Enquanto isso, no hospital em Boston, o clima silencioso da ala intensiva foi rompido por uma movimentação incomum. Enfermeiros andando com passos apressados, sussurros profissionais, trocas de olhares tensos entre os técnicos de enfermagem. O vidro fosco da porta da UTI central se iluminava com a movimentação de sombras passando de um lado para o outro.
Lena, que saía do quarto da Brittany para tomar um café e respirar um pouco, notou tudo isso ao passar pelo corredor lateral.
Ela parou, inclinando o rosto com leve preocupação. Algo havia mudado no ambiente.
Viu uma enfermeira saindo discretamente da sala da equipe e se aproximou, respeitosa.
— Com licença… está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
A enfermeira hesitou por um segundo, mas ao ver a pulseira de acompanhante no braço de Lena, respondeu com um tom gentil e reservado:
— Uma paciente da UTI despertou do coma.
Lena arregalou um pouco os olhos.
— Do coma? Quem?
— Maris… — respondeu em voz baixa. — Ela está há muitos dias em estado grave, com suporte intensivo. Hoje abriu os olhos, respondeu aos estímulos, vocalizou algumas palavras. Mas ainda está desorientada. Sem força na voz. Reações emocionais confusas, o que é esperado em casos como o dela.
Lena se surpreendeu.
— Ela é a mãe da Brittany…?
A enfermeira assentiu levemente, com discrição.
— Sim. Mas é muito cedo para qualquer visita. A paciente está clinicamente frágil, e emocionalmente instável. A equipe médica está avaliando minuto a minuto. A voz dela ainda não voltou, apenas chiado. A única coisa que conseguiu dizer, com muito esforço, foi o nome da filha e do ex-marido.
Lena olhou para o corredor como se pudesse ver através das paredes. O coração apertou.
— Mas ela está... bem?
— Dentro do esperado, sim. Ela está dando boas respostas neurológicas. Mas ainda é cedo. O corpo está se adaptando, e o cérebro também. O coma prolongado causa uma série de efeitos na fala, na memória, nas emoções. É como se ela estivesse renascendo, um pedacinho de cada vez.
Lena ficou em silêncio por alguns instantes. Depois perguntou:
— E a Brittany? Ela pode saber?
— Ainda não. A psicóloga que acompanha a filha já foi acionada. Antes do reencontro, a mãe precisa ser preparada, e depois a filha. Um impacto m*l conduzido pode afetar emocionalmente as duas. Então vai demorar um pouquinho… mas está sendo feito com todo o cuidado.
Lena assentiu. Ela sabia o quanto Brittany estava fragilizada, tanto fisicamente quanto emocionalmente. E sabia também… que aquele reencontro seria um divisor de águas na vida de todos.
— Obrigada por me contar. Eu não vou dizer nada a ela, pode confiar.
— Agradecemos. Tudo está sendo feito com o maior zelo. Ela não está sozinha.
Lena respirou fundo, segurando as lágrimas que vinham.
Não… Maris não estava mais sozinha.
E nem Brittany.
Entre o Torpor e a Verdade
Enquanto isso, no hospital, os médicos, após a pequena crise de ansiedade involuntária de Maris, decidiram aplicar uma sedação leve. O corpo ainda estava frágil. A mente, em convulsão emocional. O coração disparava, e a musculatura respondia com espasmos.
A medicação foi aplicada com precisão.
Em poucos minutos, os batimentos desaceleraram, e os olhos se fecharam suavemente.
Mas Maris não adormeceu.
Ela atravessou.
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No plano sutil, entre os campos de luz do espírito e as vibrações da Terra, ela se viu de pé. Usava uma túnica clara, pés descalços, cercada por uma brisa morna e uma claridade que não vinha de sol algum — mas da essência.
À frente dela, estava sua mãe.
Linda, serena. Os cabelos grisalhos presos num coque simples. Os olhos… ah, os olhos… os mesmos que Maris via quando sonhava criança.
— Mamãe…? — sussurrou ela, se aproximando, trêmula.
A mãe sorriu com leveza e abriu os braços. Maris foi até ela, se aninhando no peito que conhecia desde o ventre.
— Agora é a hora, minha filha. Você vai despertar. De verdade.
Maris recuou um passo, confusa.
— Mas… eu já acordei. Eu… eu vi gente. Eu tentei falar. Eu senti dor…
— Você voltou à carne, mas não despertou no espírito. Agora você vai se lembrar do que te ensinamos aqui. Não de uma vez, mas em fragmentos. Em sonhos. Em sensações. Em palavras soltas que alguém vai lhe dizer no mundo físico. E, quando ouvir a palavra certa… você vai acordar por dentro.
