Capítulo 5 — Meu pior Pesadelo

1514 Words
ALERTA DE GATILHO Este capítulo contém temas sensíveis que podem ser perturbadores para alguns leitores. A narrativa aborda, de forma implícita, uma situação de abuso, com foco no impacto emocional e psicológico da protagonista, incluindo sentimentos de medo, vergonha, culpa e isolamento. Não há descrições explícitas de violência, mas a tensão psicológica e a sensação de ameaça são intensas. Além disso, o capítulo menciona luto, trauma e dinâmicas familiares disfuncionais, que podem despertar desconforto. Se você é sensível a esses temas, recomendo cuidado ao prosseguir com a leitura. Sua saúde mental é importante, e você pode optar por pular este capítulo ou lê-lo com apoio. SARA A casa nunca pareceu tão errada. Desde que o pai e a Pri saíram pra Cancún, há três dias, é como se as paredes tivessem olhos, como se cada canto sussurrasse que eu não pertenço mais aqui. O silêncio não é só silêncio — é um peso que aperta o peito, que faz cada rangido do assoalho soar como uma ameaça. O Fábio tá em todo lugar, mesmo quando não tá. O cheiro de cigarro dele, o eco da risada seca, o jeito que os olhos dele me seguem. Eu tô afundando, morrendo por dentro, e ninguém vê. Ninguém nunca vê. Eles saíram na segunda-feira de manhã. Eu vi pela janela do quarto, com a cortina meio aberta, a Pri arrastando uma mala colorida, toda animada, e o pai com aquela cara de quem tá tentando se convencer que tá tudo bem. Ele acenou pra mim, um “se cuida, guria” que m*l chegou aos meus ouvidos. A Pri gritou um “te amo, Sara!” antes de entrar no táxi, e eu forcei um aceno, com as mãos geladas e o coração na boca. Quando o carro sumiu na esquina, a casa pareceu engolir o último pedaço de luz. Tranquei a porta do quarto, encostei a cadeira na maçaneta e me sentei na cama, abraçando os joelhos. Mas não adiantava. O medo já tinha feito ninho no meu peito. O primeiro dia foi um pesadelo. Eu tentava ficar no quarto, só saía pra pegar comida na cozinha, e mesmo assim era como caminhar num campo cheio de armadilhas. O Fábio tava sempre lá, esparramado no sofá, com uma cerveja suando na mão, o cheiro de cigarro grudado na roupa dele invadindo tudo. Ele não falava muito, mas o olhar... aquele olhar lento, que descia pelo meu corpo como se eu fosse uma coisa, não uma pessoa. Eu sentia a pele queimar, o estômago virar, e corria de volta pro quarto, trancando a porta como se isso fosse me proteger. Mas eu sabia que não protegia. Na segunda noite, tudo desabou. Eu tava no quarto, com a luz apagada, tentando me convencer que o sono ia vir. A cadeira tava encostada na porta, como sempre, e o caderno tava na minha mão, com frases tortas que eu escrevia pra tentar botar o medo pra fora. “Dias a sós: Ele ficou na sala até tarde. Ouvi passos no corredor.” Mas aí veio o som. A maçaneta girando, devagar, como se alguém quisesse que eu não ouvisse. Meu coração parou. A cadeira rangeu, mas não segurou. A porta abriu, e a sombra dele entrou, escura contra a luz fraca do corredor. Eu congelei, o ar preso na garganta, o corpo duro como pedra. Não lembro o que aconteceu depois, não com clareza. Só flashes: a respiração pesada dele, o peso no ar, o frio que tomou meu corpo inteiro. Quando acordei, a porta tava fechada de novo, a cadeira nem lembro quando coloquei no lugar, tudo como se nada tivesse mudado. Mas tudo mudou. Eu mudei. No chão do box ainda tinha meu sangue. Minha roupa rasgada estava no cesto de lixo. Eu me senti suja. Errada. Como se o que aconteceu fosse minha culpa, como se eu tivesse feito algo pra deixar ele entrar. Meus olhos tavam fundos no espelho, com olheiras escuras, e minha mão tremia enquanto eu escrevia no caderno: “Dias a sós: Ele entrou no quarto. Não sei como. Não sei por quê. Tô quebrada, machucada, incompleta.” As palavras saíam tortas, a caneta escorregando, e eu chorei tão baixo que parecia um gemido preso. Queria gritar, mas quem ia ouvir? A casa tava vazia. Só eu, o Fábio, e o silêncio que parecia me culpar. No terceiro dia, eu m*l saí do quarto. Não comi, não tomei