A necessidade do banho
Daniela Marçal
Eu tinha passado a última hora a folhear o livro que Xavier me entregou. Ele estava a cinco passos de distância, mas a distância emocional era de uma milha. Ele geria e-mails enquanto eu geria a minha frustração, era tão difícil sermos claros um com o outro? Eu estava limpa, mas sentia pegajosa e impaciente. Queria tomar um banho, me esquecer um pouco de tudo que estava vivendo. Mesmo sabendo que não conseguiria.
— Xavier. - Digo com um misto de sentimentos conflitantes.
O som do seu nome fez o seu músculo do maxilar contrair. Ele não desviou o olhar do que o prendia.
— Sim, Marçal? Mais gelo? Mais um capítulo? Um pouco de juízo... - Acabei rindo.
— Não. Preciso tomar banho. Me sinto suja do hospital. Não gosto do cheiro que impregnou as minhas roupas.
Ele parou de digitar, mas os seus olhos permaneceram fixos na tela.
— Eu já liguei para o serviço de assistência. Eles podem enviar uma enfermeira para ajudar...
— Não. — A minha voz era calma, mas firme. — Lembre-se, CEO. Não queremos fofocas. Uma enfermeira estranha a cuidar da noiva pode comprometer o nosso contrato de "dedicação absoluta". Além disso, ela não tem a minha confiança. Olívia está na casa... Terá que me ajudar.
Ele finalmente fechou o laptop. Era a sentença de morte para o seu trabalho. Ele estava visivelmente irritado, mas preso pela sua própria lógica.
— Você está impossibilitada a um nível de inconveniência desnecessária. Eu não sou enfermeiro. - Diz com um certo deboche.
— Você é o meu noivo. E o contrato exige que ajamos como tal. Além disso, a enfermeira não é o meu ativo funcional prioritário — sorri, usando a sua linguagem fria. — O meu corpo é. E precisa de ser mantido limpo. A única pessoa aqui que tem o interesse exclusivo em manter esta "peça essencial" limpa e funcional, livre de infecções e feliz, é você. Não fomos para no hospital, então?
Ele rosnou, a sua frustração quase palpável. Mas ele levantou, não tinha escolha. Ele nunca se moveria tão depressa para fechar um negócio, ou organizar a compra de um hotel.
— Muito bem. Mas você vai seguir as minhas instruções estritamente. E isto não é... — Ele gesticulou, incapaz de encontrar a palavra certa — ...afeto. É logística. - Suspiro rendida.
Ele me carregou para o maior banheiro da casa, o calor do seu corpo atravessou o roupão. O seu casaco estava desabotoado, e eu podia sentir o seu ritmo cardíaco a acelerar com a proximidade.
O cheiro dele era tão bom, tão calmante e excitante.
Ele preparou o banho com a precisão de um engenheiro: água na temperatura correta, sabonete cheiroso, e colocou uma cadeira de plástico que encontrou na varanda no box, para que eu pudesse sentar.
O momento crucial chegou quando ele teve que me despir. Ele estava de costas para mim, enquanto eu me sentava na cadeira, o rosto vermelho.
— Vira, não sou um monstro. — Minha voz era um sussurro. — Vou fechar os olhos.
Ele virou. Os seus olhos azuis estavam fixos nos meus, não no meu corpo. Havia uma luta lá, entre a sua determinação em permanecer frio e o meu estado exposto. Ele usou uma toalha para cobrir a parte da frente, um gesto estranhamente cavalheiresco.
Xavier Lancaster fez o seu trabalho, ele me ajudou como proposto.
Eu mesma que tinha procurado essa situação, então tinha que aguentar até o fim tudo que estava recebendo da outra parte.
O momento mais revelador foi quando ele lavou o meu cabelo. Ele estava desajeitado, a água a escorrer pelas minhas costas, mas as suas mãos grandes e fortes eram surpreendentemente gentis no meu couro cabeludo. Ele estava tão concentrado em não me tocar m*l que parecia esquecer de quem ele era.
Eu estava a relaxar, apesar de toda a tensão. Era a única vez que eu o via completamente desarmado, sem as mãos no tablet ou numa pasta.
