Capítulo dois - 2:2

1226 Words
Enquanto ajustava a bolsa para garantir que o animal estivesse confortável, ouviu as vozes familiares das amigas — Nicole, Manu, e Íris — reunidas juntas. — O que tá carregando aí? — perguntou Íris sempre a curiosa ao notar o volume. Selena abriu cuidadosamente a bolsa exibindo o conteúdo vivo as três. — Minha mascote. Encontrei ferida ontem e levei ao veterinário hoje cedo. — E como se sente cuidando dela? — perguntou Nicole. — Cuidar dela me fez ter certeza daquilo que eu quero. Motivo tem de sobra. Expressou Selena determinada. Manu, como o de costume, liderava a discussão: — Particularmente, escolheria algo prático. Como Gestão Empresarial ou Logística. — Ou enfermagem. Legal ajudar as pessoas. Reforçou Íris. O debate ganhava corpo até que Renato, sorriso no rosto, postura debochada, e Edu apareceram. — Meninas! Então, o que estão discutindo? — Sobre o futuro — defendeu Manu. — Que profundo! Mas discussões à parte. Por que se preocupar com o futuro, quando se pode curtir o presente? — ele respondeu cheio de poesia. Íris pigarreou a garganta retornando ao foco. — E você Nicole? Já se decidiu ou também anda meio na dúvida como a maioria? — Lembrei que deixei o fogão ligado — disse ela causando estranheza geral ao se mostrar visivelmente desconfortável – sobretudo com a presença do namorado, Renato. Edu, sempre debochado, brincou pesando os ombros do amigo. — Foi m*l parceiro! Parece que alguém não ficou muito feliz em te ver. — Cala boca! Renato revirou os olhos forçado a engolir o desaforo. — O que acham? Devíamos ir atrás dela? Alguém disposto? — sugeriu Selena preocupada com a situação da amiga. — Bom, se ninguém se habilita, tudo bem, eu me encarrego. Renato deu um passo a frente. — Deixa. O problema é comigo. Eu me resolvo com ela. Afirmou ele em abandono da posição para ir atrás de Nicole. Era difícil precisar o que realmente acontecera entre eles. Podia ser um desentendimento sem solução, desses que raramente deixaria cicatrizes, ou quem sabe, um daqueles em que oficialmente nunca se chega a uma conciliação definitiva. Por ora, havia outras pendências a espera. E consciente disso, Selena abriu o caderno com as anotações sobre a escrivaninha. Ainda tinha incontáveis páginas de anotações para revisar. Lembrando-se de antes dos estudos, passar pelo canto da sala para verificar a pequena mascote, que ao vê-la soltou um miado desesperado. — Já estou indo. Espera — bufou ela indo buscar o pote de remédios. Após receber a medicação indicada pelo veterinário, Estrela repousava tranquila sobre a cama, alheia ao esforço da dona. Perdida, entre livros espalhados pela escrivaninha, no aprendizado profundo e desgastante: o grafite do lápis riscava o papel, fórmulas, gráficos, teorias. Fazia anotações, rabiscava cálculos, voltava algumas páginas para conferir um detalhe, para, reflete, refaz um cálculo, enquanto lá fora o tempo segue inalterado. A mãe e o padrasto discutiam novamente. Selena fechou o caderno com um suspiro frustrado. Não era apenas a sensação sufocante do quarto — o que realmente a tirava do sério eram as vozes vinda da sala que atravessavam o concreto até seus ouvidos. Decidida a fugir de vez do barulho, carregado de insultos ásperos que atravessavam as paredes, ela juntou os livros e abandonou o quarto. A primeira lufada de ar fresco foi um alívio imediato. O vento dissipava a tensão acumulada, enquanto ela caminhava sem rumo definido. Depois de alguns minutos, encontrou um refúgio no parque, um canto discreto entre as árvores. Sentou-se na grama e debaixo da sombra frondosa projetada por uma das árvores, ajeitou os livros no colo e mergulhou nas páginas, tornando a se perder nos números e fórmulas. O som sutil e transitório das folhas virando fundia-se a quietude daquela tarde ensolarada, até que uma chegada não prevista, a tirou da imersão. Era Júlia, uma colega do cursinho de informática, com quem sustentava uma relação casual. — Amiga! Coincidência boa. Também costumo vir aqui recarregar as energias. Selena respondeu recuperando a compostura. — É, esse parece mesmo um bom lugar. Júlia largou a mochila no chão e se sentou no gramado, puxando um caderno. — Revisando o quê? — Só o básico. Movimento circular, aceleração centrípeta... Preciso entender parte desses exercícios até os exames. — Física nunca foi muito meu forte — Julia torceu o nariz. — Tem horas que o melhor é se distanciar do plano físico, se conectar com seu eu interior. — Difícil me conectar com meu “eu interior” quando ele se encontra preso num “referencial inercial”. Selena largou o lápis sobre as anotações. O vento soprando as páginas dispensas do livro aberto. — Me pergunto se quando olhar pra trás, daqui uns anos, terei uma melhor perspectiva ou se consequentemente as coisas estarão da mesma forma. Júlia debateu. — Se não me engano tem um provérbio que diz: “O que nos move são os desafios” ou “A vida é um constante desafio”. Resta saber o que nos impulsiona a seguir em frente. — No meu caso, conquistar meu espaço, ser independente. Nada complicado — assinalou Selena. — E no seu? O que te faz seguir em frente? — Pra começar já seria gratificante não ser enquadrada como a maioria. Prefiro as incertezas. Ir além das expectativas. Uma suave brisa balança as folhas dos galhos altos. Júlia fechou o caderno, deixando o lápis descansar sobre a capa, e se recostou contra o tronco da árvore, sentindo o frescor da sombra. — Podíamos se ver no fim de semana, fugir da rotina. — Gostei. Me passa seu número. Selena pegou o celular e começou a anotar número. E com o visor ainda aceso, aproveitou para dar uma espiada nas mensagens que chegaram enquanto o aparelho permanecia no modo silencioso. Novas mensagens: Uma não lida. André Luiz: “Vai rolar uma reunião de família no sábado aqui em casa. Pensei em te chamar.” Dizia a mensagem sinalizada como de André Luiz. Sem encontrar outra maneira, Selena digitou: Selena: “Adoraria, mas ando meio enrolada no momento.” André Luiz leu a mensagem e no mesmo instante começou a teclar. André Luiz: “Mergulhada nos livros?” Selena: “Pode se dizer que sim. Você não?” André Luiz: “Estaria mentindo se dissesse que não. Esse é o último chamado para aqueles que desejam conquistar a liberdade. Por outro lado, se vive apenas uma vez.” Selena: “Com um argumento desse, impossível não concordar. Assim mesmo eu passo.” André Luiz: “A escolha é sua. Se precisar de al coisa, já sabe, me avisa. Se cuida Céu.” Selena: “Idem.” Selena bloqueou a tela e enfiou o celular de volta na mochila. — Com quem estava falando? — assuntou Júlia. — O André. Ele me chamou para uma reunião de família na casa dele no sábado. — Aquele do condomínio? — Ele próprio. — E o que disse a ele? — Que não podia. — E porque não? — Por que acabamos de combinar de sair juntas, ia estragar a diversão. Júlia analisou em silêncio, apresentando uma maneira prática de intermediar na discussão. — Por que não fazemos assim? Inventa qualquer desculpa, diz que pensou direito. E ai remarcamos para o domingo ou na outra semana. Oportunidade é o que não vai faltar — adicionou demostrando compreensão.
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