Capítulo 1 — Sara

971 Words
SARA Eu me encaro no espelho do banheiro, e a guria que me olha de volta não parece eu. Olhos azuis escuros, que normalmente são claros e brilhantes, cabelo loiro liso caindo como uma cortina até a cintura. Pareço uma boneca antiga, daquelas que ficam esquecidas na prateleira. Só que essa boneca tá assustada. E tentando fingir que não tá. Aqui em casa, fingir é tudo o que me resta. Meu nome é Sara. Sem o “h” no final, por favor. Acabei de fazer dezesseis anos, e a verdade é que não tem muito o que comemorar. A gente cresce achando que a vida vai se ajeitar, que o mundo vai fazer sentido. Mas, no meu caso, quanto mais o tempo passa, mais tudo vira um nó que eu não sei desatar. Pego o copo d’água na pia, e o vidro gelado faz minhas mãos tremerem. Lá fora, no corredor, a casa tá quieta demais. Um silêncio que pesa, que aperta o peito como se tivesse uma pedra dentro. Antes, esse corredor era cheio de risadas, do cheiro de café da minha mãe, da música que ela colocava no rádio da cozinha. Agora, é só um vazio que engole tudo. Até eu. Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos. Câncer. Rápido, c***l, como se alguém tivesse apagado a luz de uma hora pra outra. Num dia, ela tava fazendo trança no meu cabelo, rindo do jeito que eu contava as coisas da escola. No outro, m*l conseguia abrir os olhos. A última coisa que ela me disse foi: “Cuida do seu pai, Sara. Ele vai precisar de você.” Eu tinha nove anos. Como é que uma criança cuida de um adulto que tá se despedaçando? Depois que ela se foi, foi como se eu tivesse caído num buraco sem fundo. A saudade vive aqui, quietinha no meu peito, às vezes dormindo, mas nunca indo embora. O pai tentou seguir em frente, mas ele não é mais o mesmo. Antes, ele me chamava pra ver filme no sábado, fazia piada boba, me levava pra tomar sorvete. Agora, ele passa por mim como se eu fosse parte do móveis, respondendo com grunhidos e olhares que não dizem nada. Quando eu tinha doze anos, a Priscila apareceu. Pri, como ela gosta que eu chame. No começo, eu odiei a ideia. Uma mulher mais nova, com cabelo castanho brilhante e um sorriso que parecia sincero demais pra ser verdade. Achei que ela queria apagar a minha mãe, tomar o lugar dela. Mas a Pri não é assim. Ela é... paciente. Chegava de mansinho, me chamava pra ajudar a fazer bolo, levava pro mercado, nunca forçava a barra. Aos poucos, fui deixando ela entrar. Como quem testa a água gelada com a ponta do pé. Por um tempo, a casa voltou a ter vida. O rádio da cozinha tocava, o cheiro de comida feita com carinho tomava conta, e até o pai parecia rir de novo. Mas ultimamente, algo tá fora do lugar. Não é algo que se explica com palavras. É um frio na espinha, um peso no ar. Como se a casa soubesse de um segredo que ninguém quer contar. Hoje de manhã, por exemplo, eu tava na sala, olhando o porta-retrato torto na estante. Nossa única foto juntos — eu, pequena, com dois dentes faltando, um laço ridículo na cabeça, e meus pais sorrindo. A Pri entrou, segurando a xícara de café com as duas mãos, como se precisasse de algo pra se segurar. Ela tentou puxar papo, perguntou da escola, mas o jeito que ela olhava pro corredor, como se tivesse esperando alguém, me deixou gelada. O pai não tava em casa. Então quem ela tava esperando? — Tá tudo bem, Pri? — perguntei, mais por impulso do que por querer saber. Ela hesitou, o sorriso tremendo nos lábios. — Claro, Sarinha. Só... cansada. Sarinha. Odeio esse apelido. E odeio mais ainda quando ela mente. Porque eu sei que tem algo errado. O rádio não toca mais. Os almoços são silenciosos, com garfos arranhando o prato. E o pai... ele tá mais distante do que nunca. Ontem, tentei falar com ele sobre a escola, sobre uma prova que tirei nota boa. Ele só resmungou um “que bom” e continuou mexendo no celular. Tinha uma sombra no olhar dele, algo que eu nunca vi antes. Algo que me fez querer correr pro meu quarto e trancar a porta. Às vezes, sinto que sou uma visita que ficou tempo demais. Como se a casa, que já foi minha, agora me quisesse fora. Mas fora pra onde? O colégio é meu único respiro. Lá, eu finjo que sou só uma adolescente normal, rindo com a Bia e a Micaela, minhas amigas que não sabem de nada. Não conto do pai, da Pri, nem do vazio que carrego. É mais fácil fingir que tá tudo bem do que explicar o que nem eu entendo. Mas hoje, enquanto voltava da escola, vi um par de tênis sujos na área de serviço. Não eram do pai. Não eram da Pri. Eram grandes, gastos, com um cheiro forte de couro velho. Meu estômago embrulhou. Não sei de quem são, mas sei que não deveriam estar ali. De volta ao meu quarto, deito e olho pro teto. Meu caderno tá escondido na gaveta, onde escrevo tudo o que não digo em voz alta. Pego ele e anoto: “Algo tá vindo. Algo que não deveria estar aqui.” Fecho o caderno rápido, como se as palavras pudessem pular da página. Meu coração tá disparado, e o silêncio da casa parece gritar. Não sei o que tá acontecendo. Mas sei que esse silêncio é só o começo. E, pela primeira vez, sinto que preciso estar pronta. Pra quê, eu não sei. Mas vou descobrir.
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