O som da chuva foi a primeira coisa que Elena ouviu.
Pingos ritmados batiam no vidro, como dedos insistentes tentando chamar sua atenção.
Abriu os olhos devagar. A luz cinzenta do amanhecer invadia o quarto, filtrada pelas cortinas grossas.
Por um instante, não soube onde estava.
Nem quando.
O coração ainda batia acelerado, ecoando o medo do lugar de onde viera — a cela, as correntes, a voz.
Mas ao redor havia apenas o quarto de sempre.
A cama de ferro. As prateleiras antigas. O relógio parado às três e quarenta e dois.
Nada parecia errado.
Nada, exceto o fato de estar viva.
Levantou-se devagar.
Os pés tocaram o assoalho frio, e o ranger da madeira soou alto demais, como se a casa escutasse.
Olhou para os pulsos.
A pele estava marcada — fina, vermelha, como se algo tivesse apertado ali.
As algemas.
Elena respirou fundo.
“Foi só uma visão”, pensou.
Mas a dor era real.
Atravessou o quarto.
O espelho oval, herdado da bisavó, refletia seu rosto pálido e os olhos fundos.
Por um segundo, o reflexo pareceu se mover um pouco fora de sincronia.
Elena piscou.
O espelho voltou ao normal.
Talvez ainda estivesse sonhando.
Abriu a porta e saiu para o corredor.
O cheiro da casa — madeira velha, incenso e algo levemente metálico — parecia mais intenso do que o normal.
As paredes eram cobertas de retratos antigos, todos da família.
Os Willon.
Rostos sérios, olhos profundos, olhares que pareciam segui-la onde quer que fosse.
Desceu as escadas lentamente.
Cada degrau rangia como se guardasse lembranças.
Do andar de baixo vinha um som familiar: o chiado da chaleira.
Alguém estava acordado.
Na cozinha, Margaret Willon mexia o chá com movimentos lentos.
Os cabelos grisalhos estavam presos em um coque apertado, e o olhar perdido em algum ponto além da janela.
Quando ouviu os passos da filha, virou-se.
— Dormiu m*l? — perguntou, sem surpresa na voz.
Elena hesitou.
— Eu… tive uma visão.
Margaret pousou a colher sobre o pires.
— Outra?
— Não como as outras.
A mãe observou o rosto da filha, procurando respostas que Elena não sabia dar.
O silêncio se estendeu. Apenas o som da chuva preenchia o espaço.
Por fim, Margaret disse:
— Sente-se. Conte-me.
Elena obedeceu.
As mãos ainda tremiam.
— Eu estava presa. Havia correntes, frio, sangue… — fez uma pausa, tentando organizar as imagens. — E uma mulher. Ela sabia quem eu era. Disse que eu não devia tê-la visto.
Margaret ficou imóvel.
Nem uma palavra.
Mas o leve tremor nos dedos denunciava o medo.
Elena percebeu.
— Mãe, quem era ela?
Margaret desviou o olhar para a janela.
Lá fora, a neblina cobria o jardim como um véu espesso.
— Às vezes, as visões confundem o passado e o presente — respondeu, escolhendo as palavras com cuidado. — Você precisa descansar.
Elena franziu o cenho.
— Não foi só uma visão. Eu senti dor. E quando acordei… — estendeu os pulsos. — As marcas estavam aqui.
Margaret se aproximou e segurou as mãos da filha.
— Existem coisas que não devemos tentar entender, Elena. Ainda não.
Os olhos dela tremiam.
Havia algo não dito naquela frase.
Algo que pesava mais do que o medo.
O som de passos no corredor quebrou o silêncio.
Henry Willon apareceu na porta, o semblante cansado.
— Falando de visões outra vez?
Margaret se afastou discretamente.
— Ela teve mais uma.
Henry suspirou.
— Elena, já conversamos sobre isso. Desde a morte da sua tia Sarah, você vem tendo essas… manifestações. Talvez precise de um tempo fora desta casa.
Elena o encarou.
— Você acha que é tudo imaginação, não é?
— Acho que é exaustão.
A voz dele era firme, mas o olhar vacilou ao cruzar o da esposa.
Algo estava errado.
Eles sabiam de algo.
Elena se levantou.
— Eu não estou louca.
Henry deu um passo à frente.
— Ninguém disse isso.
— Não precisa. — A voz dela saiu baixa, tensa. — Vocês escondem alguma coisa. Desde que a tia desapareceu, esta casa não é mais a mesma.
