23. Luna

1014 Words
Acordei tarde demais para os meus padrões, com o sol já alto invadindo a pequena sala pela fresta da janela. A sensação estranha de ter dormido nos braços do Dante ainda pesava no meu peito, como se uma parte de mim ainda estivesse presa naquela noite. Levantei devagar, sem fazer barulho, e caminhei até a cozinha. Queria tomar um pouco de água e, talvez, me preparar para enfrentar mais um dia que eu não tinha certeza se conseguiria aguentar. Mas quando entrei na cozinha, a cena me surpreendeu. Lá estavam eles, Dante e Clara, como se fossem uma família qualquer numa manhã comum. Ele estava de pé, mexendo calmamente uma panela no fogão, enquanto Clara sentava na mesa pequena, um sorriso largo no rosto e as mãos segurando uma fatia generosa de pão. Ele tinha preparado café, e ao lado da panela, uma sacola com algumas coisas para o café da manhã ainda fechada. Me aproximei lentamente, observando aquela cena que me parecia tão fora da realidade da minha vida. Clara falava sem parar, mesmo para aquela hora da manhã. Contava coisas sobre a escola, sobre a amiga que tinha lhe dado um desenho, sobre um desenho animado novo que tinha visto. Dante respondia com poucas palavras, mas sua atenção estava toda nela. Ele olhava para Clara com um misto de curiosidade e concentração, como se tentasse entender o que as palavras daquela menina significavam, tentando decifrar não apenas o que ela dizia, mas também o mundo que aquelas frases carregavam. Quando ele percebeu minha presença, levantou a cabeça e me lançou um olhar direto. Não era hostil, mas pesado, carregado daquela intensidade que me fazia prender a respiração. — Bom dia, Luna — disse, com a voz baixa, quase como um cumprimento hesitante. Eu tentei corresponder com um aceno, ainda meio sem palavras. Clara, por outro lado, sorriu e me ofereceu um pedaço do pão. — Quer comer? Tem queijo e manteiga. Eu recusei com um sorriso fraco, ainda processando o que via ali. Eles estavam juntos na cozinha, e eu não sabia se aquilo era um sinal de algo que eu não queria ou um convite para algo que eu ainda não podia entender. Dante voltou sua atenção para o café, mexendo a panela lentamente, e eu fiquei ali, parada na porta, observando aqueles dois. Um homem que eu m*l conhecia e uma criança que dependia de mim, unidos naquele momento simples, tão distante do caos que costumava ser minha rotina. O silêncio era estranho, mas não desconfortável. Era como se, por um instante, pudéssemos existir sem medo, sem pressa, sem os gritos e as dores que vinham com a noite e a rua. Ainda assim, eu sabia que aquilo era só uma pausa. Porque a vida lá fora continuava e eu ainda tinha que proteger minha irmã pequena, meu pouco de esperança, do homem que me dominava em tantas outras formas. O cheiro de café fresco enchia a cozinha de um jeito que fazia meu estômago revirar de fome, mas também de ansiedade. Ver Dante ali, com a mão pesada segurando a colher de p*u, mexendo o café como se fosse uma tarefa rotineira, era uma cena que eu nunca teria imaginado. A Clara continuava falando, tagarelando sobre tudo e mais um pouco. Contou de uma brincadeira no recreio, depois falou do sonho que tinha tido naquela noite, um sonho com um cachorro que falava e que, segundo ela, sabia até fazer conta de matemática. — Ele sabia contar até cem, sabia, moço? — ela disse, com a boca cheia de pão, rindo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Dante olhou pra ela por cima da panela, com aquela expressão dele que misturava tédio e curiosidade. — Cem, é? — Ele perguntou, como quem não tava acostumado a interagir com criança, mas ainda assim se esforçava pra acompanhar. Ela assentiu com a cabeça, animada, enquanto enchia a boca com mais um pedaço. — Foi o que ele disse no meu sonho. Ele soltou um som curto, que não chegou a ser um riso, mas quase. Eu continuei encostada na porta da cozinha, observando aquilo tudo com uma mistura de desconfiança e incredulidade. A casa parecia pequena demais pra caber os três. O ar estava pesado, e não era só por causa do cheiro forte do café. Vi quando ele largou a colher e pegou duas xícaras no armário. Serviu uma pra ele e... outra pra mim. Como se fosse natural, como se isso já fizesse parte da rotina. Quando ele estendeu a xícara, demorei um segundo pra aceitar. Peguei com cuidado, como se o simples toque no objeto pudesse me amarrar ainda mais a ele. — Os moleque trouxeram pão, queijo, margarina... e umas besteiras também. — disse, apontando com o queixo pra sacola. — Mandei buscarem cedo. — Não precisava, Dante. — Falei, baixinho, mais pra mim do que pra ele. Ele deu de ombros, como quem não se importa se precisava ou não. Me sentei na cadeira de sempre, sem coragem de olhar muito pra ele, mas também sem conseguir simplesmente virar as costas e subir de volta pro quarto. A Clara continuou falando, perguntando pra ele se ele gostava de cachorro, qual era o time de futebol dele, se ele já tinha andado de avião. E ele... pra minha surpresa... respondeu todas. Curto, seco, mas respondeu. — Nunca andei de avião. — disse, mexendo o café. — Jura? Achei que você já tivesse ido pra bem longe... — Ela comentou, inocente, enquanto empurrava um pedaço de bolo com os dedos. Dante ficou calado por um segundo. O olhar dele endureceu, mas ele não perdeu a paciência. Apenas bebeu mais um gole de café e desviou o assunto. — Termina de comer, menina. Tá falando demais pra essa hora. Ela riu, sem se ofender, e continuou mastigando. A sensação de que minha casa, meu espaço, minha vida, já estavam deixando de ser só meus. Não falei mais nada. Só fiquei quieta, encarando a mesa, sabendo que esse café da manhã ia me assombrar por muito tempo.
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