A menor de seis anos, Sofia, dormia com um urso de pelúcia desgastado nos braços, e o maior, Leonardo de nove, ocupava metade da cama com cadernos espalhados. O menino andava quebrando a cabeça para aprender os problemas de matemática, e o pai superprotetor, prometera a si mesmo desde a semana passada que o ajudaria.
A viagem até a construtora era longa e atravessava a metrópole adormecida. No caminho, uma rápida revisão mental dos desafios do dia: a entrega do pavimento no prazo, os ajustes na instalação elétrica, e, lidar com os operários que ora admiravam sua postura calma, ora a testava.
O barulho frequente de martelos e serras já compunha a sinfonia do trabalho. Ele vestiu o capacete branco de supervisor e cumprimentou cada equipe com um aceno firme.
Entre as cobranças e as orientações, reservava um tempo para ouvir os operários, dos quais as famílias dependiam daquele trabalho tanto quanto a dele.
Às 18:00 em ponto, com o turno encerrado, era hora de se dirigir à sala da diretoria para atualizar relatórios. Sentado à frente do computador, sentiu um cansaço diferente, profundo. Por vezes, perguntava-se se sua rotina seria essa até o fim: trabalho, contas a pagar e uma família a sustentar. Mas ele afastava esses pensamentos, focando-se em algo que dizia para si mesmo: “Não é sobre grandes feitos, mas sobre manter tudo em pé.”
De volta ao lar, já esperava pela recepção de costume: Sofia corria para o seu abraço, Leonardo o cumprimentava com um sorriso meio tímido sem largar as revistinhas de super-heróis. Amanda preparava o jantar e o beijava com o carinho de quem compreendia o que ele enfrentava todos os dias.
Durante a refeição, ouvir os filhos contarem suas pequenas aventuras da escola, era um momento genuíno de pura felicidade. Já planejando com antecedência sentar-se com Léo depois do jantar para ajudá-lo a aprender a resolver problemas de matemática.
Mas algo lhe dizia que aquela noite seria mais inquietante que o normal.
Sentia a diferença no ar. O estômago doía sem razão, um ligeiro desconforto na região da clavícula o incomodava, um torcicolo...
Não havia o habitual abraço de Sofia ou o sorriso tímido de Leonardo. E juntamente a esse fato incomum, Amanda não estava na cozinha ou na sala, esperando por ele com um beijo apaixonado.
Ele chamou pelo nome da esposa. Primeiro baixo, depois alto. As crianças estavam no quarto, mas a porta fechada. Ele estava certo. Algo de anormal estava acontecendo.
Estranhando o fato, ele caminhou desesperado pelo corredor, até encontrar Amanda na varanda.
— Querida... Aman...
Jair parou na porta ofegante.
— Que susto, amor! Me deixou preocupado.
Ela estava de costas, encarando o vazio como se esperasse que o vento levasse embora alguma dor.
— Meu irmão — dissera com a voz rouca.
A expressão seria no rosto; as mãos firmes na grade de proteção da varanda.
O cunhado não era um homem fácil. Vivia entre empregos temporários, amigos questionáveis e problemas com a polícia por pequenos delitos.
— O que tem ele? Já sei, se envolveu em outra briga no bar — insistiu.
Amanda virou-se lentamente. Seu rosto estava irreconhecível, pálido.
— Ele foi preso hoje à tarde.
— Preso? — repetiu aturdido.
— É, preso... Por tirar a vida de uma pessoa.
As palavras pesaram como chumbo. Jair ficou em choque, processando o que acabara de ouvir. Não era um furto ou uma briga de bar qualquer, aquilo era algo incomparavelmente sério... Muito mais técnico.
— O advogado de defesa ligou uma hora atrás. Um corpo foi encontrado. Segundo o que as testemunhas relataram, dois dias antes o viram discutir com o cara. A arma do crime ainda estava com ele quando o pegaram.
Jair arfou pesado.
Eles nunca tiveram uma relação próxima, e mesmo com todos os erros que ele cometia, sabia o quanto a esposa se importava com o irmão.
— Querida, olha pra mim — ele segurou o queixo de Amanda, tentando trazer algum conforto. — Isso é sério, mas a gente vai descobrir o que fazer. Já falou com a Maristela? Alguém sabe como ele tá?
Amanda balançou a cabeça negativamente.
— Preso. A Mari arrasada coitada, e eu... eu não consigo parar de pensar. Ele sempre foi impulsivo, mas... matar alguém? Supera todos os limites.
— Vai ser difícil, mas não precisa carregar esse fardo sozinha — Jair a abraçou fazendo o papel da fortaleza do casal. — Vamos dar um jeito.
Por dentro, porém, começava a se preocupar com o impacto que isso traria a família. O nome do cunhado sempre fora motivo de comentários, mas essa era uma situação completamente diferente.
