O caminhar apressado era movido por uma obrigação inevitável.
A cabeça estava ocupada demais. A fila de tarefas parecia interminável: resolver as últimas pendências da inscrição nos exames para seleção da faculdade, organizar o material de estudo, e ainda arranjar espaço para as tarefas de casa, era algo incomum.
Ela suspirou apreensiva e passou pela porta de vidro recebida pele gerente da lan house, com os cabelos platinados e fones de ouvido.
— Oi, e aí, Céu? Tudo na boa?
Ele se inclinou sobre o balcão.
— E em que posso ajudar a senhorita?
— Um milagre, pode ser?
— Bem que eu gostaria. A internet hoje tá cheia de teimosia. Se travar, reza — acrescentou.
Ela soltou uma risada nervosa e se acomodou em um dos lugares livres.
Sentiu o coração acelerar ao acessar o site. Campos de cadastro, perguntas intermináveis e a contagem regressiva para o prazo final: tudo parecia uma barreira colossal.
“Nome completo, CPF, RG...” digitava rapidamente, ignorando o tremor das mãos. Parou quando chegou na parte da renda familiar. O número o qual determinaria se ela teria direito à isenção da taxa de inscrição. Engoliu seco, conferindo os cálculos.
Deu um último clique e, ao ver a mensagem de confirmação na tela, soltou o ar que nem tinha percebido estar segurando. Um desabafo preso na garganta.
Selena saiu da lan house confiante de vencer uma batalha, ciente de que aquele era apenas o começo. Entendia que para o que queria enfrentar teria de ser firme, e, estava disposta a enfrentar qual quer que fosse o obstáculo que se colocasse entre ela e as conquistas.
A garoa fina caia e ela apertou o passo cortando caminho pela viela de terra batida que cortava por um terreno baldio. O ar exalava a mato recém-cortado, e o silêncio era interrompido apenas pelo canto vibrante e contínuo dos grilos ocultos nos arbustos. Imersa nos próprios pensamentos, ela organizava mentalmente o cronograma de estudos, quando um sibilar baixo e agudo, semelhante ao de um animal em apuros, a fez parar.
O ruído seguiu por toda a trilha, aumentando gradualmente até que ao se deparar com um amontoado de arbustos, encontrou um filhote preso em arame farpado. O pequeno animal, de pelo marrom claro manchado de lama, tremia, puxando a pata traseira ensanguentada.
Selena ajoelhou-se com cuidado, conservando a calma ao ver a profundidade das perfurações.
O arame estava enroscado e exigiu paciência e cuidado. Seus dedos, já acostumados a lidar com esse tipo de situação, trabalharam com habilidade. E depois de alguns minutos tensos, o filhote estava livre.
O sangramento no ferimento da pata foi envolvido com um pedaço de pano pego na mochila. Em seus braços, a criatura trêmula, aos poucos foi se aquietando.
— Sei que está doendo, mas vai melhorar, eu prometo — sussurrou acalmando a pequena criatura que se debatia. — Não posso te deixar assim nessa condição. Parece que vou ter que te levar comigo.
Sentindo pena do pobre animal, ela o levou para casa, improvisando uma cama com um cobertor velho. E com o pouco que tinha — água morna, sabão e gaze — limpou os ferimentos.
— É uma fêmea, certo? Nesse caso vou te chamar de Estrela. Combina com você.
A mascote, ou melhor “Estrela”, assentiu soltando um miado baixo.
— Quando amanhecer cuidamos desses ferimentos — disse ao apagar a luz.
Cuidar de animais não era uma reles tarefa. Ser médica veterinária, ajudar seres indefesos, era o projeto de vida.
Carregando a mascote nos braços, ela se encaminhou à clínica veterinária. Os cuidados que havia prestado em casa era apenas paliativo, e por isso, o pequeno ser ainda se contorcia de dores no local das feridas.
A clínica ficava no bairro vizinho, a cerca de vinte minutos de caminhada. Era um ambiente modesto, com paredes desbotadas e uma placa meio gasta onde se lia em letras grandes: CLÍNICA VETERINÁRIA. Apesar da aparência modesta, ela já tinha ouvido boas recomendações sobre o lugar.
Assim que entrou, a recepcionista, uma ruiva discreta de salto alto, examinou o animal com um olhar terno e saindo da sala, informou o veterinário.
Poucos minutos depois, um homem experiente, de jaleco branco e expressão concentrada, apareceu na recepção.
— Bom dia, doutor — disse Selena. — Encontrei esse animal ferido ontem em um terreno perto de casa. E queria saber se poderiam me ajudar.
— Claro. Vamos ver esses ferimentos. Me acompanhe — o doutor apontou.
Selena o seguiu até uma sala pequena, onde Estrela fora examinada com um maior cuidado. O veterinário, com luvas e máscara, avaliou a paciente em uma maca de inox. O exame físico revela taquicardia leve e mucosas pálidas. Os ferimentos principais são lacerações profundas; uma na região do flanco esquerdo, com aproximadamente 7 centímetros, e outra na coxa direita, provavelmente causadas por uma mordida ou objeto cortante. Felizmente, não parecendo haver fraturas expostas ou hemorragia ativa, o que poderia aumentar o risco de contaminação.
O doutor deu início aos procedimento veterinário aplicando um sedativo para manejo da dor e fazer a tricotomia e antissepsia rigorosas. Os ferimentos haviam sido graves, sendo necessário o desbridamento para remover todo o tecido desvitalizado e, em seguida, uma sutura em plano, provavelmente utilizando um monofilamento absorvível internamente e pontos simples separados com nylon para a pele. Dada a natureza contaminada das lesões, fora sugerido administrar um ciclo de antibiótico de amplo espectro, como Cefalexina ou Amoxicilina com Clavulanato, para prevenir infecções.
Selena mordia o lábio inferior. A preocupação com o valor subia. Pensava se o que tinha era capaz de cobrir as despesas do tratamento, incluindo os custos com a anestesia, a intervenção e o valor dos medicamentos. As prioridades, entretanto, eram com a recuperação da mascote, os cuidados nos próximos dias e se conseguiria arcar com responsabilidades extras em conjunto com os estudos para os testes.
Depois da consulta, deu uma passada rápida em uma pequena loja de ração. A quantidade e variedade de pacotes colorindo as prateleiras eram tantas que a inalação prolongada daquele aroma por muito pouco não a fez sentir enjoo.
Andava desimpedida analisando as opções pelos corredores quando a atendente simpática, lhe perguntou se ela procurava por algo para a mascote.
— Posso ajudar?
— Pode, pode sim. Vocês tem ração?
— Alguma preferência especial?
— Felino... filhote — completou ela.
— Temos ótimas opções para o seu felino ainda filhote. Estão nessa prateleira.
Apontou a garota fazendo um balanço comparativo entre a marca líder do mercado e outra de baixo custo.
— Essa por exemplo, ajuda na nutrição, e se quiser pode misturar com um pouco de água morna para facilitar a ingestão. Essa outra é praticamente a mesma, com o benefício de que o custo está pela metade do preço. Qual das opções você escolhe?
— Pode embrulhar as duas.
— Excelente escolha! Pagar no débito ou crédito?
— Débito.
A atendente pegou o cartão e ensacou a compra para facilitar o transporte.
Selena agradeceu, pegou as sacolas e saiu da loja com o pequeno felino adormecido em seu colo.