banho, não me olhei pro espelho. O enjoo tava sempre ali, subindo pela garganta, e minhas pernas tremiam tanto que eu m*l conseguia ficar de pé. Quando precisei ir ao banheiro, vi uma mancha vermelha na toalha. Sangue. Não sei de onde veio — talvez um arranhão que eu não senti, talvez o estresse rasgando meu corpo por dentro. Mas ver aquilo me fez desabar. Eu Eu mesma ao me abraçar nas crises de choro me machuquei. Sentei no chão frio, com a toalha na mão, e chorei até não ter mais lágrimas. Eu queria a minha mãe. Queria ela ali, com o cheiro de lavanda, fazendo trança no meu cabelo, dizendo que eu não tava sozinha. Mas ela não tava aqui. Só tinha o vazio, o medo, e a vergonha que queimava mais que qualquer outra coisa. A vergonha era o pior. Vergonha de mim mesma, de não ter gritado, de não ter lutado, de não ter trancado a porta direito. Culpa por achar que, de alguma forma, eu tinha causado isso. Talvez se eu não fosse tão quieta, tão frágil. Talvez se eu tivesse falado antes, com o pai, com a Pri. Mas agora? Agora era tarde. Eu me sentia como uma casca, como se a Sara que ria com a Bia e a Micaela, que escrevia poesias no caderno, tivesse sido roubada. Só sobrou esse peso, esse tremor, esse nó na garganta que não desata. O Fábio tava mais presente do que nunca. Ele não precisava fazer nada pra me aterrorizar. Bastava estar lá, na sala, na cozinha, no corredor. Ontem, eu tava pegando um copo d’água, e ele apareceu, encostado no balcão, tão perto que eu senti o cheiro de cigarro e suor. Ele não disse nada, só sorriu, aquele sorriso torto que parecia dizer “eu sei o que fiz, e tu também sabe”. Derrubei o copo na pia, o barulho ecoando como um tiro, e corri pro quarto, trancando a porta. Ouvi a risada dele, baixa, seca, enquanto subia as escadas. — Tá nervosa, guria? — ele gritou. Eu me joguei na cama, abraçando o travesseiro, com o coração batendo tão forte que doía. A casa virou uma prisão. Cada parede parecia me vigiar, cada sombra era ele. Eu parei de ir pro colégio — mandei uma mensagem pra Bia dizendo que tava com dor de barriga, que não dava pra ir. Ela respondeu com um “melhora, guria!”, e eu quis contar tudo. Mas como? Como eu explicava que tava com medo de sair do quarto? Que a casa, que um dia foi meu lar, agora era um pesadelo? Que algo tinha acontecido, algo que eu não conseguia nem nomear? A vergonha me comia viva, e a culpa me fazia sentir que eu não merecia ser ouvida. À noite, eu tentava sonhar com a minha mãe. Fechava os olhos e imaginava ela entrando no quarto, com o cabelo solto, a voz macia, dizendo “tá tudo bem, Sarinha”. Mas o sonho nunca vinha. Eu acordava suada, com o coração disparado, ouvindo o som da casa rangendo. Cada rangido era ele. Cada sombra era ele. Eu abraçava o caderno, escrevendo frases soltas: “Dias a sós: Não saí do quarto. Ele tava na cozinha. Tô com medo de não aguentar.” Minha mão tremia tanto que a caneta escorregava, mas escrever era a única coisa que me fazia sentir que eu ainda existia. Eu queria ligar pro pai, pra Pri, pra qualquer um. Mas o que eu dizia? Que o Fábio tinha entrado no meu quarto e me violado? Que eu sentia ele me rondando como um lobo? Eles iam dizer que era exagero, que eu tava louca. E se contasse e fosse pior? E se ele soubesse que eu falei? O medo era maior que tudo. Maior que a fome, que a sede, que a vontade de viver. Eu me sentia morta por dentro. Como se a Sara que eu era tivesse sido apagada, e só sobrasse esse eco, esse vazio que tremia e chorava. Mas, no fundo, bem no fundo, tinha uma vozinha. Pequena, fraca, mas teimosa. Ela dizia que eu não podia desistir. Que eu precisava gritar, mesmo que sozinha. Mesmo que ninguém ouvisse. Escrevi no caderno, com a mão tremendo: “Dias a sós: Ele entrou no quarto novamente, me ameaçou, subiu em mim... Eu não sei como evitar que isso aconteça de novo.” Fechei o caderno e abracei ele contra o peito, como se fosse um escudo. Não sei como, mas vou ter que encontrar um jeito de lutar. Porque se eu não lutar, ninguém vai.
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