Margaret se virou lentamente.
— Sarah fez escolhas perigosas. E pagou por elas.
— Que escolhas?
— As que quebram o equilíbrio. — A mãe a fitou com seriedade. — O dom não é um brinquedo. Nem uma maldição. É uma responsabilidade.
Elena recuou um passo.
— O que ela fez?
Margaret respirou fundo.
— O que você está prestes a fazer se continuar procurando respostas.
O silêncio voltou, espesso, quase palpável.
A chaleira apitou.
Margaret desligou o fogo e virou-se de costas, como se o assunto tivesse terminado.
Mas algo, dentro de Elena, sabia que não.
As respostas estavam ali, escondidas nas sombras da casa.
******************
O dia passou arrastado.
A chuva não cessava.
O vento fazia as janelas vibrarem e as velas tremularem nos castiçais.
Elena passou horas folheando o velho diário de Sarah, o único objeto que a mãe deixava manter.
As páginas eram manchadas, a caligrafia trêmula.
Anotações sobre sonhos, símbolos e datas riscadas.
E, em várias delas, uma mesma frase:
“A água guarda o que os olhos não podem ver.”
Elena franziu o cenho.
A água.
O som.
O reflexo.
Tudo voltava à visão da cela — o gotejar, o chão molhado, o reflexo do olho na poça escura.
Um trovão sacudiu a casa.
O diário caiu no chão, aberto em uma nova página.
No canto inferior, havia um desenho: o símbolo dos Willon — um círculo cortado por três linhas.
Mas ali, um detalhe novo.
Um quarto traço.
Torto. Como se alguém o tivesse acrescentado às pressas.
Elena tocou o papel.
A tinta ainda parecia fresca.
Mas o diário estava fechado havia anos.
Um arrepio percorreu sua nuca.
Olhou ao redor.
A sala parecia mais escura do que antes.
As velas tremiam, embora não houvesse vento.
Um estalo soou no andar de cima — madeira se partindo, lenta, pesada.
Ela subiu as escadas.
Cada passo fazia o som ecoar mais alto.
No corredor, as luzes estavam fracas.
O relógio continuava parado às três e quarenta e dois.
O mesmo horário da cela.
Elena parou.
O som da casa mudou.
O silêncio ficou espesso, como se o ar segurasse a respiração.
E então, veio o sussurro.
— Elena…
A voz era baixa, distante, mas claramente feminina.
Vinha do fim do corredor, de trás da porta do antigo quarto de Sarah.
Aquele que ninguém mais abria.
Elena sentiu o corpo gelar.
A mão hesitou sobre a maçaneta.
Mas algo dentro dela — talvez o mesmo dom que tanto temia — a empurrou para frente.
Girou o trinco.
O quarto estava intacto.
As cortinas fechadas, o espelho coberto por um lençol, o ar parado.
Mas o cheiro…
O mesmo da cela.
Ferrugem. Sangue. Mofo.
Ela entrou.
O chão gemeu sob seus pés.
O ar parecia vibrar.
Quando se aproximou da janela, percebeu algo no vidro — um rastro de água escorrendo por dentro, formando palavras.
Três letras apenas.
S-A-R.
Elena recuou.
O coração acelerou.
A respiração curta.
Virou-se, e algo brilhou no espelho coberto.
Puxou o pano.
O reflexo devolveu sua imagem — e atrás dela, por um instante, o vulto de uma mulher de preto.
Olhos brancos. Sorriso humano demais.
Elena girou rapidamente.
Nada.
O quarto estava vazio.
Mas o espelho ainda mostrava a mulher, imóvel, observando.
E no reflexo, uma coisa a fez congelar:
atrás da mulher, havia alguém segurando uma chave.
A mesma da cela.
O vidro trincou com um estalo seco.
As rachaduras se espalharam como teias.
E do meio delas, uma voz sussurrou, grave, quase carinhosa:
— Você abriu a porta, Elena.
A luz se apagou.
O som da chuva cessou.
Tudo ficou em silêncio.
Até que o relógio, parado há anos, moveu o ponteiro com um clique s***o.
Três e quarenta e três.
Elena respirou fundo, o corpo tremendo.
Sabia que algo havia começado.
E que, desta vez, a visão não iria embora.
Elena ficou imóvel diante do relógio.
O ponteiro se moveu outra vez, com um estalo seco que pareceu ressoar dentro do peito dela.
