Capítulo três - 3:2

1054 Words
O despertador tocava de novo e de novo. Mais um ajuste. Mais um toque. Foi assim a semana inteira. No quarto dia, o mural estava quase completo. Ele acrescentou os últimos detalhes com cuidado: sombras para dar profundidade, texturas para trazer realismo, e, por fim, uma assinatura discreta no canto inferior, algo que marcasse a obra como sua sem tirar o protagonismo dela. Quando deu o último passo para trás e olhou para o mural, sentiu uma onda de alívio e satisfação. Trabalhadores em ônibus lotados, crianças jogando bola no campinho de terra, uma senhora vendendo doces — um retrato vivo da periferia. A dona do estabelecimento veio até ele com uma cara alegre. — Ficou outra coisa. Vivo. Intenso. Iago estava exausto. E exaustão também era sinônimo de realização. Com a renda conquistada no bolso, fruto do trabalho, decidiu que era hora de cuidar um pouco de si. Após passar dias mergulhado em tinta e poeira, ele queria renovar a energia e dar um trato na aparência. Na feira-livre, o movimento era intenso como sempre; havia algo interessante ali, algo que refletia a essência da própria periferia. Artistas de rua tocavam melodias de violão. Barracas coloridas ocupavam os dois lados da rua, com vendedores gritando ofertas e clientes negociando preços. Ele parou em uma barraca de roupas onde o dono, um senhor magro de boné, organizava peças penduradas em cabides improvisados. — Procurando o quê, meu chapa? Camisa, calça, boné? — Algo que seja estiloso, mas discreto, sem ser exagerado. O vendedor pegou uma camiseta preta com um grafismo abstrato, que lembrava um pouco o estilo do próprio Iago. Depois, mostrou uma calça jeans com cortes modernos e um par de tênis branco, básico, mas com detalhes que faziam a diferença. Iago experimentou tudo ali mesmo, na rua, usando um espelho pequeno pendurado em um poste. — Fechou, tio. Tá na mão. Saiu satisfeito. Com as compras feitas, ele seguiu para uma barbearia na esquina. O lugar era pequeno, com cadeiras de couro desgastado e pôsteres de times de futebol nas paredes. O barbeiro, um homem de fala rápida, já conhecia Iago de vista. — E aí, artista, veio dar aquele tapa no visual? — disse envolvendo-o no protetor de nylon. Enquanto a navalha ajustava o desenho da barba e o cabelo ganhava um degrade impecável, Iago relaxava na cadeira, observando os outros clientes que conversavam à espera da cadeira ser liberada. Quando o barbeiro terminou, ele se olhou no espelho conferindo se o corte estava “na risca” como se diz no modo popular. — Quanto é que eu devo? — ele sacou a carteira no bolso de trás da calça e pagou pelo serviço bem-feito. Entrou em casa ainda com os dedos manchados de tinta e o cheiro de spray impregnado na pele. O ambiente familiar estava tenso. A tia, que até então lavava a louça, como naturalmente fazia, já começava a reclamar, fazendo-o se sentir como se ainda tivesse na adolescência. — Quantas vezes eu tenho que falar Iago. Quantas, me diz? — murmurou ela cheia de drama. — Chega todo dia sujo de tinta, todo dia! Ah, faça meu favor! — Foi a vida que eu escolhi — se defendeu Iago tenso, mas mantendo o equilíbrio. — Vida, vida, vida... Que vida? Vida é trabalho de verdade! É o que seu tio faz, o que eu faço. O que você faz não dá futuro. — Sua tia tá certa, rapaz. Crescer não é só ser maior de idade. Tem que aprender amadurecer, virar gente! Resmungou o tio sem se distrair do jornal. — O que não entendem é que faço o que quero. Ninguém manda em mim. Eu já me cansei, escutaram? Cansei! — rebateu Iago endurecendo o queixo. — Que negócio esse? Cheio de valentia. Cadê a educação, o respeito que te demos nessa casa? A tia largou a louça secando as mãos no avental. — Se sua mãe tivesse aqui hoje, jamais aprovaria esse tipo de conduta. E digo mais — ela levantou o indicador com um olhar duro. — Era capaz de morrer de desgosto de ter dado à luz a um filho tão ingrato. Irritado, Iago fechou os punhos, e sem se propor a dar ouvidos aos desaforos, pegou a mochila e saiu batendo a porta com força. Vagando sem rumo até que ao dobrar uma curva encontrou um terreno baldio. Ele pulou o muro e tirou as latas de spray da mochila e com movimentos rápidos, começou a desenhar traços. Desta vez, sem planejamento, sem cuidado. As cores são escuras, os traços, agressivos. Ele pinta formas que lembram gritos, expressões de dor e figuras humanas aprisionadas em blocos de concreto. A arte que surge é brutal, crua, diferente de tudo o que ele já fez. Como se de alguma forma pudesse despejar toda a frustração acumulada em cada linha. Após a explosão emocional ser extrapolada, ele encarou o que fez ofegante, e com o arrependimento batendo, decidiu voltar atrás do que havia feito. A casa estava do mesmo jeito que havia deixado. Na cozinha, a tia ainda secava a louça, e da mesma forma que antes, o tio ainda estava na sala assistindo ao noticiário. — Queria pedir desculpa por falar daquele jeito. Ele falou tornando a entrar pela porta. — Eu sei que não devia ter falado daquele jeito. Que foi errado. Eu só... só queria que entendessem o quanto a arte é importante pra mim. Finalmente a tia largou a tarefa e se virou. — E entende o quanto a gente se preocupa? Me explica? — Tem que ver moleque, é que aqui dentro ninguém deseja seu m*l. Pelo contrário. Para os que sobrevive na Selva de Pedra, a verdadeira guerra acontece todo dia. E aquele que não luta por um espaço, não tem vez. Entende isso? — Eu entendo tio. Tô tentando dar meu melhor. — Tentar? Tentar não adianta. Tem que fazer a diferença! — acentuou o tio, se ajeitando no assento do sofá voltando-se para a tela. Iago se calou e depois abandonou a sala. A intensidade da discussão tivera um efeito ainda pior que a primeira. De modo a fazer ele se questionar quanto as escolhas. Não porque duvidasse do talento para a arte, mas talvez porque tivesse de perceber que o apoio que buscava nunca viria.
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