Sandrinha narrando
A rodoviária tava cheia, mas dentro de mim só tinha vazio. Gente indo, gente vindo, tava lotado de barulho, buzina, grito de vendedor e anúncio de embarque. Mas o que me engolia por dentro era o silêncio dele… o silêncio do JR.
Meu coração tava apertado. E não era só por deixar o morro que me acolheu e aprende a amar. Era por deixar ele.
Depois da noite de ontem, eu não era mais a mesma. Ele marcou minha pele, minha alma, meu corpo. Me fez mulher. Mas mais que isso… me fez sentir o que era ser amada, mesmo sem dizer a palavra.
Tô aqui com a mochila jogada no banco de cimento frio. A passagem na mão suada. A cabeça mil. E ele ali… parado, encostado na parede, de boné aba reta, blusa preta, calça larga. Braço cruzado e aquele olhar sério, mas com o fundo triste que ele sempre esconde.
Dou uma última olhada pro bilhete do ônibus. Peruíbe. Minha vó me esperando. Um câncer brabo que bateu do nada e agora tá consumindo ela rápido demais. Não posso abandonar. Ela me criou, me deu tudo que pôde. Agora é minha vez.
Mas isso não diminui a dor de deixar ele.
Me levanto devagar e vou até ele. Ele não se move. Só me encara.
— Então… é isso, né? — falo, com a voz embargada.
Ele desvia o olhar pro chão por um segundo, depois volta pra mim.
— Tu tem que ir. Tua vó precisa de tu.
— Eu sei… — respiro fundo. — Mas isso não torna mais fácil.
Ele balança a cabeça devagar, passa a mão na nuca como quem tá tentando conter um turbilhão por dentro.
— Não queria que fosse agora… depois da nossa noite…
Sorrio triste.
— Foi a melhor noite da minha vida, JR. Tu cuidou de mim de um jeito que eu nunca pensei que alguém fosse cuidar.
— Tu merece isso e mais. Tu é f**a, Sandrinha. Forte, doce, leal. Uma mina de verdade. Merece o mundo.
— Só queria que o mundo incluísse tu nele.
Ele se aproxima, pega minha mão e aperta forte.
— Se fosse outra época, outra fase, eu te prendia em mim. Mas cê sabe… eu ainda tô tentando me entender. Tô tentando descobrir o que é amor, o que é paz… porque eu sempre vivi no caos. E tu é o oposto disso. Tu é calmaria.
Meus olhos enchem d’água. A voz dele tá falhando também.
— Eu esperei tempo demais pra te notar, né?
Ele ri de leve, mas tem tristeza no fundo.
— Talvez. Mas cê chegou na hora certa. Cê apareceu quando eu já tava cansado. E tu me mostrou o que é sentir de verdade.
— Mesmo assim, não é o suficiente pra tu me pedir pra ficar?
Ele suspira fundo, encosta a testa na minha.
— Eu queria te pedir isso, Sandrinha. Queria egoistamente te segurar aqui. Mas não seria justo contigo… tua vó precisa de tu agora. E tu merece ser mulher, neta, família.
Fecho os olhos, sentindo as lágrimas escorrerem. Ele limpa com os dedos, com carinho.
— Eu volto um dia, JR.
— E se tu voltar e eu ainda tiver aqui, inteiro… a gente vê no que dá.
— E se eu te disser que já sou tua?
— Aí eu te digo que já era. Que tu me ganhou e nem precisou forçar nada.
Nos beijamos. Um beijo lento, profundo. Um beijo que diz mais que qualquer despedida. É saudade antecipada, é promessa muda, é aperto no peito.
Sinto o corpo dele colado no meu e quase peço pra ele me levar dali. Quase digo: “me deixa aqui com você, f**a-se o mundo”.
Mas não posso.
O alto-falante anuncia meu ônibus. Última chamada. Me afasto devagar, ainda com a mão dele segurando a minha.
— Não solta ainda… — sussurro.
Ele segura firme.
— Nunca quis soltar. Só tô te deixando ir.
Abro um sorriso triste.
— E se alguém aparecer? Uma outra mina?
Ele ergue o queixo.
— Nenhuma vai ser tu. E mesmo que encoste, nunca vai ocupar o lugar que tu deixou.
Respiro fundo, tentando não chorar de novo.
— E tu… se alguém aparecer lá?
— JR… depois de tu, ninguém vai fazer sentido.
Ele morde o lábio, segura meu rosto nas mãos e me beija de novo. Dessa vez, mais rápido, como se fosse o último gole de água no deserto.
— Vai, Sandrinha… antes que eu faça besteira e te arraste pra casa de novo.
— Promete que vai cuidar de você?
— Só se tu prometer que vai voltar.
— Prometo.
Me viro e ando até o ônibus. Cada passo é um soco no estômago. Meus olhos tão embaçados, minha perna tá bamba. Entrego o bilhete, entro e sento na janela.
Ele tá lá fora. Me olhando.
Levanto a mão. Ele levanta a dele. O ônibus dá partida. Meus olhos não saem dos dele. Até que a distância engole tudo e só sobra o vazio.
Encosto a cabeça no vidro, o coração na boca.
E pela primeira vez em muito tempo… eu choro por amor.
Mas não é só por deixar ele.
É por sentir que... eu talvez nunca mais encontre um amor assim.
— JR… se cuida — sussurro baixo, quase sem voz. — E me espera.
E mesmo longe, mesmo indo embora, mesmo sem saber o que o destino guarda pra gente…
No fundo, meu coração ainda é dele.
E vai ser, até o fim.