Depois que a Clara terminou de comer, ela se arrastou de volta pro quarto com a boneca debaixo do braço, dizendo que ia brincar um pouco antes da aula começar. Eu fiquei na cozinha recolhendo as xícaras, tentando ocupar as mãos pra não olhar pra ele. Queria me convencer de que, se eu mantivesse a cabeça baixa, ele ia cansar e ir embora. Mas claro que não foi assim.
Quando levantei os olhos, ele já não estava mais na cozinha.
O coração disparou.
Fui até a sala, e lá estava ele. De pé, no meio do cômodo, olhando pras coisas como se fosse dono de cada objeto. O olhar dele passeava pelas paredes, pelas fotos antigas que eu tinha da minha mãe e da Clara ainda bebê, pelos poucos móveis gastos que eu consegui comprar aos trancos e barrancos nos últimos anos.
Ele andava devagar, como quem avalia o território. Passou a mão pela cortina fina da janela, puxou o pano com os dedos, como se testasse a qualidade. Depois foi até o móvel da TV, abriu a porta de um armário pequeno e viu o que tinha dentro: uma pilha desorganizada de roupas dobradas às pressas.
Meu rosto queimou de vergonha.
— Não tem muita coisa aqui, né? — ele comentou, como se falasse sozinho, mas alto o bastante pra eu ouvir.
— Dante... — tentei de novo, com um pouco mais de firmeza. — Por favor... vai embora.
Ele fechou a porta do armário com calma, virou o corpo na minha direção e me olhou daquele jeito que só ele sabia olhar. Um olhar que parecia invadir até os cantos mais escondidos da minha cabeça.
— Ainda não quero ir — disse, simples assim, como se a vontade dele fosse a única coisa que importava.
Senti meu estômago virar.
— Você não pode ficar aqui desse jeito. Isso aqui é minha casa. Minha vida. Minha irmã tá aqui.
Ele deu alguns passos até ficar mais perto de mim. Não rápido, não ameaçador, mas com aquela presença que me fazia querer recuar.
— Tô quieto. Não tô te fazendo nada.
— Mas você tá... — engoli em seco. — Tá mexendo nas minhas coisas. Tá andando por aqui como se fosse seu.
Ele ergueu uma sobrancelha, como se achasse graça daquilo.
— Talvez seja.
Meu peito travou com a resposta.
— Não é — sussurrei.
Ele chegou ainda mais perto, até o ponto de eu sentir o cheiro do café na respiração dele, misturado com o perfume forte que ele sempre usava.
— Tá ficando — disse antes de virar de costas e ir até a parede onde eu tinha pendurado os desenhos da Clara. Ficou olhando um por um, passando o dedo por cima como se analisasse cada traço infantil.
Fechei os olhos por um segundo, respirando fundo, lutando contra a vontade de chorar. Não podia. Não na frente dele.
Abri os olhos de novo e vi ele pegando uma boneca da Clara que estava jogada no sofá. Ele girou a boneca na mão, como se estudasse o brinquedo, depois colocou de volta no lugar, do mesmo jeito que achou.
Aquela invasão dele não era só física. Era mental. Emocional. Ele tava invadindo cada espaço, cada canto, cada silêncio.
— Você precisa ir — repeti, com a voz mais baixa dessa vez, porque eu já sabia a resposta.
E ela veio, exatamente como eu temia.
— Vou quando eu quiser — ele disse, ainda de costas pra mim.
E eu fiquei ali, de pé, no meio da sala, com a respiração presa e uma vontade imensa de gritar. Mas, como sempre, engoli tudo. Como sempre, só fiquei.
(…)
Levar a Clara pra escola era, até aquele dia, a minha pequena chance de respirar. Um trajeto rápido, só algumas ruas morro abaixo, mas era o único momento em que eu podia andar sem aquela sombra grudada nas minhas costas.
Segurei a mão dela com mais força do que o normal enquanto descíamos a viela. Fui olhando pros lados, desconfiada de tudo e de todos, porque mesmo fora de casa, o peso dele ainda me acompanhava.
Clara falava animada sobre a aula de artes, sobre o recreio, sobre o lanche que queria trocar com a colega. Eu tentava sorrir, respondia com "é mesmo?" e "que legal", mas a cabeça tava em outro lugar.
Em casa.
Com ele.
Assim que deixei ela no portão da escola e vi a professora chamando as crianças pra dentro, respirei fundo. Por alguns segundos, fiquei parada ali mesmo, de costas pro prédio, como se o simples fato de estar na rua fosse um alívio.
Olhei pro relógio no celular. Não tinha passado nem uma hora desde o café da manhã. Mas pra mim, parecia que eu carregava o peso de dias nas costas.
Eu poderia ter dado uma volta, enrolado no caminho, tentado ficar longe só um pouco mais. Mas com a Clara fora de casa, o medo de deixar a porta da frente aberta com ele lá dentro era maior.
Então voltei.
Subi o beco, passei pelas vizinhas que me olhavam daquele jeito que eu já conhecia: misto de pena e julgamento. Talvez algumas já soubessem que ele tava lá. No morro, as coisas correm rápido.
Quando cheguei na porta, respirei fundo antes de abrir.
E lá estava ele. Ainda ali. Sentado no mesmo sofá, como se o tempo não tivesse passado. Como se fosse normal. Como se aquilo fosse rotina.
A televisão estava ligada em um canal qualquer, passando jornal. Ele tava com as pernas esticadas, o braço apoiado no encosto, olhando pra tela como se prestasse atenção, mas eu sabia que não estava.
O olhar dele veio direto pra mim assim que a porta rangeu.
— Demorou — ele disse, sem tirar os olhos do jornal por muito tempo.
— Fui deixar a Clara na escola — respondi, meio seca, jogando a chave em cima da mesa.
Ele assentiu, como se fosse óbvio.
Passei pela sala sem olhar muito pra ele e fui direto pra cozinha, abrindo a torneira com força, enfiando as mãos na água fria pra tentar aliviar a tensão. Meu peito ainda doía. Meu corpo ainda estava tenso.
Eu queria que ele fosse embora.
Queria minha casa de volta.
Queria minha rotina de volta.
Mas pelo jeito, ele não estava com pressa nenhuma de sair.
Quando voltei pra sala, ele ainda estava ali. O olhar de sempre. A presença de sempre. Como se aquela casa, como se a minha vida, fosse só mais uma coisa que ele tinha decidido ocupar.
E eu, mais uma vez, só podia aceitar.