Os últimos dias tinham sido estranhamente calmos, daquela calma que sempre vem antes da tempestade. Dante andava menos invasivo, menos presente, mas eu sabia que não era por escolha. Ele estava atolado nos problemas dele, passando mais tempo resolvendo coisas na rua do que dentro de casa.
Mesmo assim, quando aparecia, ainda tinha aquele olhar que parecia atravessar paredes, como se soubesse cada passo que eu dava, cada pensamento que cruzava minha mente.
Foi numa dessas manhãs tranquilas que o portão da frente bateu com um estrondo familiar. Eu estava na cozinha lavando a louça do café quando ouvi o ronco da moto dele se aproximando e, logo em seguida, o grito animado da Clara.
— Mãe! Mãe, vem ver!
Sequei as mãos no avental e corri até a porta, meu coração já acelerado sem motivo aparente.
Ela estava lá na calçada, rodando em volta de uma bicicleta novinha em folha, vermelha, com rodinhas laterais e laços brancos pendurados no guidão. Seus olhos brilhavam com uma felicidade que eu não via há tempos.
— Olha o que o Dante me deu! — Ela gritou, eufórica. — Ele disse que é pra eu aprender a andar direitinho!
Minha garganta travou na hora. Ergui o olhar e vi ele parado do outro lado da rua, encostado na moto, com os braços cruzados, me observando de longe como quem esperava minha reação.
— Não precisava disso — falei, atravessando a rua até ele com passos firmes.
— Precisava sim — ele respondeu simples, sem tirar os olhos de mim.
— Dante... — tentei protestar, mas ele cortou minha fala.
— Ela merece. E é só uma bicicleta, Luna. Não vou pedir desculpa por dar isso pra ela.
Revirei os olhos, mas não disse mais nada. Sabia que discutir com ele era inútil. Clara já estava pedalando desajeitada de um lado para o outro, rindo alto, completamente encantada com o presente.
Passei o resto da manhã assistindo ela, fingindo que não estava emocionada. Mas por dentro, era uma mistura de gratidão e medo. Gratidão por ver minha filha feliz, medo por saber que cada presente, cada gesto dele, era mais um elo nos prendendo a ele.
(…)
No dia seguinte, depois de deixar a Clara na escola, resolvi fazer o que estava adiando fazia semanas. Desci até o asfalto e fui procurar emprego. Andei pelo bairro inteiro, entrando em padarias, farmácias, mercadinhos. Em cada lugar a mesma história: "precisamos de alguém com experiência", "a gente avisa se surgir uma vaga", ou aquele olhar de julgamento quando reconheciam de onde eu vinha.
Na última tentativa, uma mulher mais velha, dona de um pet shop, foi direta:
— Olha... já ouvi falar de você. Não posso contratar, não quero problema.
Saí de lá com o rosto queimando de vergonha, sentindo o peso do meu passado me puxando para baixo.
Subi de volta para o morro com o estômago embrulhado. m*l tinha colocado o pé em casa e já vi um dos vapores do Dante encostado no portão.
— O chefe quer falar contigo — o homem disse, com um tom que não admitia recusa.
Fechei os olhos com força. Sabia que isso ia acontecer. Minutos depois, Dante apareceu. Parou na minha porta, com o boné abaixado e o olhar pesado.
— Tu acha que eu não ia saber que cê tava descendo o asfalto pra procurar emprego?
— Por acaso agora eu sou sua prisioneira?
— Não é isso — ele suspirou fundo. — Só... não quero você se expondo por aí. Você e a menina. Não é hora pra isso.
— E quando vai ser a hora, Dante? Quando eu tiver enterrada?
Ele se aproximou mais, até ficar de frente comigo.
— Eu já falei, fica aqui, fica quieta... eu cuido de tudo.
Quis gritar na cara dele, quis empurrar ele porta afora, mas antes que eu abrisse a boca, o celular dele tocou. Ele atendeu na hora, e seu semblante mudou instantaneamente.
— Como assim? Aonde? — A voz dele desceu duas oitavas. — Alguém viu?
Ele desligou antes de ouvir a resposta completa e já saiu correndo da porta. Vi os caras da segurança dele se movimentando na rua, todos armados, com os rádios apitando. Meu peito congelou.
Pela janela, ouvi a conversa rápida entre dois deles.
— O outro lado tá tentando entrar. Disseram que tem carro rondando aqui desde ontem.
— Tão de olho nas casas. Na dela também.
Senti minhas pernas fraquejarem. Tranquei a porta com tudo, puxei a Clara para dentro assim que ela chegou da escola e deixei as janelas fechadas pelo resto da tarde.
Dante só voltou depois das dez da noite. Sujo, suado, com o rosto cortado de leve no canto da boca. Entrou sem dizer nada, largou o casaco na cadeira e foi direto para o banheiro. Eu fiquei parada na cozinha, olhando para a parede, com o coração disparado.
Ele saiu de banho tomado, só de bermuda, e me encarou do meio do corredor.
— Pode ficar tranquila. Já tirei eles daqui.
Não respondi. Não sabia o que dizer.
Ele veio até mim, colocou a mão na minha nuca, puxou meu rosto contra o peito dele. Fiquei ali, respirando o cheiro da pele dele misturado com o sabonete.
— Eu falei que ia proteger vocês — ele disse, baixo, com a voz rouca. — E eu não volto atrás no que eu prometo.
Por um segundo, quis acreditar nele. Por um segundo, quase fechei os olhos e deixei o corpo ceder. Mas o medo ainda estava preso no fundo da minha garganta.
Ele percebeu. Apertou mais a mão na minha nuca.
— E para de tentar fugir de mim, Luna — sussurrou contra o meu cabelo. — Não vai conseguir.