Lisbeth girou a chave na fechadura com a lentidão de quem carregava o peso do mundo nos ombros. O cansaço estava impresso não só nas olheiras profundas e na dor nas pernas, mas principalmente nos olhos. Aqueles olhos que costumavam brilhar mesmo diante da dificuldade agora pareciam nublados, cansados de tanto esforço e tão pouco reconhecimento.
Ao empurrar a porta, antes mesmo de soltar o sapato, ouviu a vozinha suave da vizinha da frente:
— Lisbeth, tá tudo bem? A Bela brincou bastante aqui em casa. Tá ali sentadinha desenhando.
Ela forçou um sorriso e assentiu.
— Tá tudo certo, dona Clary. Muito obrigada por cuidar dela mais uma vez. Eu… eu cheguei um pouco mais tarde hoje, teve um probleminha no trabalho.
Dona Clary apertou os lábios, como quem entendia sem precisar de mais explicações. Depois, chamou a menina:
— Bela! A Lisbeth chegou!
A garotinha de oito anos surgiu correndo do sofá, já com a mochilinha nas costas e um sorriso iluminado no rosto. Quando abraçou Lisbeth pela cintura, como fazia toda vez que voltava da escola, o peito da irmã mais velha se apertou. Aquela era a razão de sua luta. Aquela menina inocente, de olhos grandes e sorriso fácil, era tudo o que ela tinha.
— Vamos, meu amor? — perguntou, passando a mão pelos cabelos escuros da irmãzinha.
— Vamos. Estou com saudade do meu quartinho.
Elas agradeceram à vizinha e atravessaram o corredor do prédio. O apartamento de Lisbeth era pequeno, mas sempre cheirava a limpeza e lavanda, um lar aquecido por amor, mesmo que faltasse conforto.
Ao entrar, Lisbeth trancou a porta e soltou um suspiro longo. Deixou as chaves sobre o balcão e os sapatos junto à porta, como sempre fazia. A irmãzinha foi até o sofá e se jogou com gosto, pegando o travesseiro de coração cor-de-rosa que chamava de "almofada mágica".
— Lise você está com aquele olhar de chuva de novo.
Ela riu com o nariz, sentando ao lado da irmã.
— Olhar de chuva?
— É. Quando seus olhos ficam assim parece que tá nublado por dentro.
Lisbeth passou a mão no rosto, tentando disfarçar a emoção que beliscava seu peito desde o fim do expediente.
— Eu estou um pouco cansada, meu anjo. O dia foi pesado.
— Você tá triste, sim. Eu vejo. Você não tá me enganando.
A menina cruzou os bracinhos e fez bico. Lisbeth sorriu pela primeira vez de verdade naquele dia. A pequena era sua terapeuta particular, sua companheirinha de alma.
— É que hoje aconteceu uma coisa muito chata lá no trabalho. Às vezes a gente tenta ser forte, mas algumas coisas machucam, mesmo quando a gente tenta não deixar.
— Foi alguém que falou m*l de você? Eu coloco no castigo! — disse Bela, com os olhos faiscando.
— Não, meu amor — riu Lisbeth, puxando-a para o colo —. Mas obrigada pela defesa, viu?
— Eu vou pedir para o Papai do Céu. Vou pedir um príncipe para você.
Lisbeth arqueou as sobrancelhas, divertida.
— Um príncipe?
— É! Um príncipe de verdade, Lisbeth! Daqueles que a gente vê nos filmes, sabe? Que trata a princesa bem, que cuida, que protege. Que compra sorvete e ajuda a pintar a casa!
A risada de Lisbeth veio como uma onda mansa. Há quanto tempo ela não ria assim?
— E o que eu faria com um príncipe desses, hein?
— Você ia voltar a estudar, ia trabalhar com o que você ama, ia ser feliz! — respondeu a menina, como se já tivesse tudo planejado. — Um príncipe ia te dar amor. Porque só eu e você te damos amor de verdade. Mas ele ia ver o que eu vejo que você é linda. Por dentro e por fora.
Lisbeth a apertou contra o peito, sentindo os olhos marejarem de novo. Mas dessa vez não por tristeza — era um choro doce, de gratidão, de ternura.
— Oh, Belinha você é linda. Você é o meu maior presente, sabia? Obrigada por me fazer sorrir num momento como esse. Eu nem sabia que ainda dava pra sorrir hoje.
