Enquanto isso, no hospital, Maris era transferida para um apartamento de internação regular, longe da UTI, mas ainda sob monitoramento constante. Os fios que antes ocupavam cada centímetro ao redor de seu leito foram diminuindo. O ar estava mais leve, mas o clima ainda era de atenção redobrada.
A psicóloga — a mesma que acompanhava sua filha há dias — estava ali, sentada ao lado da cama. Um enfermeiro acabara de aplicar um sedativo leve, sob orientação da equipe médica, apenas para conter a ansiedade e permitir que a conversa fluísse com o mínimo de tensão.
— Maris, — disse a psicóloga com voz firme, mas acolhedora. — Agora vamos conversar, está bem? Quero que a senhora tente, com calma, me dizer como está se sentindo.
Maris, ainda com os olhos ligeiramente pesados, respirou fundo, sentindo o peito arder. Sua voz saiu fraca, quase um sussurro.
— Dói... mas eu... estou viva?
O neurocirurgião, que acabara de entrar no quarto, posicionou-se próximo, anotando os sinais vitais exibidos no monitor portátil. Fez um sinal discreto com a cabeça para a psicóloga, indicando que seguiria com as explicações.
— Dona Maris, — começou ele, com respeito e precisão — a senhora foi atingida por três projéteis. Todos letais. A senhora sabe o que isso significa?
Ela apenas piscou, com o olhar fixo no teto.
— É um milagre. Um verdadeiro milagre a senhora estar viva, — reforçou o médico. — Mas a situação foi muito delicada. Descobrimos que a sua tipagem sanguínea é extremamente rara.
Ela confirmou com um leve aceno, como quem já sabia daquele detalhe sobre si mesma.
— Pois bem, — continuou o médico. — O banco de sangue do hospital não tinha nenhuma bolsa compatível com seu tipo. E, por obra do destino... ou por intervenção divina, se me permite dizer... uma senhora estava aqui naquele exato momento.
Ele fez uma pausa breve, quase reverente.
— A filha dela, Lana Ferreira, estava de saída do hospital acompanhada da sogra. Quando viu o tumulto, reconheceu a senhora e imediatamente acionou o ex-marido da senhora. Ela sabia que sua filha não poderia ver a cena — e agiu com rapidez. A mãe dela, Dona Teresa Ferreira, foi quem doou o sangue. Ela tinha o mesmo tipo raro que a senhora. Foram duas bolsas completas, retiradas ali mesmo, às pressas.
Maris levou a mão ao peito, devagar, como se o coração entendesse antes mesmo da mente.
— Ela... salvou minha vida...?
— Sim, — confirmou o médico com firmeza. — Ela precisou ser internada por 48 horas após a doação, mas não hesitou. A senhora estava perdendo muito sangue. Não tivesse sido por essa doação, talvez nem estivéssemos tendo esta conversa.
A psicóloga segurou suavemente a mão de Maris e disse:
— A senhora passou por um trauma severo. E ainda está em processo de recuperação física e emocional. Mas há mais uma coisa que precisa saber... com muito cuidado.
O neuro respirou fundo antes de falar:
— Infelizmente, um dos projéteis não pôde ser removido. Ele se alojou na sua coluna lombar. Vamos fazer exames hoje mesmo para avaliar se houve lesão definitiva. Existe a possibilidade de... comprometimento dos movimentos da cintura para baixo.
O silêncio no quarto foi absoluto.
Nenhum grito. Nenhuma palavra. Apenas uma lágrima grossa escorreu no canto do olho de Maris. Seus olhos, antes cheios de dor, agora estavam vazios — como se procurassem compreensão onde só havia incerteza.
— A senhora permite que façamos os testes agora? — perguntou o médico, com extrema delicadeza.
Ela apenas assentiu com a cabeça.
A psicóloga apertou levemente a mão dela e sussurrou:
— Nós estamos com você. Você não está sozinha.