— Eu vou lembrar? Mesmo depois que eu voltar?
— Vai sentir saudade. Vai pensar que foi sonho. Mas não é. É o chamado. E você vai saber.
A mãe segurou o rosto dela com carinho.
— Você vai receber uma notícia dos médicos. E essa notícia vai abalar você. Eles vão dizer que pode haver risco de ficar paraplégica.
— O quê…? Por quê…? — Maris perguntou com os olhos arregalados.
— Porque o corpo foi ferido. Mas a alma… já carregava essa possibilidade antes da carne nascer. Isso estava no seu livro. O das provas. Mas você tem direito ao livre-arbítrio diante dessa situação.
— Mas por que, mãe…? Por quê?
A mãe sorriu com doçura e respondeu, apontando para cima:
— Está no Livro dos Espíritos, filha. Não me cabe dar todas as respostas. Algumas, você terá que sentir.
— Eu vou… ficar assim?
— Você pode ficar. Ou pode não ficar. Dependerá da sua entrega, da sua aceitação, da sua fé. A revolta fecha portas. A resignação abre possibilidades.
Maris começou a chorar.
— Eu não sei se sou forte o suficiente…
— Deus sabe. Por isso confiou isso a você. E nós… nunca deixamos de estar por perto.
A mãe a abraçou mais uma vez. E sussurrou, ao ouvido:
— Quando você acordar… e alguém te disser a palavra certa… você vai saber que me viu. E vai lembrar.
O Abraço Que Cura
No espaço sem tempo onde Maris se encontrava, a presença da mãe ainda lhe envolvia como um manto de ternura. Mas seu coração sentia outra ausência. Um vazio antigo. Um nome que ela não pronunciava há tempos... mas que naquela hora, explodiu como um sussurro no peito:
— Eu queria… me despedir do papai.
A mãe sorriu com os olhos serenos, como quem já sabia.
— E ele está aqui.
No instante seguinte, uma luz se fez à frente dela. E dele surgiu… ele.
O homem de semblante doce, terno, os cabelos grisalhos e o perfume leve de algo que só se sente quando o coração reconhece a eternidade.
— Papai… — murmurou Maris, emocionada.
Ele caminhou até ela e a envolveu num abraço firme, protetor. Um abraço que dissolveu camadas de dor, orgulho, culpa, silêncio… Um abraço de alma para alma.
— Eu vim só para te dar esse abraço, minha filhinha. Mas não posso ficar. O meu trabalho lá embaixo é muito grande. Há muitos que precisam… e meu tempo é curto aqui. Mas não poderia deixar de vir. De olhar por você.
Maris chorou no ombro dele como se fosse novamente aquela menina que ele embalava depois dos pesadelos.
— Papai… você me protege, né? Você e a mamãe… me ajudam… a não ser mais aquela pessoa que eu era?
Ele afastou-se levemente, segurando seu rosto com as duas mãos. Os olhos brilhavam com amor — e firmeza.
— Minha filha… o que nós pudermos fazer para intui-la, nós faremos. Estaremos por perto. Soprando ideias, acalmando tempestades, te tocando em sonhos, enviando sinais.
Ele fez uma pausa, depois completou com a gravidade doce de quem entende as leis do Alto:
— Mas nós não vamos interferir no seu livre-arbítrio.
Ela baixou os olhos.
— Eu sei… — murmurou.
— Nem Deus interfere no livre-arbítrio dos Seus filhos, minha filha. Ele oferece caminhos, envia amor, acolhe quedas… mas nunca obriga a escolha. Essa é a parte mais difícil, e mais bela, da existência.
Maris assentiu, as lágrimas ainda escorrendo.
— Mas eu não quero mais ser quem eu fui. Eu… eu sinto vergonha de mim.
— Não tenha vergonha, filha. Tenha consciência. A vergonha paralisa. A consciência transforma. Use tudo o que viveu… para ser nova. Não melhor que os outros. Mas melhor que a mulher que você foi ontem.
Ela respirou fundo, como se absorvesse tudo para guardar eternamente.
— Eu te amo, papai.
— E eu sempre amei você. Sempre vou amar.
Ele se afastou. A luz começou a envolvê-lo.
— Agora vá. Volte. Sua missão ainda não terminou.
A mãe apareceu ao lado dele, e os dois, de mãos dadas, acenaram pela última vez antes que a luz se fechasse como um portal.