25. Luna

1148 Words
Foi no fim da tarde que ele apareceu com a chave. Eu estava na cozinha, tentando dobrar umas roupas da Clara, quando ouvi a porta bater com força. Não era a batida de quem pede licença. Era a de quem já se considera dono. Virei na mesma hora, o coração disparando. Ele entrou com aquele andar firme e pesado, a chave pendurada no dedo indicador, balançando de um lado pro outro como se fosse um brinquedo. — Arrumei uma casa melhor pra vocês — disse antes mesmo de eu abrir a boca. Fiquei parada, imóvel, com a camiseta da Clara ainda nas mãos. — Como assim? — minha voz saiu baixa, quase sem força. — Dois quartos, sala grande, cozinha com armário planejado, banheiro com box de vidro. Até máquina de lavar já tá lá. — Ele falou como se tivesse feito o favor do século. — Ah, e tem um guarda-roupa novo no quarto da sua irmã e uma cama de verdade. O nó na minha garganta apertou. — Eu não pedi isso, Dante. Ele riu, como se minha resposta fosse uma piada. — Não precisa pedir. Já tá feito. — Estendeu a mão com a chave. — Amanhã mando os caras te ajudar com as coisas. Dei um passo pra trás, sentindo o chão sumir debaixo dos pés. — Eu não vou me mudar. A frase saiu antes mesmo de eu pensar. Saiu mais forte do que eu queria. Mais corajosa do que eu realmente era. Ele congelou no lugar. O sorriso sumiu. O olhar mudou. Ficou frio, lento, perigoso. Por um instante, o ar da sala pareceu pesar o dobro. — Como é que é? — perguntou, com a voz baixa e carregada daquela ameaça disfarçada que só ele sabia fazer. Engoli em seco. — Eu não quero sair daqui. Essa casa é minha. Eu lutei pra ter cada coisa aqui dentro. Não quero... — Luna — ele me interrompeu, andando até ficar perto, muito perto. O corpo dele praticamente colado no meu. — Não tô perguntando o que você quer. Meu estômago revirou. — Eu tô te dizendo. As palavras cortaram o ar como faca. — Essa casa nova é sua agora. A vizinhança é mais calma. A rua é asfaltada. E a Clara vai ter espaço pra brincar. Minha garganta ardia. — Eu não vou. Ele respirou fundo, fechou os olhos por um segundo, como se estivesse segurando alguma coisa dentro dele. Quando abriu de novo, o olhar era outro. — Então vai ser do meu jeito — disse, tão calmo que me deu mais medo do que se ele tivesse gritado. Virou as costas e saiu, deixando a chave em cima da mesa. Eu fiquei ali, com as mãos tremendo, sentindo a ameaça pairando no ar. Porque agora eu sabia que ele ia conseguir o que queria, nem que fosse na marra. (...) Acordei com barulho de motor e vozes de homens. Ainda estava com o rosto colado no travesseiro quando ouvi o som de um caminhão encostando na rua estreita, em frente à minha casa. No começo, achei que fosse alguma entrega ou mudança de algum vizinho. Mas no morro ninguém fazia mudança naquele horário e muito menos com tanto tumulto. Levantei num pulo, com o coração batendo forte. Fui até a janela da sala, empurrei a cortina fina com pressa e o que vi fez meu estômago despencar. Eram os vapores dele. Uns cinco, talvez seis caras. Todos conhecidos. Todos com aquelas camisetas largas, bonés virados, cigarro no canto da boca e o jeito debochado de quem sabe que ninguém vai impedir. Eles estavam descendo do caminhão com caixas, sacolas. Um deles já tinha aberto a porta da minha casa como se fosse dono. Entrou sem nem bater. Meu peito travou. Corri pra porta. — Ei! Que p***a é essa?! — gritei, com a voz embargada de pânico. Um dos caras, o Leleco, olhou pra mim com um sorriso torto. — Ordem do patrão, Luna — disse enquanto pegava as roupas da Clara que estavam no sofá. — Não! Não toca nas minhas coisas! — Tentei empurrar ele, mas o homem só se desviou, como se eu fosse uma criança tentando impedir um adulto. Outro já tinha ido pro quarto. Abriu a gaveta com força e jogou minhas roupas dentro de uma caixa de papelão. Panelas começaram a ser colocadas dentro de sacolas. A televisão, o ventilador pequeno que eu tinha, tudo sendo levado como se fosse só mais uma tarefa. Saí pra rua, desesperada. — Eu não vou sair daqui! Vocês não têm o direito! — Minha voz falhava, mas eu continuava gritando. Leleco me olhou de novo, agora com um sorriso ainda mais debochado. — Luna, só faz as malas e facilita pra gente. Porque tu sabe, né? Ninguém aqui vai desobedecer o chefe. Meu corpo tremia inteiro. As pernas ameaçavam falhar. Eu sabia que discutir com eles ali era pedir pra piorar a situação. A vizinhança inteira já tava de olho. Vi cortinas mexendo, gente espiando. Eu era o espetáculo da manhã. Corri de volta pra dentro, tentando, pelo menos, juntar as coisas da Clara. Peguei as bonecas, os cadernos, o uniforme. Meu peito ardia como se fosse explodir de raiva, vergonha e medo. Em menos de uma hora, minha casa estava vazia. Só sobrou o eco das vozes deles, a poeira levantada e o vazio nas paredes. Quando o caminhão começou a descer o beco com tudo que eu tinha dentro dele, eu sabia: o próximo destino era a tal casa nova. A casa que eu não escolhi. A casa que agora era a minha prisão. Fiquei ali, parada na porta da casa vazia, como uma estátua. As horas passaram e eu nem percebi. A rua ficou mais silenciosa, o sol mudou de posição, a sombra da parede cresceu devagar até cobrir meus pés. Eu não tinha mais nada ali dentro. Nem uma colher. Nem um pano. Nem as bonecas da Clara. Mas eu continuei. Como se o simples ato de ficar ali fosse suficiente pra impedir que a vida me arrastasse pra aquele lugar que eu não queria ir. As vizinhas passaram indo e voltando. Algumas paravam, olhavam de longe, cochichavam. Eu ouvia pedaços das frases. — Tadinha, ficou sem nada. — Diz que foi o Dante que fez. — Também, né... mexer com quem não deve. Ignorei tudo. Fingi que não ouvia. Segurei firme no batente da porta, como se aquilo fosse me segurar no mundo antigo, no pouco de estabilidade que eu ainda achava que tinha. A Clara tava na escola. Melhor assim. Pelo menos ela não viu. E eu? Eu não tinha forças nem pra chorar. O corpo parecia anestesiado. A cabeça vazia e cheia ao mesmo tempo. Foi só quando ouvi o ronco da moto subindo a viela que meu coração disparou de novo. Eu sabia. Sabia antes mesmo de ver.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD