Isabel
— Eu sabia! Eu sabia que aquela brux.a ainda ia aprontar contigo! — exclamou Karine enquanto batia as mãos na sua colcha preferida de retalhos. — Imagina isso, te vender como se fosse uma mercadoria para o dono do morro?! Essa put.a velha passou dos limites!
Contei a última façanha da minha madrasta para a minha melhor amiga, deixando-a transtornada com a notícia.
— Fale baixo mulher. — Olhei assustada para a sua janela aberta. — Seus vizinhos podem ouvir e cantar lá nos ouvidos da Catarina, ai que estarei ferrada mesmo.
Karine era uma boa amiga, mas tinha uma língua bem afiada.
— Que se fod.a. — ela segurou firme nas minhas mãos enquanto buscava meus olhos com veemência. — Aquela brux.a não vai tocar em você, a partir de hoje pode dormir aqui em casa.
Declarou seriamente.
Apertei suas mãos dando uma boa olhada no seu simples kitnet.
— Não posso simplesmente largar tudo e vim pra cá, como vou te ajudar em casa? Vou precisar de dinheiro. Preciso dar um jeito de arrumar um emprego o mais rápido possível.
— Querida, você é a garota mais esforçada que eu conheço, mas ninguém dessa favela te dá um trampo, ainda mais como empregada doméstica. Sabe o motivo, né?
— Não.
Karine riu rapidamente.
— Amiga, você é uma das garotas mais lindas dessa favela.
— Ah, não. — Soltei das suas mãos e tentei sair da sua cama, mas fui impedida por ela que segurou firme em meus braços. — De novo com esse papo?
— Te consideram a própria cinderela do morro, com madrasta e tudo. E as irmãs más seriam o seu irmão boco e seu pai brocha.
Olhei para ela tentando disfarçar um sorriso que brotava em meus lábios.
— Tá na cara que as mocreia.s desse morro não querem uma barbie em suas casas, o marido delas só teria olhos para a sua beleza, gata.
Parei de sorrir instantaneamente.
— Então é a minha beleza que trás o inferno para a minha vida.
Karine suspirou antes de me soltar.
— Não foi isso que eu disse, fofa. Mas…— Ficou a pensar, daquele jeito, coçando o queixo. — posso te colocar na fila, melhor, você pode ir no meu lugar na próxima semana, que tal?
— Do que você está falando? De que fila? Peraí, está sabendo de alguma vaga de emprego? — perguntei emocionada, quase chorando.
— Conheço. — Ficou um instante pensativa. — Posso te colocar nessa vaga se quiser, mas se não gostar não precisa ir novamente. Seria só para te deixar tranquila para vir morar aqui comigo. Esse negócio paga bem.
Esticando os braços mostrou seu humilde lar.
— Pode não parecer porque gasto com muita roupa de grife, maquiagem boa e lingerie de marca, mas se eu quisesse teria uma cafofo bem da hora.
Fechou os olhos brevemente para dar ênfase ao que dizia, e com um sorriso sincero no rosto completou: — E não é nada r**m ficar com uns caras, sabe, só é diferente.
— Como assim? — perguntei inocentemente. — Ficar a que você se refere, seria o que exatamente?
Karine encolheu os braços e esticou ele apoiando-os em meus ombros. Mantendo um tom misterioso em sua face.
— Adivinha?
— Prefiro… não… — Uma ideia asquerosa começou a brotar no meu cérebro, mas preferi jogar para o lado do que acreditar que a minha amiga vivia disso. — … adivinhar.
— Pare de ser bob.a, Isabel. Não tem nada de mais quando você concorda com o lance, as coisas podem fluir naturalmente. Todos os homens que eu trabalhei foram uns lordes comigo.
Engoli em seco, pasma com a sua aceitação de vida.
— Nem parecem presidiários. — Piscou toda malandra, fazendo um som no céu da boca.
Depois de ouvir essa última parte dei um pulo da sua cama apontando pra ela meio ansiosa.
— Caraca, Karine, você tá maluca? Se metendo com essa gente? E se eles te… — Tampei a boca rapidamente, não querendo falar o que se passou freneticamente em minha cabeça. Envergonhada por ela, dei as costas, abraçando meu próprio corpo no processo.
— Oh, Cinderela do Morro do Formigueiro! Não fala m*l dos meus amantes, não. O que passei na cama deles foi a melhor experiência de vida, tá ligado?
— Pode ter sido, mas você poderia ter se ferido, e se acontecesse alguma rebelião lá dentro?
Me virei com tudo, sofrendo por ela, por ter aceitado esse destino.
— Se tivesse tido, florzinha, eu não estaria aqui te chamando para fazer o mesmo que eu. Fora que essas paradas raramente acontecem, não precisa se preocupar tanto. Relaxa, tá?
Balançou negativamente a cabeça, sorrindo de algo.
— Tenho certeza que esse cliente vai gostar de você, mas precisa fazer o que ele mandar.
— Não! — Apertei os lábios ao socar a mão para baixo, deixando-a perplexa com a minha reação irritada. — Não vou trabalhar com isso, e te convido a sair disso também.
Suspirei contento a euforia que me dominava, precisava salvá-la desse tipo de trabalho.
— Vamos… fugir juntas dessa favela, que tal?
— Não posso.
Se levantou para buscar água pra mim e para ela. Depois de nos servir falou: — Precisamos de muita grana para nos manter viva fora dessa comunidade, fora dessa favela é tudo mais caro. A cidade é uma selva, cinderela. E o seu príncipe encantado não vai ficar esperando te encontrar com a bocet.a virgem, pensa nisso, tá? Essa proposta seria para uma colega minha da área, mas vi que a sua vida naquela casa está mais perigosa que dentro dos muros de uma prisão.
Bebi a água toda do copo, e ao entregar o objeto vazio informei seriamente; — Amanhã darei um jeito, hoje a noite não tem como, mas amanhã sei que vou conseguir um trabalho decente.
Ao dizer isso Karine ficou absurdamente séria.
— Desculpe, não quis te…
— Esqueça. Ser chamada de indecente é o menos dos nossos problemas. Fica de boa, tá? E se mudar de ideia estarei aqui de porta e janela aberta.
Deu um curto sorriso, nos abraçamos forte antes de sair da sua casa e voltar para a minha.