Adelson
Se eu era religioso? Claro que não.
Eu e Deus nunca tivemos uma boa relação. Eu já tinha mandado muita gente pro cara lá debaixo, e, se formos ser sinceros, acho que já fiz muitos favores pro d***o pra Deus querer ser meu amigo.
Mesmo assim, levei Bruna na igreja.
Ela usava um véu longo, levemente fechado, e, mesmo sendo de noite, colocava óculos escuros. Assim, não corria o risco de alguém reconhecê-la.
Eu sabia que Deus e eu não éramos próximos, mas, por ela, eu faria qualquer coisa. Até entrar em um lugar onde, pra mim, as portas deviam estar sempre fechadas. Assim deixei Bruna sentada no banco, ao lado da esposa do padre Jarbas. Ali, eu sabia que ela ficaria bem. O padre era um dos seus salvadores, alguém em quem eu confiava, mesmo que eu não confiasse em quase ninguém.
Fiquei esperando lá fora, dentro do carro, de onde podia vigiar tudo. Mas, então, eu a vi, a mãe dela, a mãe da minha pequena.
Ela entrou na igreja devagar, como se carregasse um peso nas costas. Vi quando se sentou em um dos bancos mais atrás, assistindo à missa em silêncio, com o rosto baixo, como se não quisesse ser notada.
A mãe dela não a reconheceria, eu tinha certeza disso. Os anos tinham mudado Bruna demais. Ela não era mais aquela garotinha que um dia, talvez, essa mulher tenha conhecido. Agora, era uma mulher e carregava as marcas do tempo perdido, da dor e do sofrimento que um monstro causou. Mesmo acreditando que nada sairia do controle, ainda assim, eu não consegui relaxar.
Mesmo com essa certeza, o instinto não me deixou em paz. Saí do carro e fiquei encostado ali, braços cruzados, o corpo em alerta, pronto pra qualquer coisa. Meus olhos não desgrudavam dela. A mulher continuava, com a cabeça baixa, como se quisesse desaparecer. Mas eu via. Eu via tudo.
O que eu mais queria, no fundo, era saber a verdade. Será que ela sabia? Será que aquela mulher sabia do bunker? Sabia que a própria filha tinha sido mantida presa por tanto tempo, em um buraco sem luz, sem ar, sem liberdade?
Essa dúvida me consumia, mais do que eu podia admitir. Porque, se ela soubesse, se fosse cúmplice, mesmo que em silêncio, eu não hesitaria. Não importava o que ela fosse para Bruna. Se tivesse culpa, eu acabaria com ela sem pensar duas vezes.
Mas o problema era o padre. O padre Jarbas já tinha quebrado o segredo do confessionário uma vez pra salvar Bruna, e eu sabia que ele não faria isso de novo. Ele carregava o peso da própria consciência, e não cruzaria essa linha outra vez, não importava o quanto eu quisesse que ele falasse. Eu não precisava ouvir as palavras dele pra saber, eu só precisava observar.
E, ali assistindo àquela mulher de longe, eu tentava decifrar cada movimento dela, cada expressão, cada pequeno gesto.
Ela parecia desconfortável, inquieta, como se estivesse tentando fugir de alguma culpa que a corroía por dentro. Eu soube que de alguma forma ela era culpada , eu só precisava ter certeza , e eu a faria se arrepender
O problema era que eu não acreditava em arrependimento fácil. Gente que fecha os olhos pra dor de uma criança não merece perdão.Se ela soubesse de tudo e não tivesse feito nada… que Deus tivesse piedade dela. Porque eu não teria.
***
A missa
Eu escutava a voz do padre, escutava sim, as palavras se espalhando pelo espaço, mas nada realmente entrava na minha cabeça. Cada frase parecia distante, vazia, como se o som chegasse aos meus ouvidos e morresse ali mesmo, sem significado, porque minha mente só estava em Bruna e nada mais.
