Isabel narrando
Viver com o pai da Allana foi como passar anos respirando debaixo d’água. Sempre me faltava o ar. No começo, eu me enganei achando que aquele controle todo era cuidado. Ele dizia que me amava, que queria o melhor pra mim, mas a verdade é que ele queria me manter sob as rédeas. Eu não podia trabalhar, não podia sair sozinha, m*l podia pensar alto. Meu lugar era dentro de casa, cuidando da roupa dele, da comida, da casa e claro, da Allana.
Foram anos assim. Me apagando, me diminuindo, me calando. Mas depois que Allana nasceu, toda a nossa relação piorou. Tinha dias que ele chegava em casa depois do serviço e simplesmente se jogava no sofá, com aquele copo de whisky na mão e o jornal na outra.
A casa tinha que estar sempre impecável, porque senão de alguma forma ele achava que tinha que me punir. Não digo nem fisicamente. Apesar de já ter acontecido algumas outras vezes. Eu já não sabia mais o que era fazer um cabelo, uma unha, até as minhas roupas quando íamos comprar, era ele quem escolhia. Cansada de toda situação, resolvi que era hora de dar um basta.
Olhei no espelho e m*l me reconheci. E naquele dia, com a voz firme que eu nem sabia mais que tinha, eu disse.
— Quero o divórcio..- Ele riu. Um riso seco, de quem não estava acreditando no que eu estava dizendo. E foi então que ele cuspiu na minha cara que sem ele eu não era nada. Que se eu fosse embora, nunca mais veria minha filha.
E eu, tola, acreditei na justiça. Achei que uma mãe nunca perderia a guarda. Saí pela porta com o peito rasgado, mas com a esperança de que conseguiria lutar. E foi então que eu perdi.
Ele tinha dinheiro, influência e amigos em lugares altos. E eu... eu só tinha a verdade e o coração destroçado. Quando me dei conta, ele já tinha levado a Allana para fora do país. E desde então, não houve um só dia em que eu não sentisse a ausência dela. Uma dor que morava em mim. Que me visitava toda noite. O que me restava? Recomeçar.
Foi Clarice quem estendeu a mão. Minha amiga de faculdade, enfermeira como eu, me arrumou um emprego no posto do Vidigal. E foi ali, no meio de um lugar onde ninguém me conhecia, que eu plantei minhas raízes de novo. Aos poucos, com medo, com dor, mas segui.
Clarice é minha única amiga aqui. A única que sabe das noites em que eu choro baixinho sentindo falta da minha filha. A única que viu meu coração se apertar a cada aniversário da Allana longe de mim. Ela tem uma filha, que é 2 anos mais velha que a minha Allana, e vendo a relação das duas, eu fico imaginando como seria se a minha menina estivesse comigo durante todo esse tempo.
Eu estava seguindo a minha vida, mesmo quebrada e com a saudade que me consumia todos os dias. Durante o dia que eu estava no posto, tudo ficava bem, porém quando eu ia para casa. Era quando eu realmente sofria. E então apareceu ele. Marcos. Ou como todos aqui chamam, Morte.
Na época, ele ainda era o dono do morro. Eu m*l falava com os moradores, me mantinha na minha. Mas numa dessas madrugadas de invasão e troca de tiro, ele foi baleado e levado pro hospital. E eu... fui a enfermeira que cuidou dele.
Ele era insistente. Todos os dias arrumava um jeito de puxar assunto. Dizia que meu sorriso era bonito, que meu olhar era diferente. Eu só revirava os olhos. Mas por dentro, confesso, me intrigava. Talvez porque, naquele mundo onde tantas pessoas se aproximavam por interesse, ele tenha visto em mim um não sincero.
Mas a verdade é que eu já havia sido quebrada uma vez, e não estava pronta para passar por isso novamente. O medo de me relacionar novamente, e acontecer as mesmas coisas que aconteceu com o pai da Alana era grande, então esse era um dos motivos que sempre me fazia dizer não. Até que um dia, aceitei sair com ele. Só pra ver no que dava. E acabou virando amor.