O médico então se abaixou ao lado da cama e começou os testes neurológicos básicos: estímulos com objeto rombo, toque com algodão nos pés, resposta a pressão leve nas solas, movimento dos dedos, e o mais importante: o reflexo plantar.
Ao estímulo, o dedão do pé direito se contraiu.
O neuro olhou rapidamente para a psicóloga. Era um sinal. Um início.
Ele anotou algo na prancheta e se levantou, dizendo em voz baixa:
— Vamos fazer os exames de imagem para confirmar. Mas isso... isso foi um bom sinal.
Maris fechou os olhos. Pela primeira vez, desde o atentado, deixou o corpo relaxar um pouco no colchão. Não era certeza. Mas era esperança.
O neuro ajeitou os óculos, conferiu os últimos sinais vitais de Maris no monitor e disse com calma:
— Dona Maris, agora que a senhora está mais estável, vamos solicitar uma ressonância magnética e uma tomografia computadorizada. Precisamos saber com exatidão onde o projétil está alojado e se ele se moveu ou afetou outras estruturas. Só assim poderemos avaliar o risco de sequelas permanentes.
Ele anotou os pedidos na prancheta e continuou:
— Os enfermeiros virão buscá-la em breve para levar à sala de exames. Enquanto isso, a senhora vai ficar com a psicóloga, que tem algumas informações e orientações importantes a compartilhar.
Ele se afastou com discrição, dando espaço para a profissional da psicologia sentar-se ao lado da cama. A mulher pousou a mão com carinho sobre a de Maris e, com voz serena, começou:
— Dona Maris, a senhora tem o direito de saber o que está acontecendo. Mas antes de qualquer coisa... respire. A senhora sobreviveu. Está viva. E isso é um milagre.
Maris deixou as lágrimas escorrerem silenciosas. Não havia forças para perguntas. Apenas ouvia.
— Sua filha... a Britney... teve os bebês prematuramente. Um menino e uma menina. Eles ficaram alguns dias na UTI neonatal. A situação foi delicada e... houve momentos em que tememos por todos.
A psicóloga fez uma pausa, buscando palavras com cuidado.
— Britney quase entrou em colapso. Precisamos iniciar um tratamento leve, com acompanhamento constante. Ela está amamentando os bebês, então os medicamentos são todos ajustados para manter a amamentação. Mas emocionalmente... ela ainda está frágil.
Maris moveu levemente os lábios. Não tinha forças para articular frases. Só chorava.
— Ela não se desgruda dos filhos. Tem sido uma mãe leoa. Disse que quer ser exemplo, que vai dar tudo por essas crianças. Está tentando ser forte... mesmo sozinha.
A psicóloga respirou fundo e continuou:
— Por isso, optamos por não contar a ela o que aconteceu com a senhora. Não no início. Ela está num nível de estresse altíssimo, e qualquer abalo poderia desencadear uma depressão pós-parto grave. Conseguimos, com ajuda de duas amigas dela, que estão ficando no hospital todos os dias, e da mãe da Lana — dona Tereza — garantir que ela receba refeições especiais preparadas conforme a dieta prescrita pela nutricionista. Nada do hospital. Elas estão cuidando dela... com muito amor.
Maris apenas fechou os olhos. De alívio. De dor. De gratidão.
— Hoje, ela perguntou da senhora. Tem perguntado constantemente, aliás. E agora que a senhora acordou, nós vamos começar a prepará-la para receber essa notícia. Será um processo lento. Vai envolver a presença do seu ex-marido, e eu vou conduzir cada parte com cuidado.
A psicóloga então concluiu com delicadeza:
— Mas, para isso, eu preciso do resultado dos seus exames. Preciso saber se há sequelas. Preciso saber como vou abordar sua filha. Tudo bem para a senhora Dona Maris?
Com muita dificuldade, Maris ergueu a mão e fez um sinal afirmativo com os dedos. Depois, num fio de voz rouco e quase inaudível, respondeu:
— Obrigada...
A psicóloga sorriu, comovida.
— A senhora é forte. E nós vamos ajudá-la a se reerguer.