Uma hora depois, a missa acabou, e fui buscar minha pequena, ela voltaria para casa comigo, sempre voltaria.
Vi quando ela abraçou Lavínia com aquele carinho tímido, ela era tão inocente, tão boa. Depois, se aproximou do padre e pediu a bênção com respeito.
Me aproximei, estendi a mão para o padre e cumprimentei.
— Devia ter assistido à missa, filho. — Ele disse, olhando nos meus olhos com aquela calma, eu não sabia como um homem, mesmo sendo padre, podia ser tão bom, não entendia mesmo.
— Eu e Deus não temos muita afinidade, padre. — Respondi
— Ainda é tempo... — Ele rebateu, com aquela fé inabalável que parecia desafiar até o próprio destino.
Acabei soltando uma risada curta, sem humor. — Acho que não é, padre.
Escoltei Bruna para fora da igreja, andando devagar, atento a cada passo dela. Mas, de repente, senti quando ela parou.
O olhar dela baixou, e, no mesmo instante, eu soube… Ela tinha visto a mãe. E, pelo jeito que seu corpo enrijeceu, acho que a reconheceu.
— Vamos, minha pequena — falei, tentando manter a voz firme e calma, mesmo com o alarme disparando dentro de mim. — Não para, ou a gente vai ter problema, e a polícia vai acabar aparecendo.
Ela não respondeu, apenas caminhou em silêncio, se agarrando à minha camisa com tanta força que os dedos ficaram brancos, como se o medo fosse escapar pelo toque.
— Tá tudo bem — sussurrei, puxando-a com cuidado, sem querer forçar, mas precisando tirá-la dali rápido.
— Promete que não vai me mandar morar com ela? — A voz dela saiu baixa, quebrada, carregada de um medo tão profundo que parecia cavar um buraco no meu peito.__ Promete, quero ficar só com você.
— Prometo, sempre comigo.
Fomos até o carro em silêncio. Ela entrou rápido, encolhida no canto do banco, os olhos vazios, distantes, olhando pro nada.
Eu a puxei pro meu colo, liguei o ar-condicionado. Fiquei ali, alisando o cabelo dela, sentindo o tremor que, aos poucos, começou a diminuir.
— Ela sabia sobre o bunker, não sabia? — Pergunte..
— Não sei... Às vezes, acho que sim… Mas nunca a vi lá dentro, mas..__ Ela se calou.
O silêncio se instalou de novo. Ela continuou agarrada em mim, os dedos apertando minha camisa com tanta força que parecia se agarrar à própria vida.
Eu fiquei ali, sem dizer nada, segurando ela, sentindo o peso daquela dor que ela carregava, uma dor que nem deveria existir em alguém tão pequena, tão doce e boa.
Só dei partida no carro quando senti que ela finalmente se acalmou, quando o corpo dela relaxou um pouco contra o meu peito.
Naquele momento, eu soube. O medo de Bruna não era só de ser deixada sozinha.
Minha pequena tinha medo de que eu a deixasse voltar pra casa… Pra casa da mãe.
Mas isso nunca ia acontecer. Nunca.
O lar dela era comigo. Era nos meus braços que ela encontraria segurança, e ninguém jamais tocaria nela de novo. Eu sabia que, por dentro, ela carregava um pavor silencioso, aquele medo que se arrasta no escuro, que sufoca, que faz a alma se encolher.
E eu não ia deixar.
Eu estava dedicando tudo pra deixar o morro melhor. Não perfeito, mas seguro. O meu morro seria a fortaleza dela, o abrigo que ninguém conseguiria atravessar, o lugar onde ela finalmente pudesse sentir que o perigo tinha ficado no passado.
O resto? A gente resolveria depois.
Cada documento, cada problema com a polícia, cada fantasma que ainda pairasse no ar… Eu daria um jeito.
Porque, no fim das contas, nada mais importava além dela. E, enquanto eu respirasse, Bruna nunca mais ia sentir medo de ser deixada sozinha.