Capítulo 2. Ecos do Passado

2542 Words
O sorriso no espelho se manteve por alguns segundos. Imóvel. Frio. Elena não conseguia se mover. A imagem refletida era o rosto de sua mãe, mas havia algo errado no olhar, algo vazio, como se a alma tivesse ficado presa do outro lado do vidro. De repente, o reflexo se distorceu. A boca de Margaret se abriu devagar, mas o som que saiu não era humano. Um sussurro grave, vindo de dentro do espelho: — Você já sabe quem ela é. Elena cambaleou para trás, derrubando o diário de Sarah no chão. O impacto fez o espelho rachar ainda mais, espalhando o som de vidro quebrando pelo quarto. As luzes piscaram. Por um instante, o reflexo sumiu. Depois voltou — agora mostrando apenas Elena, sozinha. A respiração dela era rápida, irregular. O quarto parecia menor, o ar mais espesso. As sombras vibravam nas paredes, alongando-se como se estivessem vivas. Ela se abaixou e pegou o diário. As páginas haviam se aberto sozinhas, e o vento que não existia as folheava lentamente até parar em uma anotação manchada de tinta e tempo. No alto da página, em letras trêmulas, lia-se: “Espelho dos Presságios.” Elena sentou no chão. A ponta dos dedos tremia quando tocou o papel. A letra era de Sarah — reconheceria em qualquer lugar. Mas havia algo mais ali: traços recentes, sobrepostos, como se alguém tivesse continuado a escrita depois da morte dela. Leu em voz baixa: — “O espelho não mostra o futuro. Ele o molda. Cada olhar é uma escolha. Cada reflexo, uma porta.” O coração acelerou. Ela passou os dedos pelas linhas seguintes, borradas e quase ilegíveis: “O que está do outro lado já nos conhece. O que olha de volta quer sair.” Um estalo alto ecoou pelo teto. O espelho rachado vibrou. Elena ergueu o olhar — a superfície quebrada refletia agora uma forma indistinta, algo movendo-se dentro do vidro, como se houvesse profundidade ali. Um vulto escuro, feminino, surgia e desaparecia entre as fendas, tentando atravessar. Elena fechou o diário com força. O som do impacto quebrou o encanto. O vulto sumiu. Mas a rachadura central do espelho continuou a pulsar, como se respirasse. Ela se levantou, trêmula. O quarto parecia escutar. De algum lugar da casa, o relógio marcou três e quarenta e três — de novo. O mesmo horário. O mesmo ciclo. Desceu as escadas devagar, com o diário contra o peito. Precisava mostrar aquilo à mãe. Precisava entender. Mas quando chegou ao andar de baixo, a casa estava escura. A lareira apagada, o chá frio sobre a mesa, e nenhum sinal de Margaret. Somente o tique-taque do relógio da parede — lento, irregular. E, misturado a ele, outro som. Um sussurro contínuo, quase como uma prece. Elena seguiu o som até o corredor. A voz vinha da biblioteca. Empurrou a porta. Margaret estava ajoelhada diante da lareira apagada, os olhos fechados, murmurando palavras em uma língua que Elena não conhecia. Ao redor dela, símbolos desenhados com carvão. O mesmo círculo dos Willon. Mas havia algo diferente — no centro, o símbolo agora tinha um olho aberto, igual ao que Elena vira no espelho. — Mãe? — chamou. Margaret não respondeu. Continuou o cântico, cada vez mais alto, mais rápido. O ar da sala pareceu mudar — mais frio, mais pesado. As velas se acenderam sozinhas, uma a uma. Elena deu um passo à frente. — Mãe, o que está fazendo?! Margaret abriu os olhos. Por um segundo, estavam brancos. Depois voltaram ao normal. O silêncio caiu, seco, cortante. Ela se levantou devagar, o rosto pálido. — Você leu o diário. Elena hesitou. — Eu precisava entender. — Sarah tentou usar o espelho — disse a mãe, com voz rouca. — Acreditava que podia