Capítulo dezessete

914 Words
As horas pareciam infindáveis. Como se a noite nunca fosse chegar ao fim. Garrafas de uísque pela metade. O ar carregado de perfume e promiscuidade. Não havia pressa. Não havia limites. Cada movimento. Cada palavra jogada no ar era apenas uma extensão do prazer. A bebedeira rolava solta. Descompromissada. Ao redor, as garotas orbitavam como mariposas sedentas. Flertando sem compromisso. Jogando palavras doces. Cada elogio era uma moeda de poder. E ele sabia usá-las bem. Sussurradas ao pé do ouvido — as mãos deslizando a pele morena. Brindaram. Se embriagaram. Até se perder na euforia. Seres fora de si. Entregues ao prazer e a luxúria. Da orgia, restara o gosto amargo. Pequenos flashes no lugar das lembranças – os estímulos acelerados, o som das garrafas, a extasia, as vistas midriáticas, as carícias sem pudor, trocadas em um ato de puro anseio. Ao lado uma garota. Nua. Dormia um sono tranquilo. O corpo exposto, os cabelos volumosos esparramados sobre a fronha de cetim. Não existia espaço para arrependimentos. E no fundo, aquele era apenas um vazio que ele tentava preencher. Pôs os pés no chão, um esforço para que não a despertasse. Sentia o corpo pesar uma tonelada. A cabeça doer. Vestiu a calça deixada jogada em um canto qualquer. A pose imóvel, como se pudesse resistir ao abraço, mas paralisado pela sensação inibiria que invadia seus sentidos. — Já vai? A voz macia abafada contra suas costas. Os olhos fechados sentindo o calor do corpo, o perfume adocicado. — Vou. — Assim sem se despedir? — Não queria te acordar — disse evitando o olhar carregado de um resquício de expectativa. — Desculpa. Ela puxou o lençol como quem fecha uma porta. Ele terminou de calçar os tênis, e se vestiu com a jaqueta. Lá fora o reflexo da precariedade: céu cinza, nuvens carregadas; ruas enlameadas em estado deplorável em função das enchentes; olhares desconfiados, carros rebaixados nas calçadas; a ilusão em saquinhos plásticos passada de mão em mão. Ao ser atravessado o intrincado conjunto de vielas, a batida na porta. Renan destrancou a fechadura, com olhos atentos no movimento. No sofá, Warley com um cigarro, ao lado dele, Preto com uma expressão séria e Douglas, boné baixo, mãos socada nos bolsos, estavam todos reunidos para uma tradicional disputa de carteado. O bolo de notas, empilhadas uma sobre a outra, tornava a partida envolvente. O olhar perspicaz de quem lê a expressão do oponente. As cartas são embaralhadas e distribuídas por igual entre os participantes. — Quem joga? Renan olhou para Preto, ostentando a mesma confiança de sempre. — Ultima chance. Se alguém quiser desistir... a hora é essa. — Vai sonhando. Rebateu Beto. Ele estava apenas começando a jogar suas cartas. Não era sobre dinheiro. Ganhar ou perder. Era sobre respeito. Confiança. Uma à uma as cartas iam sendo viradas. Jogavam pelo mesmo motivo: provar algo que só o jogo de cartas poderia revelar. A movimentação de notas continuou e o valor cresce, alimentando as expectativas. Preto largou um par de valetes e puxou o monte acumulado. As cartas foram reunidas e embaralhadas de novo para a próxima rodada. Cada um recebeu uma nova mão. O jogo foi reiniciado. Beto foi logo se exaltando. — Vão me desculpar, mas pelo que eu vejo, essa já era. — Pra alguém prestes a perder, você fala demais — Warley cobriu a aposta. — E quem disse que eu vou perder. As cartas se revelavam aos poucos, acompanhadas de atenções medidas e expressões mascaradas. A disputa era tensa. Douglas, por outro lado, parecia não se intimidar. O olhar apreensivo, sem perder nenhum lance. A rodada estava em suas mãos. Ele largou um trio de reis sobre a mesa. — Parece que hoje a vitória resolveu trocar de lado. Preto jogou as cartas na mesa com um jeito provocativo. — Se preocupa não parceiro. Cedo ou tarde, o jogo vira de novo. A jogada era reiniciada. Douglas se mostrara um oponente a altura. Lá pela terceira vitória consecutiva, Preto perdeu a pose. — Isso já é pilantragem. Acusou se levantando de maneira abrupta. Ninguém concordou. Também não discordou. Douglas retrucou. — Pra mim isso é coisa de quem não sabe perder. — O que eu quero entender é desde quando aprendeu a jogar desse jeito. Deve ter praticado um tempão, né não? Respondeu Preto. — Se vai afirmar que trapaceei, melhor fazer isso do jeito certo. — Rapaziada menos. Tô pedindo com educação. Disse Renan, reagindo rápido em por ordem na bagunça. — Se vamos começar a discutir por qualquer besteira, daqui a pouco onde isso vai parar? — Na moral, se for pra ficar de picuinha, melhor sair fora. Warley se envolveu. — Essa é exatamente a questão. Não é só um jogo. A questão aqui é a confiança. — concordou Renan. — Temos um código. Sem ele, não passamos de fracos. Sem confiança não existe nós. É cada um por si. Será que preciso lembrá-los? Alguém aqui insatisfeito com as regras? Perguntou olhando o rosto de cada um. — Ainda que isso venha a soar como insegurança, é natural que cada um queira expressar sua opinião. Vamos lá. Vai ser de que jeito? Discutir ou terminar a partida? Preto desviou o olhar. Douglas sentou de volta na cadeira. — Que assim seja. Os ânimos esfriaram. A desavenças no grupo deu lugar a importância de reforçar o código. A união e a estabilidade no núcleo e o cumprimento das regras. Fundamentais a eficácia das atividades ilícitas.
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