No trabalho, era difícil manter a postura. Na reunião matinal com os operários, tinha a voz baixa, e os olhos, normalmente atentos, estavam cansados. Ele se esforçava para coordenar as equipes, mas até mesmo os detalhes simples lhe escapavam.
— Que cara essa, Jair? — perguntou um dos colegas, enquanto ajustava o cronograma da entrega. — Se precisar de um analgésico, tenho uns guardado no meu armário.
Jair suspirou, balançando a cabeça.
— Sabe o que é, Pasqual, é que as coisas andam meio complicadas em casa.
— Se quiser desabafar com alguém, sabe que eu tô aqui pra isso. — o colega olhou pra ele com a paciência de quem já havia enfrentado muitos dias daqueles ao longo de sua história.
— O irmão da minha mulher foi preso. E não foi por pouca besteira... A situação foi grave.
— É? — o colega arregalou os olhos.
— Se eu tô falando. Deu polícia e tudo — contou Jair.
— Sei o que o está passando, meu amigo. Sei bem! — disse o colega compreensivo com um tapinha de leve nas costas.
A conversa trouxe um breve alívio, mas por dentro a preocupação ainda o consumia.
Amanda m*l conseguia se concentrar em qualquer coisa que não fosse a condição do irmão preso. Passava horas no telefone, buscando informações e tentando entender os passos da justiça.
— A investigação definiu o crime como homicídio qualificado — contou ela em observação sobre o processo em andamento. — O advogado disse que a pena pode variar de vinte a trinta anos.
Jair levou as mãos atrás da nuca.
— E o Warley?
A esposa fez uma pausa antes de responder.
— Não fala muito, mas dá pra ver que ficou mexido. Ainda que nunca tenha mostrado isso, ele e o Vitor sempre foram muito ligado.
Crescido sem muitas regras e acostumado a ver a impulsividade de Vitor, O filho, era um reflexo distorcido do próprio pai. Com uma preocupante tendência para se envolver em confusões. Ele já havia escapado por pouco de problemas maiores no passado.
As crianças já estavam dormindo, mas a tensão ainda não tinha se dissipado.
— Tô preocupada com ele.
— Com quem?
— O Warley — expressou Amanda, com a voz baixa e contida. — Você sabe, ele sempre foi igual o Vitor. A mesma criação difícil. O mesmo temperamento. Ele é como o pai. Tenho medo de que ele faça alguma besteira.
Jair inclinou-se na poltrona, esfregando a testa com as mãos. Amanda estava certa. Warley era um jovem com potencial facilmente influenciável.
— O que quer que eu faça? — perguntou ele em forma de um desabafo. — Falar com aquele moleque, é o mesmo que gastar saliva a toa.
Amanda apoiou a mão embaixo do maxilar, o olhar decidido.
— Arruma alguma coisa pra ele fazer na construtora. Não falou que iam abrir vagas?
— É uma ideia... — murmurou ele, ainda ponderando os prós e contras. — Será que ele iria topar?
O marido ficou pensando encucado.
Havia ouvido rumores de que a empresa estava expandindo e precisaria de novos ajudantes gerais. O trabalho era duro, mas honesto, e poderia ser exatamente o que Warley precisava.
Quando o procurou, Warley estava no quintal sentado com o olhar perdido, afinando sem propósito uma vareta de madeira com uma faca.
— Posso falar contigo?
— Fala — a resposta veio sem entusiasmo, mas Jair já estava acostumado com toda aquela rebeldia.
Ele improvisou uma cadeira com um bloco de construção e sentou-se, olhando diretamente no rosto do sobrinho.
— Ouvi falar que a construtora onde eu trabalho vai abrir umas vagas. Pensei que talvez quisesse arriscar.
Warley ergueu o olhar, a surpresa rapidamente sendo substituída por uma expressão cética.
— Eu? Trabalhar em obra?
— É você. Não quer crescer? Ser alguém? O trabalho é pesado sim, mas honesto. E vai te dar uma chance de aprender alguma coisa útil, ter uma orientação, ganhar o seu dinheiro.
Warley bufou, largando a vareta e a faca no chão.
— E eles vão querer um moleque que nem eu lá?
— Vão querer se se esforçar — falou o tio com firmeza.
O jovem cruzou os braços, pensando por um momento. Sua mãe estava preocupada e sua situação em casa estava longe de ser boa. Talvez fosse hora de tentar fazer algo que pra variar desce algum lucro.
No expediente, Jair foi ao escritório da construtora e usou de toda sua influência e própria reputação para garantir que o rapaz tivesse uma chance. Apesar de entender que o sobrinho pouco tivesse algum interesse, era provável que Warley teria uma oportunidade palpável.