prever o destino e mudá-lo. Mas o espelho não mostra o futuro. Ele o cria. Margaret se aproximou, os olhos marejados. — Cada vez que ela o usava, abria uma f***a. E o que estava do outro lado começou a ver por nós. Elena engoliu em seco. — A Mulher de Preto? Margaret assentiu, quase imperceptivelmente. — Ela não é um espírito. É um reflexo corrompido. Tudo o que fomos, o que tememos, o que tentamos esconder… se tornou ela. Elena olhou para o símbolo no chão. — E agora? — Agora, ela quer atravessar. A voz da mãe falhou. — E só pode fazer isso através de uma de nós. Um trovão estourou lá fora. As janelas tremeram. O fogo das velas oscilou. Elena deu um passo atrás. — Você sabia… você sabia o tempo todo… Margaret não respondeu. O olhar dela se desviou para o espelho pendurado sobre a lareira — o único da casa que nunca fora coberto. O vidro estava embaçado. E, lentamente, uma forma feminina começou a se delinear no reflexo. Elena sentiu o ar sumir. — Mãe… Margaret ergueu a mão, como quem tenta contê-la. Mas o espelho vibrou. As velas se apagaram de uma vez. E a voz voltou — agora vinda de dentro do vidro, grave e suave: — O sangue chama o sangue. Elena correu até o espelho e o cobriu com o diário. Mas o vidro queimava por baixo, quente como ferro. O símbolo do olho se acendeu em vermelho. E as páginas do diário começaram a virar sozinhas, uma a uma, até parar em uma folha em branco. Nela, letras se formaram, lentas, tortas, como escritas por uma mão invisível: “A próxima f***a se abre à noite. No espelho do sótão.” O vento soprou pelas frestas da casa, fazendo as cortinas dançarem. Margaret agarrou o braço da filha com força. — Você não vai subir lá. Elena a encarou, os olhos marejados. — Se eu não for, ela vem até nós. Margaret hesitou. O medo estampado no rosto era o mesmo que Elena sentira na cela. Mas havia algo mais: resignação. A mãe soltou o braço dela. — Então vá. Mas lembre-se: o que o espelho mostra… pode não voltar a ser apenas visão. Elena respirou fundo. Subiu as escadas. A madeira gemia a cada passo, e a escuridão parecia mais viva, mais próxima. Quando chegou ao sótão, a porta estava entreaberta. Lá dentro, o ar era frio, úmido, quase irrespirável. O espelho enorme ocupava a parede do fundo, coberto por um lençol branco que se movia levemente com o vento. Ela avançou. O chão rangeu sob seus pés. Cada passo era acompanhado de um som distante — um eco baixo, como um murmúrio em outra sala. Ao tocar o pano, o ar pareceu parar. O silêncio foi absoluto. Elena puxou o lençol. O espelho dos presságios revelou-se. Antigo. Ouro escurecido, moldura coberta de símbolos gravados. E dentro dele, a escuridão. Não refletia nada — nem o rosto dela, nem o quarto. Apenas um vazio n***o, profundo, como um buraco no tempo. Elena se aproximou, hipnotizada. Podia ouvir o próprio coração, lento, ritmado. E entre as batidas, um som baixo, quase um sussurro vindo de dentro do espelho: — Elena… O ar gelou. A superfície começou a ondular, como água. E então, uma mão surgiu. Pálida. Fina. Saindo do vidro. Elena recuou, mas a mão a agarrou pelo pulso — o mesmo marcado pelas algemas. O toque era frio como ferro. O espelho brilhou com luz branca, cortante. E, por um instante, Elena viu dentro dele: Um campo aberto. Uma casa queimada. E uma mulher de preto caminhando entre as cinzas. A visão se partiu. O espelho explodiu em fragmentos. O impacto lançou Elena contra a parede. Caiu no chão, atordoada, o diário aberto ao lado. No meio das páginas rasgadas, uma frase recém-escrita tremeluzia: “Ela está livre.” O vento cessou. O som sumiu. E na superfície