O atraso começou pequeno, quase imperceptível. Dois dias passaram, depois quatro, e de repente uma semana inteira havia se escoado sem que meu corpo desse o sinal esperado. No começo, tentei culpar o estresse - a rotina louca, o susto que havíamos passado com a Clara, as noites m*l dormidas. Mas era impossível não fazer as contas, não acompanhar cada dia no calendário com um frio na espinha.
A cada manhã que acordava, a cada cólica leve que vinha e ia embora, a cada vez que me via diante daquele calendário preso na geladeira, o desespero só aumentava. Na segunda-feira, quando acordei com Dante já saindo para o morro, meu estômago embrulhou de vez. Passei a manhã inteira inquieta, andando de um lado para o outro pela casa, limpando o que já estava limpo, organizando o que já estava organizado, tentando ocupar as mãos e a mente.
Até que, depois de deixar a Clara na escola, desci o morro e fui até a farmácia do asfalto. Peguei o teste de gravidez escondendo na bolsa como se fosse contrabando, com as mãos suando e o coração batendo forte. Voltei para casa, tranquei a porta, respirei fundo e fui direto para o banheiro.
O tempo de espera parecia uma eternidade. Sentei no chão frio, abraçando os joelhos, com a cabeça encostada na parede, tentando controlar o choro que já ameaçava vir antes mesmo de saber o resultado. As lembranças de cada vez que Dante me tinha pegado de qualquer jeito, sem proteção, sem pensar, sem se importar, tudo voltou como um soco no estômago.
Quando finalmente criei coragem para olhar o visor do teste, a palavra "Negativo" apareceu como um alívio que doía. Minhas mãos tremiam, o coração ainda batia descompassado, mas permiti que as lágrimas descessem sem controle. Respirei fundo, lavei o rosto com água fria e me encarei no espelho.
— Nunca mais, Luna... — falei, baixinho, para meu próprio reflexo.
Naquela tarde, antes de buscar a Clara, passei novamente na farmácia. Dessa vez, comprei a cartela de anticoncepcional que há meses eu vinha enrolando para começar. Joguei o teste no lixo, como se fosse um segredo que precisava ser enterrado para sempre.
Quando Dante voltou naquela noite, cheio de marcas pelo corpo e o olhar ainda mais escuro do que o normal, eu fingi que estava tudo bem. Fingi tão bem que até ele pareceu acreditar. Mas por dentro, só conseguia pensar em uma coisa: se fosse para ele me prender, não seria com um filho.
(…)
O dia tinha começado normal - se é que podia existir normalidade na rotina de quem dividia a casa com o dono do morro. Clara tinha ido para a escola depois de tomar o café que o próprio Dante insistiu em preparar, mais uma vez agindo como se fosse parte da nossa vida, como se sempre tivesse estado ali.
Depois que ela saiu, ele pegou o boné, a pistola e saiu também, me deixando com aquele silêncio pesado que sempre deixava para trás. A manhã passou devagar, o almoço esquentou e esfriou na panela, e lá pelas cinco da tarde, quando eu já começava a me acostumar com a ideia de que ele não voltaria tão cedo, o portão da frente bateu com força.
Corri até a sala, e quando abri a porta, ele estava lá. Sujo, suado e sangrando profusamente.
— p***a, Dante... — meu coração pareceu parar.
Ele m*l conseguia ficar em pé. Um corte feio aberto no ombro, a camisa rasgada e manchada de sangue.
— Que merda aconteceu?
Ele me olhou com aquele olhar escuro e cansado que já conhecia tão bem.
— Preciso de um pano... e whisky, se tiver.
— Você tá louco? Tem que ir pro hospital!
— Não.
— Dante, olha pra você!
Ele cambaleou até o sofá e caiu sentado, a respiração pesada e irregular.
Corri para a cozinha, peguei a garrafa de álcool, panos limpos e gelo. Minhas mãos tremiam tanto que m*l conseguia abrir a embalagem dos curativos. Quando voltei, ele já tinha tirado a camisa, revelando o corte profundo e hematomas que se espalhavam pelo torso.
— Foi tiro? — perguntei, a voz falhando.
Ele balançou a cabeça com dificuldade.
— Faca.
— Você precisa de pontos, Dante.
— Consegue segurar o corte? — perguntou, olhando direto nos meus olhos. — Só até fechar um pouco?
Engoli seco. Peguei o pano, pressionei contra a pele dele e ouvi um gemido de dor escapar de sua garganta.
— Cala a boca e fica quieto — sibilei, com uma raiva que mascarava meu desespero.
— Tá mandando em mim agora? — ele tentou sorrir, mas a expressão se transformou em uma careta de dor.
— Se depender de você, vai morrer aqui na minha sala feito um cachorro.
Passei álcool, limpei como pude, enfaixei o ombro e depois ainda fui buscar uma pomada velha que guardava desde um machucado da Clara. Ele ficou ali, respirando com dificuldade, o rosto coberto de suor, o olhar perdido em algum lugar que só ele podia ver.
— Que tipo de vida é essa, hein? — perguntei baixinho, mais para mim do que para ele.
Ele abriu os olhos e me encarou, a profundidade de seu olhar me atingindo como um golpe.
— A única que eu sei viver.
Fiquei em silêncio, sentada no chão, com os joelhos encostados na ponta do sofá. Minhas mãos ainda tremiam levemente.
— Devia ter me deixado no chão... lá onde eu caí — ele murmurou, de olhos fechados.
— Cala a boca, Dante.
— Seria melhor pra você... pra ela... — apontou com o queixo na direção do quarto de Clara.
— Cala a boca! — levantei num pulo, o coração disparado.
Ele sorriu de canto, como se gostasse da minha reação, como se soubesse que, no fundo, eu me importava mais do que admitia.
Fui para a cozinha, peguei um copo de água e levei até ele. Ele bebeu de um gole só, as mãos trêmulas segurando o copo.
— Vai descansar — falei, baixinho. — depois eu vejo como tá esse ombro. Se infeccionar, eu te arrasto até o hospital nem que seja amarrado.
— Quero ver você me arrastar — ele fechou os olhos, a voz já mais fraca.
Deixei ele ali, no sofá, com uma coberta cobrindo seu corpo. Fiquei parada na porta da sala, observando aquele homem enorme, sempre tão forte e ameaçador, agora vulnerável, respirando profundamente em sono inquieto, com o rosto mais humano do que eu tinha visto desde que ele entrou em minha vida.
No fundo, por mais que eu quisesse odiá-lo, era impossível negar a verdade que se instalou em meu peito: ele estava tentando sobreviver, do jeito torto e danificado dele, mas estava tentando. E eu, contra toda a lógica e instinto de autopreservação, estava começando a torcer para que ele conseguisse.