— Seus músculos estão muito tensos, Xavier — murmurei, com os olhos fechados, somente sentindo. — Parece que você está a fechar uma aquisição.
Ele ignorou, concentrado em enxaguar. E foi aí que aconteceu. A minha mão escorregou no sabonete da cadeira e, num movimento brusco para me agarrar, ele inclinou.
O meu corpo estava nú e molhado, e ele estava vestido, encharcado, com o seu rosto a poucos centímetros do meu ombro. Ele agarrou com força.
— Cuidado! — A sua voz era áspera, quase um grunhido.
Nesse momento, eu vi a sua máscara quebrar. Não era a raiva da inconveniência, mas o pânico da perda de controle. A sua respiração estava ofegante.
Eu não o olhei nos olhos, olhei para o seu pescoço, para a veia pulsando.
— Você está bem, Xavier? Eu quase caí... - Disse sem graça.
Ele me soltou, se endireitando, e se afastando para desligar a água. Ele limpou o meu corpo com a toalha de banho com uma pressa quase violenta, querendo terminar a tarefa.
— Estou perfeitamente bem. É a logística de segurança, Marçal. Não posso ter a minha "peça essencial" a escorregar.
Eu agarrei a sua mão, parando o seu movimento brusco. A minha pele estava quente sob o seu toque.
— Não minta para mim, Xavier. O seu sistema não entra em colapso por causa do trabalho. A sua agenda está a ser gerida pela sua assistente. Você está tremendo aqui...
Ele baixou a cabeça, e a sua voz veio rouca, quase inaudível, uma confissão que valia milhões de euros.
— Eu não consigo lidar com a sua vulnerabilidade. Não consigo. Eu preciso que você esteja de pé, com raiva, a lutar comigo. Assim, eu sei quem você é. — Ele hesitou, e o seu olhar encontrou o meu, desprotegido. — Quando você está assim... dependente... eu não consigo distinguir o contrato do... do instinto. É insuportável. Gosto do controle, Daniela Marçal. Não gosto de não saber qual passo darei.
Ele não disse "afeição" ou "cuidado". Ele disse "instinto". Era a sua admissão de que o seu controlo racional estava a falhar. Ele tinha sido forçado a tocar-me, a cuidar de mim, e agora, ele estava a sentir o calor que não era da lareira.
Ele me ajudou a me vestir apressadamente com o roupão, me carregou de volta para o sofá e fugiu para o closet para se trocar, evitando o meu olhar. A tarefa logística estava completa, mas a barreira emocional estava irremediavelmente danificada.
Xavier Lancaster
Daniela Marçal, sentada ali, a folhear aquele livro como se a nossa vida não fosse uma peça encenada, era a personificação da inconveniência.
"Xavier."
O som do meu nome, proferido com aquela mistura de sentimentos que eu odiava não conseguir catalogar, fez o músculo do meu maxilar contrair. Eu estava preso. A minha própria lógica, o Contrato, era a minha cela.
Ela queria um banho. Claro que queria. Sentia "suja do hospital". A verdade é que a vulnerabilidade dela era o que me sujava, o que impregnava o meu ar de trabalho. Eu tentei a solução lógica: a enfermeira. Um ativo terceirizado, um recurso sem fofocas, uma ponte fria entre a necessidade e o meu envolvimento.
"Não." Calma e firme. A voz da CEO. A CEO que tinha planeado cada passo disto. Ela usou a minha própria arma: "Não queremos fofocas." O contrato de "dedicação absoluta". A sua jogada foi perfeita, fria e corporativa. Ela estava a usar a minha ética profissional contra mim.
Deixei o tablet de lado. A sentença de morte.
"Você está impossibilitada a um nível de inconveniência desnecessária. Eu não sou enfermeiro." O deboche era a minha defesa, o último vestígio de controlo.
Mas ela sorriu, usando a minha linguagem: "O meu corpo é o meu ativo funcional prioritário." Ela tinha razão. Não fomos para o hospital para que ela ficasse inoperante. A minha "peça essencial" tinha de ser mantida. Limpa. Funcional. Livre de infecções. A lógica era incontestável. Era uma cláusula, disfarçada de necessidade. Eu estava encurralado.