dos cacos do espelho espalhados pelo chão, o reflexo de Elena não se movia. O reflexo sorriu. O sorriso refletido durou mais tempo do que devia. Imóvel. Deliberado. Elena ficou paralisada diante dos cacos espalhados pelo chão, tentando entender se ainda via ou apenas imaginava. O reflexo dela piscou — uma piscada que não acompanhou seu próprio movimento. O frio atravessou a espinha. Os pedaços de vidro começaram a ranger, deslizando levemente pelo assoalho, como se uma força invisível os arrastasse. Eles se reuniram aos poucos, formando um círculo imperfeito diante dela. No centro, o símbolo dos Willon — traçado em sangue. Elena recuou até encostar na parede. O diário ainda estava aberto, as páginas virando devagar, movidas por um vento inexistente. Palavras começaram a surgir na folha em branco, escritas por uma tinta invisível que escurecia à medida que aparecia: “O espelho abriu. O sangue aceitou.” O som de passos ecoou no andar de baixo. Lentos. Arrastados. Ela prendeu a respiração. A casa parecia acordar. As janelas vibravam com o vento, e o teto rangia como se algo se movesse por dentro dele. Elena se forçou a levantar. As pernas tremiam. Desceu as escadas com cuidado, cada degrau um som oco na madeira. A luz das velas havia se apagado em quase todos os cômodos. Apenas uma permanecia acesa, na mesa da sala, ao lado de uma xícara ainda quente. Margaret não estava ali. Nem no corredor. Nem na cozinha. Mas o ar cheirava a perfume — o mesmo que a mãe usava quando Sarah ainda vivia. Elena se aproximou da mesa. Algo estava embaixo da xícara. Um pedaço de papel rasgado, com a caligrafia de Margaret: “Não entre no porão.” Ela ficou imóvel. Olhou para a porta no final do corredor, meio oculta pela sombra. A tranca de ferro pendia aberta, como se alguém já tivesse descido. O coração dela acelerou. — Mãe? — chamou. Silêncio. Apenas o estalo do fogo distante, vindo de algum ponto da casa. Elena deu um passo à frente. Depois outro. O corredor parecia se estender mais do que o normal, como se cada passo alongasse o espaço. O som de suas próprias batidas do coração misturava-se a um ruído baixo vindo do chão — algo gotejando, constante. Quando chegou à porta do porão, o cheiro a atingiu. Um odor metálico, denso, úmido. Ferro e mofo. O mesmo da cela. As lembranças voltaram em flashes: as correntes, a voz, a risada. Elena engoliu em seco e desceu. Os degraus rangiam sob seus pés, e a escuridão parecia respirar com ela. No meio do caminho, uma lâmpada pendurada balançava sozinha, lançando sombras que subiam e desciam pelas paredes. A cada oscilação, as sombras pareciam formar rostos. No fundo do porão, algo brilhava. Um espelho pequeno, encostado na parede de pedra. Elena parou. O vidro estava limpo, refletindo a luz trêmula da lâmpada. Mas o reflexo mostrava outra coisa. Mostrava Margaret — de pé, atrás dela. Elena se virou. Nada. Só o ar frio e o som distante de água pingando. Voltou-se novamente para o espelho. O reflexo da mãe continuava ali, imóvel, o olhar fixo. Mas agora havia outra figura atrás dela: uma mulher coberta por um manto escuro, rosto escondido. A Mulher de Preto. A lâmpada piscou. O reflexo de Margaret virou a cabeça lentamente e olhou direto para Elena. Lábios se moveram, mas o som veio de outro lugar, sussurrado em seu ouvido: — Ela está em mim. Elena tropeçou para trás, derrubando uma caixa. O barulho ecoou alto demais. O reflexo piscou e desapareceu. O espelho caiu no chão e se partiu em três pedaços. Nos fragmentos, Elena viu três versões de si mesma — uma gritando, uma chorando, uma sorrindo. O sussurro voltou, agora