Três e quarenta e quatro.
O tempo, que antes parecia suspenso, agora voltava a correr.
Mas algo dizia que não era o tempo comum — era o tempo das visões.
O ar ficou mais frio.
O vidro da janela embaçou lentamente, e atrás do véu de vapor formou-se uma silhueta.
De uma mulher, parada do lado de fora.
Olhos brancos.
Imóvel.
Elena piscou e a figura desapareceu.
Mas as marcas da mão ficaram no vidro, como se a carne tivesse queimado o gelo.
Um estalo veio do espelho quebrado.
Os pedaços refletiam ângulos diferentes do quarto, mas um deles mostrava algo que não estava ali — o reflexo de uma porta aberta, mesmo que, na realidade, ela estivesse fechada.
Elena se aproximou, fascinada e assustada.
Cada passo soava como um aviso.
Ao se ajoelhar diante dos cacos, viu dentro do reflexo uma escada descendo, envolta em sombras e neblina.
O porão.
O reflexo piscou.
E por um segundo, Elena viu a si mesma lá embaixo, acorrentada.
O mesmo rosto.
Os mesmos olhos de medo.
Depois, nada.
O espelho se apagou.
Elena recuou.
O corpo tremia.
O ar cheirava a metal e fumaça, como se algo antigo tivesse despertado.
Olhou de novo o símbolo riscado no diário, ainda sobre o chão — o quarto traço.
O símbolo agora parecia pulsar, como se respirasse.
Um leve som veio dele, quase inaudível: batimentos.
Como um coração.
Do corredor, ouviu o som de passos.
Pesados.
Lentos.
Ela virou o rosto, o coração acelerando.
— Mãe? — chamou, sem resposta.
Os passos pararam diante da porta.
Silêncio.
O ar pareceu se comprimir.
Então, algo bateu — uma pancada seca, forte, que fez o batente tremer.
Elena deu um passo atrás.
A maçaneta girou lentamente, sem ninguém tocar.
A porta rangeu e se abriu alguns centímetros.
Nada do outro lado.
Apenas o corredor escuro.
Mas algo atravessou a f***a — uma corrente de ar fria, úmida, com cheiro de terra e ferro.
O mesmo da cela.
Elena segurou firme o diário.
Desceu o corredor em passos curtos, a respiração entrecortada.
As velas piscavam, projetando sombras que pareciam se mover com v*****e própria.
No meio do corredor, o retrato de Sarah Willon — o único que Margaret nunca permitia retirar da parede.
Elena parou diante dele.
O olhar da tia era sereno, mas os olhos…
Os olhos estavam diferentes.
Não eram mais castanhos.
Eram brancos.
Vazios.
O mesmo olhar da mulher do espelho.
Elena recuou.
O quadro balançou, os pregos gemeram, e um ruído seco ecoou — algo caindo atrás dela.
Virou-se.
Um espelho oval jazia no chão, partido em dois.
No reflexo, o corredor atrás estava vazio.
Mas quando olhou diretamente, viu uma sombra atravessando o fim do corredor, indo na direção da escada.
A mesma altura.
A mesma postura da mulher de preto.
Elena seguiu, o diário apertado contra o peito.
A casa parecia viva — os degraus gemendo, o vento sussurrando nomes nas frestas.
Quando chegou ao rodapé da escada, o corredor térreo estava escuro.
A lareira apagada.
O relógio da parede parado novamente.
Três e quarenta e dois.
— n******e ser… — murmurou.
Uma gota caiu do teto.
Depois outra.
Tic. Tic. Tic.
As mesmas gotas do sonho, caindo no mesmo ritmo.
Elena ergueu o olhar.
No teto, formava-se uma mancha escura.
Algo escorria por entre as tábuas.
Um líquido espesso, vermelho.
Sangue.
O estômago revirou.
Mas antes que pudesse reagir, uma voz sussurrou atrás dela — tão perto que o ar mexeu em seu cabelo:
— Você voltou cedo demais.
Elena girou o corpo.
Nada.
Só o corredor vazio e o eco da própria respiração.
Mas a voz havia sido real.
Baixa, quase dócil.
Feminina.
De repente, a lâmpada do teto piscou três vezes.
A cada piscada, uma imagem diferente:
1. A sala vazia.
2. Uma mulher de preto parada na porta.
3. A própria Elena, caída no chão, com os olhos abertos e sem cor.
A luz apagou.