Levantei. Nunca me moveria tão depressa para fechar um negócio. A logística era a minha palavra de ordem. Não o afeto. Nunca o afeto.
O Confronto com o Instinto
Carregar. O calor dela. O meu casaco desabotoado. Eu senti o meu ritmo cardíaco a acelerar, e não era pelo peso. Era pela proximidade forçada. O cheiro dela não era do hospital; era dela, e estava a invadir o meu espaço, a confundir as minhas sinapses.
Preparei banho com a precisão de um engenheiro a planear uma fusão. Água na temperatura certa. Sabonete. A cadeira de plástico. Tudo compartimentado. A tarefa estava a ser executada.
O momento crucial: despir. Eu estava de costas, a tentar manter a imagem do investidor focado.
"Vira, não sou um monstro. Vou fechar os olhos."
Eu virei. Os meus olhos azuis nos dela. Fixos. Evitando o corpo. Eu estava em modo de segurança. Eu não podia tocar nela como homem. Ela era um ativo. Usei a toalha, um gesto que não era de cavalheirismo, era de barreira. Eu estava a proteger-me da visão, do toque, da quebra do meu código.
O cabelo. O mais difícil. As minhas mãos, acostumadas a apertar negócios, estavam desajeitadas. Água a escorrer. Eu estava tão concentrado em não cometer um erro, em não "tocar m*l", que me esqueci de quem eu era. O CEO desapareceu por alguns minutos de pura, estúpida e desastrosa logística.
"Seus músculos estão muito tensos, Xavier. Parece que você está a fechar uma aquisição." - A voz dela...
Eu ignorei. Não podia dar a satisfação da humanidade.
E então, o colapso. O sabonete. O escorregar. O movimento brusco.
O meu corpo estava por cima do dela, molhado, vestido. O rosto a poucos centímetros do seu ombro. O meu aperto era de força bruta.
"Cuidado!" O grunhido.
Não era raiva pela inconveniência. Era pânico. O pânico de que a minha "peça essencial" se partisse sob a minha guarda. Eu não controlava a gravidade. Eu não controlava a fragilidade humana. Eu não controlava o fato de que, por um segundo, a perspetiva de ela cair me tinha feito perder a cabeça, o ar, o foco.
A minha máscara quebrou. A respiração ofegante não era de esforço, era de medo.
"Você está bem, Xavier? Eu quase caí..."
Eu a soltei. Desliguei a água. A pressa violenta em limpar. Terminar. Selar a falha.
"Estou perfeitamente bem. É a logística de segurança, Marçal. Não posso ter a minha 'peça essencial' a escorregar."
A mentira. A desculpa corporativa.
Mas ela parou. A mão dela na minha. Quente. A minha pele quente sob o seu toque. Ela estava a ler cada gesto meu.
"Não minta para mim, Xavier. O seu sistema não entra em colapso por causa do trabalho... Você está tremendo aqui..."
Eu baixei a cabeça. A minha voz rouca. A confissão.
"Eu não consigo lidar com a sua vulnerabilidade. Não consigo. Eu preciso que você esteja de pé, com raiva, a lutar comigo. Assim, eu sei quem você é."
O meu olhar encontrou o dela. Desprotegido. A verdade saiu, brutal e simples: "Quando você está assim... dependente... eu não consigo distinguir o contrato do instinto. É insuportável. Gosto do controle, Daniela Marçal. Não gosto de não saber qual passo darei."
Eu não disse amor. Não disse afeto. Disse instinto. A falha de controle. A admissão de que, quando forçado a tocar, a cuidar, a fragilidade dela quebrava a lógica de Xavier Lancaster. O contrato não conseguia conter a reação primária de proteger. Eu sentia o calor que não era da lareira, e esse calor era perigoso.
Eu a vesti à pressa. Carreguei para o seu quarto. Fugir, essa era a ordem. A tarefa logística estava completa. Mas a barreira estava irremediavelmente danificada. O instinto tinha falado, e a Daniela Marçal sabia.