Chamando ajuda
Daniela Marçal
No quarto de Olívia, o mundo exterior se dissolveu como um passe de mágica. Estava sentada no chão, às costas apoiadas na lateral da cama, com o corpo curvado sobre um álbum de fotos ainda em construção. Olívia, deitada de barriga para baixo na cama, observava com seriedade infantil.
As fotos eram simples: quando estávamos no jardim vendo as flores, o dia que a levei na escola pela primeira vez, Olívia lambuzada de brigadeiro que eu tinha feito enquanto esperávamos Xavier. Momentos bons que estávamos criando juntas, nunca tive um álbum, agora queria que Olivia não passasse pelo que eu passei.
— Olha, mamãe! — Olívia apontou para uma foto de nós duas gargalhando em um carrossel no dia do coquetel. — Aqui você está tão feliz e bonita, mamãe.
Esbocei um sorriso fraco, mas ele não alcançou meus olhos. — É, meu amor, nesse dia estava muito feliz, porque eu nunca tinha ido em um carrossel. Você acredita?
Olívia se sentou, arrastou o cobertor de unicórnio e desceu da cama. Ela não disse nada sobre a coletiva; ela sabia que eu iria dar uma entrevista, mas não fazia ideia do conteúdo e que estavam me julgando sem me conhecer.
As crianças têm um radar para a tristeza, ela vai que eu não estava bem, mesmo eu dizendo ao contrário. Ela apenas se aninhou no colo da sua mãe, envolvendo meu pescoço com os pequenos braços.
— A gente pode colar só fotos engraçadas agora? — perguntou Olívia, com a voz abafada pelo tecido da minha blusa. — Sem caras tristes, somente a nossa felicidade, mamãe. - Ela me olha. - Você está muito triste hoje.
Fechei os olhos, absorvendo o calor e o cheiro de sabonete infantil de lavanda. A dor aguda da manipulação de Xavier recuou, substituída por um conforto fundamental. Ali, naquele abraço, não era a muralha, nem o instrumento, nem a estagiária que tinha que sobreviver. Eu era apenas a mãe da Olívia, um desejo que eu sempre tive em meu coração.
— Podemos. — A voz dela estava mais firme agora. — Vamos colar só fotos onde a gente parece dois macacos-loucos. Que tal?
- Macacos malucos? - Perguntei rindo.
Olívia soltou uma risada genuína, a primeira nota de alegria que ouviu desde o "triunfo".
- Sim, os macacos ficam pulando, fazendo barulho e felizes. - Diz em sua inocência. — E a gente pode desenhar corações em volta da mamãe e de mim? De glitter? - Olívia estava animada.
Beijei o topo da cabeça da minha filha.
— Claro que podemos. Muitos corações de glitter.
Enquanto Olívia corria para a caixa de materiais, respirei fundo. Peguei o potinho de cola e estendi a mão para pegar a tesoura. Foi nesse momento que ouviu a batida suave na porta.
— Dani? — Era a voz de Marina, seguida pelo cheiro inconfundível de limão e merengue, ela trazia a caixa rosa de uma confeitaria que eu amava.
Sorri de verdade. Não um sorriso para a câmera, mas um sorriso para a vida real.
— Entra, tia Marina! — Olívia gritou da cama, já segurando um pote de glitter prateado.
Marina entrou, carregando a caixa da torta que eu amava e uma sacola cheia de besteiras. Ela olhou para mim com aqueles olhos analíticos. Sem discursos, Marina apenas colocou a torta na mesa de cabeceira e se sentou no chão ao lado de nós duas, pegando uma tesoura e o álbum.
— Xavier disse que era uma emergência de scrapbook. E que precisava de pelo menos dez fotos de Olívia fantasiada de alienígena. — Marina piscou.
Acabei rindo e empurrando o ombro da minha amiga com afeto. — Certo. Vamos fazer esse álbum. E depois, vamos comer essa torta, porque eu preciso de açúcar no meu sistema.
Nós três ficamos em um silêncio confortável, o único som sendo o clique da tesoura, o raspar das fotos e a voz de Olívia ditando onde o glitter deveria ir. O vazio depois do triunfo ainda existia na sala de estar, mas naquele quarto, ele havia sido preenchido com a bagunça suave e radiante do amor real.
Conforto no Olhar
Xavier Lancaster
Eu sabia que precisava dar espaço a ela. Meu telefone vibrou com a primeira de muitas mensagens de congratulações, mas ignorei. Em vez disso, disquei o número salvo de Marina, a melhor amiga da minha futura esposa.
— Preciso de um favor. — Minha voz estava rouca. — É a Dani. Ela... acabou de passar por uma guerra. - Digo em um tom de voz mais fragilizado do que eu queria aparentar.
— Eu vi. O país inteiro viu. Que show. — A voz de Marina era uma mistura de admiração, nervosinhos e preocupação.
— Não foi um show. Foi tortura. Ela está arrasada. Vem para cá. Agora. Sem meias palavras, sem análise. Apenas o ombro que só você pode dar a ela nesse momento. - Marina ficou em silêncio. - Mando meu motorista te buscar.
