi... minha irmã... O nome saiu arrastado. Eu quase não acreditei no que tinha ouvido. Ele continuou, os olhos fechando de novo, a voz cada vez mais fraca. — Ela só tinha doze anos... só queria comprar bala... O nó na minha garganta cresceu. — Dante... — Mataram ela na porta... — a respiração dele falhou. — Foi culpa minha... por causa de treta minha... ela morreu... Fechei os olhos com força. Fiquei ali paralisada, ouvindo as palavras dele se perderem entre gemidos abafados e o som da febre queimando seu corpo. Agora tudo fazia sentido. A paranoia com a Clara, o medo que ele tinha quando eu saía sozinha, o jeito que ele surtava cada vez que sentia a gente exposta. Ele não estava só sendo controlador. Ele carregava uma culpa profunda. Uma culpa que tinha nome. Gabi. Passei a mão devagar na testa dele, troquei a compressa mais uma vez e fiquei ali até o sol começar a nascer, tentando digerir o peso de tudo aquilo e me perguntando quantos outros fantasmas ele carregava sem nunca ter contado para ninguém. Quando abri os olhos, o céu já estava claro pela janela da sala. Eu nem lembrava quando tinha cochilado. Minha cabeça estava apoiada num canto do sofá, o corpo todo dolorido de tanto ficar na mesma posição. Dante ainda estava ali, respirando pesado, mas diferente da madrugada. Sua pele já não queimava como antes, o rosto parecia menos pálido, os olhos fechados de um jeito mais tranquilo. Me levantei devagar, com os ossos estalando. Fui até a cozinha para trocar a água da compressa, mas antes de voltar ouvi a voz dele. — Por que você tá fazendo isso? A pergunta veio baixa e rouca, mas dessa vez consciente. Voltei para a sala com o pano na mão e vi que ele me olhava. Olhos abertos de verdade agora, cansados, mas atentos. — Porque você tava quase morrendo de febre, ué — respondi, sem muita paciência. — Não pedi pra tu cuidar de mim. Revirei os olhos. — E eu pedi pra você invadir minha casa, dormir no meu sofá e virar parte da minha vida? Não, né? Então estamos quites. Ele sorriu de canto, como se o deboche fosse a única resposta possível. — Tô falando sério... — ele insistiu. — Não precisava. — Eu sei que não precisava... mas eu quis — falei, respirando fundo. — Ficar te olhando desse jeito, parecendo que ia apagar de vez, não tinha como simplesmente ignorar. Ele ficou me encarando, quieto. Seus olhos tinham um peso diferente daquela vez, um tipo de gratidão que ele parecia não saber demonstrar direito. Antes que o clima ficasse ainda mais esquisito, ouvi passos apressados vindo do corredor. — Mãe! — Clara apareceu de pijama, com o cabelo todo bagunçado. — Ele tá melhor? Ela foi até Dante, parando ao lado do sofá, olhando para ele com os olhinhos cheios de preocupação. — Já tô quase novo — ele respondeu, forçando um sorriso fraco. — Você ia morrer? — a pergunta saiu do jeito mais inocente possível. Dante pareceu sem saber o que responder. Piscou devagar, olhou para ela como se tentasse encontrar alguma frase que não assustasse. — Não... eu só fiquei meio fraco. Coisa de adulto. Clara mordeu o lábio, como se ainda não estivesse convencida, mas acabou aceitando. — Posso trazer meu desenho pra fazer aqui perto de você? — Pode — ele respondeu, e eu juro que vi um traço de carinho no jeito que ele falou. Ela correu até o quarto e voltou com o caderno, as canetinhas, o estojo todo bagunçado. Aproveitei o momento e fui para a cozinha. Precisava organizar as coisas, preparar o café, tentar fazer aquele dia começar de um jeito menos caótico. Enquanto mexia no café, o cheiro forte invadiu a casa e consegui ouvir a voz dele conversando com ela, perguntando sobre o que ela estava desenhando, ouvindo as respostas de Clara como se aquilo fosse a coisa mais interessante do mundo. E mesmo com todo o cansaço, com a cabeça doendo e com a coluna gritando de tanto dormir torta, por um segundo, eu sorri.
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