Vieram os encontros, os bailes, as madrugadas conversando no portão. Quando percebi, já morávamos juntos. Debaixo daquela casca de homem todo poderoso, Morte se mostrou ser um homem maravilhoso. Ele me trata de uma forma que eu nunca imaginei ser tratada um dia.
Antes mesmo de pensar nele, de fazer as coisas por ele. Ele pensa em mim e no meu bem-estar. No começo isso tudo para mim era novidade e eu achava que depois de um tempo tudo isso iria mudar, e que ele só estava fazendo isso para me conquistar. Mas eu estava errada, Morte é um homem maravilhoso e todos os dias eu agradeço a Deus por ter colocado ele no meu caminho.
Morte tem um filho. Vinícius. Ou melhor, Pesadelo. Um menino bom, mas machucado. Nunca me aceitou, nunca me deu espaço. Eu tentei. Deus sabe o quanto eu tentei. Mas ele tem um muro em volta dele que ninguém consegue atravessar. E mesmo depois de oito anos vivendo na mesma casa, somos como dois estranhos. Ele m*l me olha, m*l responde quando falo.
Eu sei que essa é a forma dele, eu também não o culpo, porque ele tem os motivos dele. Mas eu vejo o quanto o pai dele sofre, porque até mesmo com o pai ele é fechado. Morte me conta que tudo mudou, depois da mãe abandoná-lo.
Não consigo entender como uma mãe consegue deixar um filho. Durante todos esses anos, tudo o que eu sonho é ter a minha filha por perto. Enquanto isso, outras abandonam os filhos.
Durante tanto tempo eu sonhei com a volta da minha filha, que na hora que o vapor chama o Morte no rádio e avisou que ela estava na barreira, o meu coração quase saiu pela boca porque eu não conseguia acreditar em que ela finalmente estava aqui. Depois que ela completou os 18 anos, eu sempre tive esperanças que agora que ela era maior de idade ela me procuraria. E então... ela veio
Eu achei que estava sonhando quando vi aquela moça linda parada na entrada do morro. Era a minha menina. A minha Allana. O tempo não levou o amor. Não apagou o vínculo. Eu abracei ela como se quisesse fundir meu corpo ao dela. E prometi que nunca mais vamos nos separar.
Meu coração parecia explodir de tanta felicidade. Como a minha menina ainda não tinha almoçado, fui com ela para a cozinha preparar algo para ela comer. Confesso que fiquei em choque por saber que o pai dela morreu há uns dias atrás. Apesar de todo o m*l que ele me fez, eu nunca desejei nada de m*l para ele.
Ouvi a porta da sala se abrindo e pensei que fosse o Morte voltando já que ele saiu para resolver alguma coisa na boca, mas logo Clarice apareceu com a Sil na cozinha. As duas olharam para a Allana como se não tivesse entendendo quem é e depois olharam para mim com cara de interrogação.
— Essa é a minha menina Clarice.- eu falei para ela com os olhos cheios de lágrima e ela abriu um sorriso lindo e colocou a mão na boca.
— Allana ? Não acredito.- ela fala e vai na direção da minha filha para dar um abraço nela.
— Oi.- Allana fala se levantando e retribuiu o abraço da Clarice.
— Já ouvi falar tanto de você, que parece que te conheço há tanto tempo. Meu Deus você é tão linda quanto a sua mãe.- ela fala e a Sill se aproxima.
— Oi Allana, eu sou a Sil.- ela fala e da um beijo no rosto da minha menina que depois volta a se sentar e comer prestando atenção nas duas.
— É um prazer conhecer vocês duas.- ela respondeu.
— Ai amiga, Tô tão feliz por você que não consigo nem explicar.- Clarice fala vindo na minha direção com os olhos cheios de lágrimas e me abraça e parece que aquilo foi o que tava faltando para mim desabar e chorar de felicidade.
— Por que vocês estão chorando?- Marcos pergunta entrando na cozinha e eu limpo o rosto me afastando da Clarice.
— Eu só estou feliz.- eu falo indo na direção dele e olho para minha menina.
— Eu sei minha princesa, mas agora para de chorar porque a Allana tá aqui, se Deus quiser vocês nunca mais vão se separar novamente.- ele fala e nós sorrimos olhando uma pra outra.