O silêncio que se seguiu era tão denso que ela podia ouvir o próprio sangue pulsando.
Um estalo de madeira veio da sala.
Elena deu dois passos à frente.
A porta estava entreaberta.
Empurrou com cuidado.
O ar lá dentro estava mais frio.
Um cheiro de cera e ferro tomou o ambiente.
As velas da lareira estavam acesas.
Todas.
E ao redor, símbolos desenhados em carvão no chão — o mesmo círculo dos Willon, mas multiplicado, distorcido.
No centro, um objeto que Elena reconheceu na hora: o bracelete com o símbolo da família, igual ao que usava no pulso.
Mas este estava coberto de sangue seco.
Ela se ajoelhou, o coração disparado.
— Tia Sarah… o que você fez?
A chama das velas aumentou repentinamente.
O calor veio forte, quase queimando o rosto dela.
E então, no meio da chama, uma voz surgiu — clara, rouca, como vinda de dentro do fogo:
— Ela me viu.
Elena se ergueu num salto.
A chama tremulava, formando o contorno de um rosto.
O rosto da mulher de preto.
— O que você quer de mim? — gritou.
O fogo estalou, lançando faíscas.
A voz respondeu:
— Não é de você que quero. É do que carrega.
Elena olhou para o bracelete.
O metal brilhou com intensidade sobrenatural.
O símbolo começou a mudar diante dos olhos dela — o quarto traço se abriu, formando um olho.
Um olho perfeito, desenhado em fogo.
O ar explodiu em luz.
Elena caiu para trás.
As velas se apagaram.
A escuridão voltou.
E, no escuro, ela ouviu o som de algo rastejando pelo chão.
Devagar.
Pesado.
Se arrastando em direção a ela.
Tentou recuar, mas algo segurou seu tornozelo.
Frio.
Úmido.
Como uma mão.
Ela chutou, gritou, e a voz voltou, agora mais próxima, sussurrando bem ao lado de seu ouvido:
— Você abriu o olho, Elena. Agora ele também te vê.
Elena soltou um grito e puxou a perna com força.
Caiu, engatinhou até a porta e correu.
O corredor parecia mais longo, infinito.
O ar vibrava, as luzes piscavam, as sombras se moviam.
A cada passo, vozes murmuravam seu nome — algumas familiares, outras distorcidas.
O som da chuva voltou, misturado a risadas longas, distantes.
Chegou ao pé da escada.
Olhou para cima.
Margaret estava lá.
De pé, imóvel, o rosto meio oculto pela penumbra.
Os olhos dela refletiam a luz fraca das velas, e o tom de voz foi sereno, quase maternal:
— Eu te avisei para não abrir a porta.
Elena congelou.
A voz não parecia dela.
Havia um eco por trás — uma segunda voz, a da mulher de preto, falando junto.
As duas misturadas, uma só.
Elena tentou responder, mas o som não saiu.
O corpo inteiro tremia.
Margaret desceu um degrau.
Depois outro.
E outro.
Os pés dela deixavam marcas escuras nos degraus de madeira — como se pingasse algo de suas mãos.
Elena recuou.
— Mãe…?
Margaret parou, a sombra cobrindo o rosto.
Quando levantou o olhar, os olhos dela não eram mais castanhos.
Eram brancos.
Vazios.
Idênticos aos da mulher da visão.
O vento soprou pelas janelas, e todas as portas da casa se fecharam ao mesmo tempo, com estrondos secos.
O som ecoou até o teto.
O relógio parou de novo.
Três e quarenta e dois.
A chama das velas reacendeu sozinha.
E na parede, a sombra das duas — mãe e filha — se projetou distorcida, unindo-se em uma só figura.
A mulher de preto.
Elena caiu de joelhos, o corpo sem força, os olhos marejados.
Tentou gritar, mas apenas um sussurro escapou.
A figura diante dela estendeu a mão, o mesmo gesto da visão.
— Você não devia ter me visto. — disse. — Agora, verá tudo.
A luz explodiu em branco.
O som sumiu.
O mundo apagou.
Quando Elena abriu os olhos novamente, estava deitada no chão do quarto de Sarah.
O diário ao lado, fechado.
O relógio na parede marcava três e quarenta e dois.
Mas no espelho rachado, a imagem refletida não era mais a dela.
Era o rosto de Margaret, olhando de volta — e sorrindo.