- Eu já iria, vou buscar a melhor torta de limão da cidade. Daniela gosta. — Marina desligou sem mais perguntas.
Eu não conseguia ir ao quarto. Eu sabia que, se batesse naquela porta agora, não seria recebido com amor, mas com a frieza de um veredito. Eu era o CEO, o manipulador, e ela era a minha vítima vitoriosa. Daniela Marçal estava nas minhas mãos, mas porque sentia que estava escorrendo como água?
Meus olhos se fixaram na porta de madeira escura que levava ao santuário delas. Eu não ouvia a voz de Daniela; só a risada de Olívia, leve e pura, e a voz de Marina, abafada. Era um som de paz que eu havia banido da minha própria vida.
Uma estratégia falha
Eu havia ligado para Marina por instinto, reconhecendo que havia um buraco na minha estratégia que o meu dinheiro ou o meu poder não podiam preencher: a amizade genuína e a união que as duas compartilhavam. Eu precisava de um agente de cura, alguém que não tivesse o cheiro da minha ambição. Marina era essa pessoa.
As duas já viveram muitas coisas para ficarem separadas nessa hora, e eu sei que não era opção para Daniela usar como ajuda.
Ela m*l havia trocado palavras comigo na entrada. Um aceno rápido e um olhar que dizia: eu sei o que você fez. Minha fachada de estrategista ruiu completamente. Não era o desespero de um CEO, era a súplica patética de um homem que sabia ter quebrado a única coisa de valor que tinha.
Dei alguns passos lentos em direção ao quarto, parando a uma distância respeitosa. Eu não podia entrar, mas precisava ouvir.
— ...e aí o macaco-louco jogou a banana na sua cabeça! — ouvi Marina contar, e Olívia explodiu em gargalhadas.
Daniela riu também. Um riso real. Não era a risada forçada de quem cumpre um papel, como na coletiva, nem o riso amargo que ela me deu na sala. Era um som relaxado, que vinha do fundo. Um som que eu não ouvia há semanas.
Me curvei, encostando a testa na parede fria, e fechei os olhos. Aquela risada era a prova de que ela estava se curando, mas também era a prova de que ela estava se curando sem mim. A manipulação tinha me dado a vitória pública, mas me custou a i********e.
Ouvi a voz de Daniela, mais calma agora.
— A gente precisa de mais glitter, Tio Xavier tem mais? - Será que ela sabia que eu estava ali? Ela sabe.
Meu coração deu um salto. Ela havia me mencionado. Ela havia me dado uma função, por mais trivial que fosse: o fornecedor de glitter. Era um convite sutil, ou talvez um teste. A Muralha não estava mais de pé; estava me deixando uma pequena brecha.
Endireitei-me. Olhei para a estante de livros, onde eu guardava a caixa de suprimentos de arte de Olívia (eu a comprei. Sempre fui bom com os detalhes logísticos, nunca com os emocionais).
Peguei a caixa. Demorei um momento para tirar os potes de glitter — um azul-turquesa que ela amava e um dourado que parecia feito de moedas derretidas. Era uma tarefa ridícula, mas era a única que eu tinha.
Bati na porta. Uma batida suave, hesitante.
— O fornecedor chegou. — Minha voz estava baixa.
Olívia abriu a porta com a energia de um foguete, agarrando a caixa das minhas mãos. — Ouro e Turquesa! Perfeito! — Ela nem me olhou, já correndo de volta para o álbum de macacos-loucos que inventou. Um nome que fazia sentido para a minha filha, e isso que importava.
Fui autorizado a entrar, mas não como participante, apenas como um entregador de suprimentos. Marina sorriu de leve, um sorriso que era 80% alívio e 20% censura.
Meu olhar encontrou o de Daniela. Ela estava com o cabelo desgrenhado e com um resquício de cola na ponta do nariz. Ela estava linda, e vulnerável.
— Obrigada, Xavier. — Sua voz era neutra, mas não fria. Havia um cansaço nela, mas também uma aceitação silenciosa da minha presença.
Ela me deu a chance de responder, mas eu sabia que qualquer palavra de desculpa ou explicação seria inútil. Eu apenas fiz um aceno, reconhecendo o favor que ela me fazia ao não me expulsar.
Deixei-os ali, no chão, no meio da bagunça de fotos, tesouras e o cheiro doce da torta de limão, descobri que Daniela gostava. O triunfo sobre Elvira não valia nada. Mas a chance de, talvez um dia, voltar para o círculo de glitter e risadas valia tudo.
Voltei para a sala de estar vazia, o pote de glitter azul-turquesa nas minhas mãos. Minha mente, acostumada a calcular movimentos de mercado, agora só conseguia pensar em como reconstruir a confiança com quem eu tinha machucado.
Será que a pequena ponte de glitter era o suficiente para começar a atravessar o abismo que eu mesmo criei? Obrigada pelos comentários e bilhetes lunares 🥰