Enquanto Isso, no Hospital...
Enquanto isso, no hospital, o ambiente da UTI permanecia silencioso, com apenas o som dos monitores cardíacos preenchendo o ar pesado da madrugada.
Maris estava ali, deitada há dias. O rosto pálido, os olhos fechados, os braços finos conectados a tubos e monitores. A enfermeira da madrugada, acostumada com os sussurros da morte e os milagres do inesperado, checava calmamente os níveis do soro, quando sentiu um leve movimento no braço da paciente.
Instintivamente, olhou para o rosto dela.
Os dedos de Maris se contraíram. A pálpebra esquerda tremeu. E, num instante seguinte, ela abriu lentamente os olhos — ainda opacos, como quem retornava de muito longe. O peito dela subiu e desceu com um suspiro profundo, como o de alguém que acabara de emergir de um mergulho longo e sombrio.
A enfermeira congelou por um segundo, depois rapidamente apertou o botão de emergência ao lado da cama.
— Ela está saindo do coma. A paciente Maris está respondendo! — anunciou pelo interfone.
Logo em seguida, a movimentação começou.
A psicóloga da ala intensiva foi chamada às pressas. O neurologista plantonista, Dr. Allan, foi convocado com urgência. Em menos de três minutos, ambos já estavam de jaleco branco diante da cama.
— Pupilas reagindo. Respiração espontânea. Movimento ocular. Ela está voltando — confirmou a enfermeira, emocionada.
Dr. Allan aproximou-se devagar, pegando a prancheta enquanto examinava a paciente com o estetoscópio.
— Maris? Você consegue me ouvir?
Ela piscou, os lábios ainda imóveis, mas umedecidos pelo próprio suspiro. Um som fraco saiu de sua garganta. Não era uma palavra. Era vida.
— Preparem a sedação leve. Vamos iniciar protocolo de recuperação neurológica — ordenou o médico. — E deixem o setor psicológico em alerta. Quando ela estiver estável, vamos precisar iniciar a abordagem de suporte.
A psicóloga, ao lado, já tomava nota e preparava mentalmente a delicada tarefa de acolher alguém que voltava à consciência… mas não à normalidade. Porque, quando Maris despertasse por completo, nada do que ela conhecia antes seria igual.
E nada do que ela lembrasse… seria leve.
O Despertar Fragmentado
Enquanto isso, no hospital, os monitores indicavam sinais vitais estáveis. Maris havia aberto os olhos, mas o cérebro ainda parecia não acompanhar o corpo.
Dr. Allan e a psicóloga permaneciam ao lado dela, observando cada pequeno movimento, cada piscada lenta, cada tentativa falha de reação.
Ela tentava falar. A boca se mexia mas o som que saía era apenas um chiado rouco, falho, abafado. A voz parecia vir de um lugar distante. A enfermeira se aproximou com cuidado e murmurou:
— Calma está tudo bem. Você está segura. Seu corpo está acordando.
Os olhos de Maris tremiam de um lado para o outro. Havia medo neles. Confusão. Um vazio doloroso. Ela tentou levantar a mão, mas o braço caiu como um peso morto sobre o colchão. O corpo não obedecia.
A psicóloga se aproximou com voz suave:
— Maris? Você consegue me ouvir? Pisca duas vezes se sim.
Demorou alguns segundos. Então, com um esforço visível, ela piscou duas vezes.
A médica assentiu. Era o primeiro sinal real de consciência.
— Maris, você passou um tempo desacordada. Agora está em segurança. Está no hospital. Está viva.
Uma lágrima escorreu no canto do olho da paciente.
O médico olhou para o monitor e depois para a psicóloga.
— Ela está hiperativa. A resposta emocional está vindo antes da resposta motora. Isso é típico de coma prolongado. A gente precisa ir devagar.
A psicóloga se sentou ao lado dela e segurou sua mão com delicadeza.
— Você pode estar se sentindo assustada… mas nós vamos te ajudar a lembrar. Aos poucos. Tudo vai voltar ao lugar.
Maris continuava tentando falar. Mas tudo o que conseguia era um som fraco, sibilante. A garganta parecia queimada por dentro. Seus olhos se fixaram nos da psicóloga como se procurassem… alguém. Como se a mente gritasse, mas a boca não obedecesse.
