28. Luna

962 Words
A madrugada caiu pesada. O silêncio da casa era tão absoluto que parecia vivo. Eu fiquei ali acordada por horas, deitada no sofá com a coberta enrolada nas pernas, encarando o teto enquanto sentia o medo pulsar dentro do peito. A respiração leve da Clara vinha do quarto dela, ritmada, tranquila, completamente alheia ao caos que rondava a nossa vida. E, pela primeira vez, mesmo num lugar novo, com paredes limpas, móveis novos e uma cama vazia só pra mim, eu me senti mais sozinha do que em qualquer casa velha que já morei. Como se todo aquele silêncio fosse uma forma de me lembrar do que eu tinha perdido. Do que tinham arrancado de mim. A claridade invadiu a sala muito antes de eu conseguir dormir de verdade. Passei a noite virando pra lá e pra cá no sofá, com o corpo cansado, mas a mente presa naquele estado de alerta que não deixava nada descansar. Quando a porta do quarto da Clara abriu, fechei os olhos por instinto. Fingir que dormia era mais fácil do que levantar e encarar o dia. — Mãe — ela chamou baixinho, cutucando meu ombro. — Mãe, tem pão? Respirei fundo e abri os olhos devagar. — Tem sim. Acho que tem — respondi, levantando no automático. Ajeitei o cabelo com a mão, sentindo o rosto amassado de quem não dormiu nada direito. Fui até a cozinha e comecei a separar o café. Pão, margarina, leite e o achocolatado que os vapores tinham largado no armário no dia anterior. Enquanto eu esquentava o leite, Clara correu pra sala com a boneca nova nos braços, animada como sempre. Foi aí que ouvi o barulho de moto subindo a rua. Meu corpo inteiro travou. Meu coração já sabia. Antes mesmo de a moto parar. Antes mesmo de qualquer batida na porta. Era cedo demais. Cedo demais pra ele. — Fica aqui, Clara — pedi, indo até a janela. Ele já estava lá. Encostado na moto, de boné preto, camiseta justa, a postura firme de quem domina qualquer espaço que pisa. O olhar dele encontrou o meu como se o horário não significasse nada pra ele. Como se fosse natural aparecer ali antes do sol terminar de subir. Eu sabia que não adiantava fingir que não estávamos em casa. Nem trancar a porta. Nem pedir. Nem rezar. Respirei fundo e destranquei devagar. Quando abri, ele entrou como se fosse o dono. Passou por mim sem dizer bom dia, sem olhar muito, sem pedir licença. Foi direto pra sala. — A Clara tá acordada? — perguntou, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo. Antes que eu respondesse, ela mesma apareceu na porta da cozinha, com o rosto brilhando. — Dante — gritou, abrindo um sorriso enorme. O estômago virou só de ouvir ela dizendo o nome dele daquele jeito. Ele agachou um pouco, abriu os braços e ela correu até ele, abraçando com força. Uma cena que me arrepiou do avesso. — Vem ver meu quarto novo — ela disse, animada, puxando ele pela mão. E ele deixou. Foi atrás dela como se estivesse realmente curioso. Eu fui atrás, com o coração apertado. Clara mostrou cada canto como se estivesse dando um tour num castelo mágico. — Olha minha cama. Olha a cortina. Olha a boneca que você me deu, né? Foi você, né? Minha mãe falou que foi um amigo, mas eu sei que foi você. Ele sorriu de canto, passando a mão na cabeça dela. — Gostou então? — a voz veio baixa, quase suave. Ela assentiu com força, pulando dois passos pra trás. — Gostei muito. Muito mesmo. Depois ela correu pra mostrar o outro quarto, a cozinha, a sala, até a geladeira. Ele ouviu tudo, fez perguntas simples, deu atenção demais. Como se aquilo fosse normal. Como se aquela fosse a rotina dele. Eu observava de longe, com os braços cruzados, sentindo o peito queimar por dentro. Aquele homem que aterrorizava meu sono, que marcava minha pele, que invadia meus limites, agora caminhava pela minha casa nova ouvindo minha irmã, deixando ela segurando sua mão. Tudo com uma naturalidade doentia. Quando voltei pra cozinha pra ajeitar as xícaras e fingir que minha vida ainda tinha alguma normalidade, ele apareceu na porta. Encostou na bancada com o corpo relaxado, mas o olhar afiado em mim. — A casa tá boa, né? — perguntou, com a voz baixa e controlada. Continuei mexendo nas xícaras só pra não encarar ele. — Não precisava. Ele deu um leve sorriso torto, quase impaciente. — Precisava sim. — Não — respondi, virando de repente e encarando ele de frente. — Não precisava. Nada disso. O olhar dele escureceu. Ele se aproximou dois passos. Não rápido, mas firme. O suficiente pra minha respiração falhar. — Acostuma, Luna — disse com aquela calma gelada que sempre me deixava sem ar. — Porque eu não vou parar. Antes que eu respondesse, a voz da Clara veio da sala. — Mãe, o leite já ferveu? Tô com fome. Me afastei dele com o coração acelerado, tentando puxar ar pro peito de novo. — Já vai, Clarinha — respondi, ajeitando a blusa e voltando pro fogão. Mas mesmo de costas, eu sentia o olhar dele queimando nas minhas costas. Sentia o peso dele colado na minha pele. Como se o espaço inteiro da casa pertencesse a ele. Como se, a qualquer segundo, fosse me puxar de volta pro mundo dele e eu sabia. Era só questão de tempo. Só questão de tempo até ele exigir mais. Até ele tomar mais. Até ele me esmagar onde quer que eu tentasse respirar. Porque aquela casa nova não era um presente. Era a porta trancada da minha nova prisão. E o carcereiro já estava lá dentro.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD