Misturei tanto remédio com o Ice Wine que o açúcar inseparável da bebida ficou com gosto amargo. Quase de xixi misturado com analgésicos. Viro outro gole para acabar de uma vez com essa porcaria que tinha feito.
A casa está uma verdadeira paz desde o dia que tinha arrumado o barulho insuportável do aquecedor, mas por outro lado, o silêncio me causava ainda mais traumas. O simples pulo do gato do chão para a bancada já me deixava em alerta por vários minutos ou a voz dos vizinhos da casa ao lado, mesmo que bem baixa, conseguia me aterrorizar.
Despejo o resto da bebida no ralo da cozinha, como o último pedaço de queijo e dou o último alimento do dia para o gato. Aproveito para varrer o carpete da cozinha e passar um pano no balcão. Não muito tarde começo a trancar todas as janelas e portas da casa. Mesmo morando no bairro mais seguro da cidade e a cidade não tendo mais que catorze mil habitantes, jamais conseguiria me sentir seguro.
Pego o livro de cima da poltrona do quarto e me dirijo para a cama. Já sentado na cama, folheei algumas páginas de um desinteressante livro de auto ajuda que coloca o dinheiro no centro de tudo. Talvez esse tipo de livro fizesse mais sentido para mim se morasse em grandes cidades como Toronto ou Vancouver e não tivesse passado por tantas desgraças na vida que o dinheiro se tornou insignificante.
Tenho dinheiro o bastante para fazer tudo o que quiser, mas não sinto vontade de fazer nada. Poderia fazer viagens, mas o que adiantaria? Ficaria sozinho em quartos de hotéis caros, faria passeios incríveis e tiraria fotos completamente sozinho. Poderia comprar relógios e roupas caras, mas serviriam para que? As roupas que compro já são boas o suficiente e o relógio está ótimo para olhar a hora, além de que ninguém na minha cidade parece se preocupar se você usa coisas caras ou não.
Quando disse para a psicóloga sobre isso, ela sugeriu que eu devesse entrar em algum site de relacionamento ou fazer algum curso para conhecer pessoas. Segundo ela, talvez fosse isso o que estaria faltando.
Aguardei o remédio fazer efeito, então fechei o livro e coloquei na mesa de cabeceira. Desliguei o abajur e em poucos segundos apaguei. Apaguei tão longamente que demorei a notar o estrondar da porta.
O estrondo vinha seguido de outro. Arregalo os olhos, quando me sento na cama dou de cara com James em pé e próximo da cama. Seu rosto não demonstra nenhum sentimento, as mãos estão fechadas em um punho e a camiseta branca suja de sangue.
— O que você está fazendo aqui? — James passeia ao redor da cama até chegar próximo o suficiente de mim. Seus olhos escuros parecem sugar o pouco de vida que tenho como se quisesse cumprir com o que não conseguiu.
Sem dizer nada, James salta em cima de mim e agarra meus pulsos. Tento gritar, mas a voz não sai pelo peso que ele faz no meu peito. Debato-me diversas vezes, mas nada faz com que saia de cima. Tento gritar outra e mais outra vez, porém, isso só faz ele apertar ainda mais o corpo contra o meu.
Sua língua desliza pelo meu rosto enquanto uma das mãos arranca as próprias calças. Empurro-o com toda a força que consigo, contudo, nada adianta. Decidi partir para a mordida. Logo que mordo seu rosto, James faz minha cabeça bater na madeira da cama. Sinto o sangue escorrer pelo nariz, dando-lhe tempo suficiente para agarrar meu pescoço.
Desta vez não tem como gritar, desta vez não tem como o empurrar. Minha respiração vai ficando fraca. Com as poucas possibilidades parto para enfiar os dedos nos seus olhos. Uso toda a força restante para afundar os olhos no crânio. Aperto e aperto como se fosse uma massa que precisa ser modelada. De repente, sangue esguicha no meu rosto e James se desfaz nas minhas mãos.
A dor tão comum e tão horrorosa da perna faz com que jogue as cobertas para longe. Cobertas no chão, percebo que estou banhado de sangue. Luzes piscam e piscam até ligarem completamente. Minha perna foi arrancada do joelho para baixo, restando somente parte de osso quebrado misturado com sangue e pedaços de carne.
Tento gritar pela terceira vez, tento falar, mas o som não sai. O único barulho é o ensurdecedor som da campainha que toca sem pausa. Deixo de prestar a atenção na falta da minha perna e viro o rosto para o lado da cama, onde James está deitado sem os olhos e repleto de sangue pela face.
— Eu quase te matei — ele diz, seguidamente seu corpo se transforma em um esqueleto cheio de algas marinhas e areia. Por último, desaparece.
A campainha continua tocando urgentemente. Ao piscar estou com o livro em cima do peito e a luz do abajur acesa, ao lado, o gato dormindo. A campainha continua tocando com a mesma urgência que estava no pesadelo.
Coloco o livro na mesa da cabeceira e me levanto. Ando na ponta dos pés até a lareira, agarro um dos puxadores de brasas e sigo para a porta. Ao colocar os olhos no olho mágico vejo meu pai e o motorista embaixo da chuva. Coloco o puxador de brasas encostado no batente e abro a porta.
— Pensei que tinha morrido, Hector! — meu pai diz. — Já estava ligando para a ambulância.
— Entrem — dou espaço para eles. — Farei um chá ou um café para vocês. Acabei pegando no sono muito cedo devido aos remédios.