vindo de todos os lados: — O espelho abriu… o espelho abriu… o espelho abriu… As paredes começaram a tremer. O ar ficou pesado. A luz oscilou uma última vez e se apagou. No escuro total, Elena ouviu a respiração de alguém muito perto dela. Depois, dedos frios tocaram seu ombro. Ela se virou bruscamente, o grito preso na garganta. A lâmpada acendeu por si só. Nada ali. O porão vazio. Mas o chão estava molhado — marcas de passos recentes, indo até a escada. Pequenos pingos vermelhos seguiam o mesmo caminho. Elena subiu às pressas. Quando emergiu no andar de cima, a casa estava diferente. As cortinas balançavam com o vento, mas nenhuma janela estava aberta. As paredes pareciam mais escuras, e as pinturas — todas — haviam mudado. Os rostos dos antepassados agora olhavam direto para ela. Alguns sorriam. Outros choravam. Um deles — o retrato de Sarah — tinha os olhos completamente apagados. Elena sentiu o chão girar. O diário pesava nas mãos. Folheou as páginas rapidamente, tentando encontrar alguma explicação. No final, havia uma última anotação, escrita com a mesma caligrafia trêmula de antes: “Quando o reflexo sorrir, a f***a está aberta. E nada do que vê pode mais ser desfeito.” Um trovão ecoou tão forte que a casa vibrou. Elena levantou o olhar. O reflexo no vidro da janela mostrou algo do lado de fora — uma silhueta parada na chuva, imóvel, observando a casa. A Mulher de Preto. Mas quando ela piscou, a figura havia desaparecido. No lugar, gravada no vidro, estava uma única frase, desenhada pela própria água: “O espelho do passado nunca se fecha.” O relógio soou novamente. Três e quarenta e dois. E, no reflexo da janela, Elena viu algo que fez o sangue gelar. Atrás dela, bem próxima, uma mão branca surgindo no ar, se erguendo devagar, até tocar seu ombro. Ela gritou. Mas ninguém respondeu. Nem a casa. Nem o espelho. Nem o tempo. Somente o eco da própria voz, perdido dentro das paredes. A mão pousou em seu ombro por apenas um instante. Fria. Úmida. Real. Elena girou o corpo, o grito preso na garganta. Atrás dela, o corredor estava vazio. Mas o ar ainda tremia, como se alguém tivesse acabado de passar por ali. O relógio continuava parado em três e quarenta e dois. Nada se movia. Nem a cortina. Nem as chamas. Nem o tempo. Elena encostou as costas na parede, o corpo inteiro trêmulo. O coração batia tão forte que doía. Fechou os olhos e tentou respirar fundo, mas o ar parecia não entrar. O silêncio da casa era absoluto. Tão espesso que podia ouvir o sangue pulsando nas têmporas. Quando abriu os olhos, o reflexo da janela já havia mudado. Agora mostrava apenas o jardim coberto pela chuva fina. Nenhuma silhueta. Nenhuma mão. E, por um momento, quase acreditou que nada daquilo tivesse acontecido. Mas o frio no ombro permanecia. E no vidro, imperceptível à primeira vista, algo ainda estava escrito em traços finos, quase invisíveis: “Ela acordou.” A chama de uma vela se apagou sozinha. O vento soprou pelas frestas. E a casa voltou ao silêncio. Elena subiu as escadas devagar, como quem caminha por dentro de um sonho. Quando entrou no quarto, o espelho rachado ainda refletia a penumbra. Mas o sorriso havia desaparecido. Deitou-se, sem coragem de fechar os olhos. O diário de Sarah repousava sobre o criado-mudo, aberto na página em branco onde antes havia palavras. Agora, só uma mancha escura. Um borrão que, sob a luz da lua, parecia pulsar. Elena ficou olhando até o corpo ceder ao cansaço. E, quando finalmente adormeceu, o relógio marcou três e quarenta e três. O primeiro minuto depois da f***a.
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