As horas pareciam infindáveis. Como se a noite nunca fosse chegar ao fim.
Garrafas de uísque pela metade.
O ar carregado de perfume e promiscuidade.
Não havia pressa.
Não havia limites.
Cada movimento.
Cada palavra jogada no ar era apenas uma extensão do prazer.
A bebedeira rolava solta. Descompromissada.
Ao redor, as garotas orbitavam como mariposas sedentas.
Flertando sem compromisso.
Jogando palavras doces.
Cada elogio era uma moeda de poder. E ele sabia usá-las bem.
Sussurradas ao pé do ouvido — as mãos deslizando a pele morena.
Brindaram.
Se embriagaram.
Até se perder na euforia.
Seres fora de si.
Entregues ao prazer e a luxúria.
Da orgia, restara o gosto amargo. Pequenos flashes no lugar das lembranças – os estímulos acelerados, o som das garrafas, a extasia, as vistas midriáticas, as carícias sem pudor, trocadas em um ato de puro anseio. Ao lado uma garota. Nua. Dormia um sono tranquilo. O corpo exposto, os cabelos volumosos esparramados sobre a fronha de cetim.
Não existia espaço para arrependimentos. E no fundo, aquele era apenas um vazio que ele tentava preencher.
Pôs os pés no chão, um esforço para que não a despertasse.
Sentia o corpo pesar uma tonelada.
A cabeça doer.
Vestiu a calça deixada jogada em um canto qualquer.
A pose imóvel, como se pudesse resistir ao abraço, mas paralisado pela sensação inibiria que invadia seus sentidos.
— Já vai?
A voz macia abafada contra suas costas.
Os olhos fechados sentindo o calor do corpo, o perfume adocicado.
— Vou.
— Assim sem se despedir?
— Não queria te acordar — disse evitando o olhar carregado de um resquício de expectativa. — Desculpa.
Ela puxou o lençol como quem fecha uma porta.
Ele terminou de calçar os tênis, e se vestiu com a jaqueta.
Lá fora o reflexo da precariedade: céu cinza, nuvens carregadas; ruas enlameadas em estado deplorável em função das enchentes; olhares desconfiados, carros rebaixados nas calçadas; a ilusão em saquinhos plásticos passada de mão em mão.
Ao ser atravessado o intrincado conjunto de vielas, a batida na porta.
Renan destrancou a fechadura, com olhos atentos no movimento.
No sofá, Warley com um cigarro, ao lado dele, Preto com uma expressão séria e Douglas, boné baixo, mãos socada nos bolsos, estavam todos reunidos para uma tradicional disputa de carteado.
O bolo de notas, empilhadas uma sobre a outra, tornava a partida envolvente.
O olhar perspicaz de quem lê a expressão do oponente.
As cartas são embaralhadas e distribuídas por igual entre os participantes.
— Quem joga?
Renan olhou para Preto, ostentando a mesma confiança de sempre.
— Ultima chance. Se alguém quiser desistir... a hora é essa.
— Vai sonhando.
Rebateu Beto.
Ele estava apenas começando a jogar suas cartas.
Não era sobre dinheiro. Ganhar ou perder. Era sobre respeito. Confiança.
Uma à uma as cartas iam sendo viradas. Jogavam pelo mesmo motivo: provar algo que só o jogo de cartas poderia revelar.
A movimentação de notas continuou e o valor cresce, alimentando as expectativas.
Preto largou um par de valetes e puxou o monte acumulado.
As cartas foram reunidas e embaralhadas de novo para a próxima rodada.
Cada um recebeu uma nova mão.
O jogo foi reiniciado.
Beto foi logo se exaltando.
— Vão me desculpar, mas pelo que eu vejo, essa já era.
— Pra alguém prestes a perder, você fala demais — Warley cobriu a aposta.
— E quem disse que eu vou perder.
As cartas se revelavam aos poucos, acompanhadas de atenções medidas e expressões mascaradas.
A disputa era tensa.
Douglas, por outro lado, parecia não se intimidar.
O olhar apreensivo, sem perder nenhum lance.
A rodada estava em suas mãos.
Ele largou um trio de reis sobre a mesa.
— Parece que hoje a vitória resolveu trocar de lado.
Preto jogou as cartas na mesa com um jeito provocativo.
— Se preocupa não parceiro. Cedo ou tarde, o jogo vira de novo.
A jogada era reiniciada.
Douglas se mostrara um oponente a altura.
Lá pela terceira vitória consecutiva, Preto perdeu a pose.
— Isso já é pilantragem.
Acusou se levantando de maneira abrupta.
Ninguém concordou. Também não discordou.
Douglas retrucou.
— Pra mim isso é coisa de quem não sabe perder.
— O que eu quero entender é desde quando aprendeu a jogar desse jeito. Deve ter praticado um tempão, né não?
Respondeu Preto.
— Se vai afirmar que trapaceei, melhor fazer isso do jeito certo.
— Rapaziada menos. Tô pedindo com educação.
Disse Renan, reagindo rápido em por ordem na bagunça.
— Se vamos começar a discutir por qualquer besteira, daqui a pouco onde isso vai parar?
— Na moral, se for pra ficar de picuinha, melhor sair fora.
Warley se envolveu.
— Essa é exatamente a questão. Não é só um jogo. A questão aqui é a confiança. — concordou Renan. — Temos um código. Sem ele, não passamos de fracos. Sem confiança não existe nós. É cada um por si. Será que preciso lembrá-los? Alguém aqui insatisfeito com as regras?
Perguntou olhando o rosto de cada um.
— Ainda que isso venha a soar como insegurança, é natural que cada um queira expressar sua opinião. Vamos lá. Vai ser de que jeito? Discutir ou terminar a partida?
Preto desviou o olhar.
Douglas sentou de volta na cadeira.
— Que assim seja.
Os ânimos esfriaram.
A desavenças no grupo deu lugar a importância de reforçar o código.
A união e a estabilidade no núcleo e o cumprimento das regras. Fundamentais a eficácia das atividades ilícitas.