Meu pai vai reparando em cada detalhe da casa ao instante que tira as luvas pretas de couro e o motorista fecha o guarda-chuva. Os cabelos platinados dele estão cortados, como sempre, de forma cuidadosa, o palito do mais alto padrão, os sapatos elegantes e engraxados tão exageradamente que refletem todo o teto da casa.
— Sua casa é detalhadamente arrumada, bem diferente da casa de Aisha.
Guio meu pai e o motorista até cozinha. Ao chegar já vou tirando as xícaras do armário e procurando pelo ** do café ou do chá.
— O que vocês bebem?
— Pode ser chá — meu pai respondeu e o motorista apenas consente.
— E como está Aisha? Faz tempo que não converso com ela.
— Ela está na europa modelando para a Dior. Disse que retorna até o fim do mês.
— Que ótimo! Ela sempre disse que queria modelar para marcas grandes.
Ligo a chaleira, pego o açúcar e alguns petiscos que tinha guardado na geladeira desde o dia anterior porque realmente achava que ia conseguir assistir um jogo completo na TV sem dormir.
— Bem… tive que molhar algumas mãos para colocar ela, no mínimo, dentro da seleção. Sabe como é, só com contatos e muito dinheiro consegue.
— E como está Everly? — sirvo os chás para eles junto com os petiscos. O motorista nem se deu ao trabalho de se sentar, apenas pegou a xícara e ficou encostado na parede próximo a porta.
— Everly está em Dubai a trabalho. Não me pergunte com o que ela trabalha que não tenho ideia. Cada dia uma de suas irmãs inventam de trabalhar com algo novo que surge. E, por fim, Emmett está cada vez pior devido à doença. Já levei nos melhores especialistas do Canadá e dos Estados Unidos, apenas indicam tratamento para aliviar a dor dela, mas é uma doença sem cura.
Emmett era a esposa do meu pai desde muito antes de eu nascer. Mãe de quase todos os filhos dele, menos de mim, claro. Se tivesse nascido dela jamais teria passado por 1% do que passei durante toda a infância e adolescência.
— Qual o estado atual dela agora?
— Já não fala mais. Há três meses conseguia falar e mexer o rosto, mas agora só movimenta os olhos. Já está em estado vegetativo — meu pai bebe um gole do chá de forma lenta e contínua.
— Sinto muito.
— Bem, vim aqui com a intenção de ver como você tá. Sair de Saskatoon até North Battleford é mais de uma hora de viagem. Ainda nesta tempestade fica mais difícil.
Ele termina o chá, pega um petisco para não fazer desfeita e oferece para o motorista.
— Estou bem. O trabalho está bem tranquilo e talvez faça outra faculdade.
— Você sabe que poderia estar trabalhando comigo e morando em uma cidade melhor. Essa cidade não tem tantas oportunidades quanto tem em Saskatoon, além de você estar completamente só aqui — meu pai coloca as luvas de volta e, por um breve instante, aponta para uma garrafa atrás do lixo. — Já disse para não beber e tomar remédios, Hector.
Ando rapidamente até a garrafa e a jogo no lixo.
— Raramente isso acontece — toda a vez que ele vinha era o mesmo assunto e os mesmo problemas encontrados. Quase uma rotina mensal. Nada de novo.
— De qualquer forma… — ele se levanta —, faça o acompanhamento psicológico e tome adequadamente os remédios. Não exite em pedir dinheiro quando precisar e, também, minha casa em Saskatoon estará aberta para te receber, além de suas irmãs estarem ansiosas para te rever.
Acompanho ele e o motorista até a porta. Observo da janela da sala o enorme carro preto partir pela rua e, só depois de alguns minutos, consigo retornar para a cama.
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Já estava correndo por horas dentro do matagal. A perna doía absurdamente e o suor escorria junto com as lágrimas. Naquela escuridão intensa se sentia sufocado, não sabia mais para onde devia correr para fugir de James.
Tinha prometido a si mesmo que jamais iria estar outra vez em situação de perigo desde aquele dia que ficou em coma. Mas, como de costume, a vida o fez se relacionar com a pior pessoa possível.
“Vai conseguir correr por mais quanto tempo, aleijado?” A voz de James ecoou, não demorou para a luz da lanterna iluminar seu rosto.
Voltou a correr o quanto conseguia. Tropeçou e caiu dezenas de vezes até chegar ao rio. O rio estava violento, sendo impossível de ultrapassá-lo. Chorou mais pedindo a Deus para que James não o encontrasse.
Pela última vez, à luz da lanterna o encontrou. O primeiro pensamento de Hector foi o de se entregar. Se o matasse finalmente todo o sofrimento acabaria e não precisaria mais correr, lutar. Nada. Acabaria tudo ali.
James pulou em cima dele, ambos caíram na margem das águas escuras e violentas do rio. Hector sentiu as pedras do rio rasgarem as costas e logo em seguida as mãos de James agarraram seu pescoço.
Ali, embaixo daquela água gelada e escura, Hector apenas aceitou seu destino. James segurava com tanta força seu pescoço que a correnteza da água fez Hector bater a cabeça dezenas de vezes nas pedras.
Foi um enorme estrondo, um longo barulho que pode escutar mesmo embaixo da água. As mãos de James sumiram do seu pescoço e algo o puxou para a superfície.
“Você está bem?”
“Está tudo bem?”
“Me escuta?”
Diversas vozes diziam ao mesmo tempo, mas Hector demorou a enxergar por causa da ardência nos olhos. Quando enxergou, vários policiais o cercavam com lanternas.
“Matamos ele,” um dos policiais disse enquanto apontava para um corpo jogado de bruços próximo a margem. Contudo, foi o buraco na cabeça do cadáver que fez Hector desmaiar.