— Você vai sorrir todos os dias ainda, Lis. Eu sei. Deus tá ouvindo o meu pedido.
A mais velha beijou o alto da cabeça da irmã e suspirou.
— Continue assim, minha irmãzinha. Com esse coração puro. Com esse jeitinho doce. Promete?
— Prometo! Mas com uma condição.
— Qual?
— Que você me ajude a fazer um cartaz de "bem-vindo" pro seu príncipe. Quando ele chegar, tem que se sentir em casa, né?
Lisbeth gargalhou dessa vez. Gargalhou mesmo, como há tempos não fazia. Levantou com a menina no colo, girando pela sala entre risos e cócegas, como se naquele instante o mundo lá fora tivesse sumido, e só as duas existissem — duas almas unidas pelo amor e pela esperança.
E ali, naquele lar simples e cheio de afeto, a promessa foi lançada ao céu: um príncipe que soubesse enxergar o valor de uma mulher que lutava todos os dias sem nunca perder a ternura.
Verdades Que Doem, Amor Que Cura
Lisbeth levou o sanduíche até a sala, mas deu apenas uma mordida. O cansaço fazia seu corpo pesar e a cabeça latejar. Deixou o prato sobre a mesinha de centro, pegou um copo d’água e seguiu até o quarto da irmã.
A porta entreaberta deixava escapar a luz amarelada do abajur. Bela já estava de pijama, deitada de lado, abraçada ao travesseiro favorito e com os cabelos espalhados no lençol florido. A cama dela era simples, mas decorada com carinho — um lençol rosa-claro, uma colcha bordada por uma senhora da igreja, bichinhos de pelúcia e um adesivo de estrelas no teto, que brilham à noite.
Lisbeth se aproximou devagar, com um sorriso cansado nos lábios.
— Você já se deitou, meu anjo?
— Hum… só estava esperando você vir me dar boa noite.
Ela se sentou na beirada da cama e acariciou os cabelos da menina.
— Boa noite, minha flor. Que você tenha sonhos lindos… cheios de castelos, princesas e muito sorvete.
Bela a olhou nos olhos com uma seriedade incomum para a idade.
— Lise eu agora só tenho você.
A frase, dita com aquela vozinha fina e carregada de verdade, atingiu Lisbeth como uma flecha bem no peito.
— Você precisa descansar também… — continuou a menina. — Você está fazendo igual a mamãe. Trabalhando, trabalhando, trabalhando. E a mamãe— ela respirou fundo, tentando segurar o choro — a mamãe morreu porque não teve tempo de cuidar da saúde dela.
Lisbeth engoliu seco.
— Ela deixou nós duas sozinhas, Lis. Eu não quero que aconteça o mesmo com você. Eu tenho medo. Eu fico pensando, às vezes, quando você demora pra chegar em casa e se você não voltar? E se eu ficar sozinha?
A mais velha levou a mão à boca e deixou uma lágrima escapar pelos olhos já inchados. Aquilo não era só uma criança falando — era uma alma ferida pedindo socorro.
Ela se deitou ao lado da irmã, a abraçou forte e sussurrou com a voz trêmula:
— Você nunca vai ficar sozinha, Belinha. Eu te prometo. Eu vou me cuidar, vou descansar, vou fazer meus exames. Eu não sou como a mamãe, eu sou sua mana. Eu sou forte mas eu também vou aprender a parar. Porque eu preciso estar aqui. Com você. Por você.
— Promete?
— Prometo com meu coração todo.
As duas ficaram ali abraçadas, sem dizer mais nada por um momento. O silêncio era cheio de amor e lágrimas contidas. Um silêncio de promessas feitas com a alma.
— Agora dorme, minha pequena. E sonha com coisas bonitas. Amanhã é um novo dia. E eu vou estar aqui, viu?
— Tá bom. Mas vai lá descansar também. Toma seu banho e dorme. Porque eu quero você viva por muitos e muitos anos, mana.
— E você vai ter. Eu juro.
Lisbeth beijou a testa da menina, se levantou e apagou o abajur. As estrelas no teto começaram a brilhar devagarinho, como um céu inventado para guardar os sonhos da infância.
Ao sair, fechou a porta com cuidado e encostou as costas na madeira. Chorou. Mas não era só dor. Era o peso do amor, o medo real de perder, e a vontade imensa de fazer diferente.
Ela precisava encontrar uma saída. Uma vida melhor para elas duas.
E amanhã… talvez começasse a pensar nisso de verdade.