— Vai chamar o fonoaudiólogo e iniciar avaliação neurológica leve — disse o médico. — Ela está saindo do coma, mas vai precisar de protocolo completo de recuperação. Ainda está desorientada, não reconhece o ambiente.
— Doutor — murmurou a enfermeira —, ela parece estar procurando alguém.
O médico a observou.
— Contato afetivo? Talvez uma figura de segurança. Descubra quem é o contato de emergência. Temos o número de um homem na ficha. Dreew.
A psicóloga anotou.
Maris olhou ao redor, respirando com dificuldade. E, num lampejo, quando uma auxiliar entrou na sala e lhe tocou o braço, ela se encolheu. Um arrepio de medo passou por seu corpo. Os olhos se arregalaram. Ela chorou.
Mas não por dor física.
Era o medo. O trauma. O mundo ainda não tinha voltado para o lugar.
E o silêncio da alma gritava por proteção.
Maris dormia outra vez — ou quase. O corpo descansava, mas os olhos vibraram, mesmo cerrados, e os dedos agitaram-se de leve sobre o lençol, como se buscassem algo que ninguém mais via.
A psicóloga plantonista permanecia em observação à distância, acompanhando os dados clínicos e emocionais. As anotações do neurologista eram claras: paciente vítima de tentativa de homicídio, múltiplas perfurações por arma de fogo, coma induzido por trauma, cirurgia de emergência, transfusão sanguínea e protocolo pós-trauma em evolução.
Maris. Nenhum sobrenome registrado.
Mas a ficha de internação possuía, sim, o nome de um responsável: Dreew M. W., ex-marido, responsável legal pelo tratamento e pelas despesas hospitalares.
— Está tudo no nome dele… — murmurou a psicóloga, voltando ao posto e cruzando as informações. — Mas por que não houve visitas?
Ela acessou os registros de acompanhamento psicológico e notou que outra psicóloga estava designada à família desde o dia da internação. Pegou o ramal e ligou.
— Psicologia – Plantão Especial. Boa tarde?
— Boa tarde, aqui é doutora Ela, da ala de terapia intensiva. Estou com a paciente Maris. Ela acordou agora há pouco, está em recuperação, com cognição parcial, e começou a murmurar nomes.
— Ela acordou? — perguntou a outra, surpresa. — Meu Deus…
— Sim. E o primeiro nome que ela disse, com esforço, foi “minha filha”… e depois “Drill”.
Silêncio do outro lado por alguns segundos.
— Doutora, ela está chamando Dreew?
— Sim.
— A filha deles, Brittany, está internada em outra hala do hospital , ela teve gêmeos, prematuros e em risco, emocional frágil. Sr. Dreew está dividindo o tempo entre as duas. Ele está exausto, mas não abandonou a ex-esposa. Ele pediu para que não contássemos nada à filha ainda.
— Entendi. Ele deixou contato de emergência?
— Sim. Espere um instante, estou enviando o número do celular particular dele via interno. Ele pediu que, se algo mudasse, fosse avisado imediatamente.
Minutos depois, a Psicóloga plantonista ligou.
O telefone tocou uma, duas, três vezes. Na quarta, uma voz aflita atendeu:
— Alô?
— Senhor Dreew? Aqui é doutora plantonista, psicóloga da UTI do Hospital. Eu estou com a paciente Maris…
— Maris? O que aconteceu? — A voz dele tremeu.
— Ela acordou, senhor. Está consciente, ainda muito fraca, mas chamou pela filha e pelo senhor.
— Pelo amor de Deus… — ouviu-se um soluço abafado. — A minha filha não pode saber. Ela está no hospital, teve gêmeos prematuros. Está com alto risco de depressão pós parto. Ela está com medo, em repouso absoluto. Não avisem a Brittany. Por favor. Não avisem. Eu estou indo agora mesmo para o hospital. Me deem trinta minutos.
— Entendido. Aguardaremos. Ela está em estabilidade neurológica, mas em fragilidade emocional profunda. Sua presença pode ajudar no avanço da recuperação.
— Eu sou tudo o que ela tem, doutora. Eu vou agora. E... obrigado. Obrigado por ligar.
A chamada caiu.
A psicóloga desligou devagar, respirando fundo. Um pai. Um ex-marido. Uma filha em risco. Uma mulher voltando da morte.
Tudo agora dependia de como aquele reencontro seria conduzido.